terça-feira, dezembro 18, 2007

EU 14

“Era uma vez um faminto!”. Raduan Nassar conta em Lavoura Arcaica a história do homem que ganha as benesses de um poderoso sultão após faminto, sedento e exausto, suportar com paciência e resignação um jogo proposto pelo monarca.
Ninguém pode ter certeza do que essa frase significa até ter o objeto do seu desejo bem ao lado: o calor da pele, a proximidade do toque, o hálito. A possibilidade! Ninguém pode saber o que essa frase significa até ter ao lado o objeto do seu desejo separado por uma muralha invisível e silenciosa – moral e tola para alguns, falsa e sem sentido para outros. Dolorosamente real e necessária para mim e pros passos que eu decidi dar aos meus pés.

Meus olhos vão acostumando à penumbra do quarto. A parede em frente, a estante e os livros vão ganhando contornos definidos em escalas de preto e cinza. Afinal, à noite, todos os gatos são realmente pardos. Deito sobre meu flanco esquerdo. Às minhas costas eles dois, abraçados, dividem o mesmo lençol.
A cada movimento, sussurro, respiração entrecortada, meus sentidos se apuram e eu fecho os olhos e o coração num arremedo de sono.
Ouço vozes roucas e baixas. Pequenas risadas – camundongos riscando o assoalho – e minha respiração fica suspensa.

Muitos meses atrás eu o reencontrei e me apaixonei. Depois soube do outro. E soube também que apenas por um desleixo não sou eu que hoje completa dois anos de namoro. Os três estavam no mesmo lugar. Os três queriam uns aos outros. Mas eu não soube ler os sinais.
Quase um ano depois desse encontro, eis os três novamente reunidos e hoje, depois de comemorar suas bodas de papel, eu lhes disse que não queria dormir sozinho. Não lhes disse diretamente (penso que não poderia fazê-lo!). Só eles aceitaram meu convite e agora estão aqui enchendo minha cabeça e pêlos de arrepios.

Ouço vozes roucas e baixas, pequenas risadas, e minha inspiração fica suspensa enquanto o peito liso, de mamilos salientes, toca minhas costas, ofega levemente no meu pescoço e sem palavras, que elas são completamente desnecessárias, me vira na sua direção.
E são muitas mãos e dedos e lábios. Calor da tua coxa na minha. Calor da minha coxa na tua, diria Caio F. Isso e algo mais, tudo multiplicado.

Abro os olhos. A estante começa a se desenha novamente com seus livros de fuligem. Então não foi real?! Deixo escapar um suspiro de alívio.
Então um leve movimento enquanto os dois se acomodam. Eles estão aqui, meu Deus! Eles estão realmente aqui!!!
O sol vai me encontrar insone, a testa empapada de suor, o corpo rijo. O silêncio. A solidão!!!

17.dez.2007.
16h52

quinta-feira, dezembro 13, 2007

EU 13

Hoje me senti nostálgico. Ao passar do quarto pra cozinha, vi meu filho parado em frente à janela gradeada do 13º andar, um de seus brinquedos preferidos debaixo do braço, olhando para fora enquanto a barca do sol apenas começava seu passeio pelo céu. Fiquei olhando pra ele enquanto ajeitava a gravata, pensando que há não tanto tempo assim, eu mesmo tivera aquela idade e corria com meu irmão pelo quintal da nossa casa no subúrbio, comendo fruta no pé e inventando brincadeiras de jornal.
Numa feita meu irmão sumiu. Mais velho, eu era o responsável. Saí atrás dele desesperado, um misto de querê-lo de volta e o medo da repreensão da minha mãe. Procurei por várias horas e já tinha passado do almoço quando eu andando em prantos pelas ruas, gritava por ele. Nada de mais. Numa época em que se colocavam cadeiras à porta das casas, meu irmão saíra passeando e sem limites ou temores, ora simplesmente se afastado, descobrindo ruas e praças novas, depois voltando pelo mesmo caminho com a naturalidade e calma que devem ter os passeios.Hoje meu filho não passeia. As ruas que ele conhece são as que vê aqui do alto, ou as que são percorridas de casa pra escola pra natação pro inglês pra casa. Nossas vidas se transformaram numa espécie de mapa do tesouro: tantos passos pra direita, uns metros ao lado do grande prédio cinzento, mais passos pra esquerda. No final, nosso baú, nunca suficientemente enterrados contra os piratas contemporâneos sem código de honra, sem ética, amorais.
A bem da verdade, quando eu também tinha sete anos, na minha casa de periferia, com praças cheias de castanheiras e bancos de madeira, o eu reinava era uma tranqüilidade de fachada. Eu olhava por uma janela térrea e sem grades, mas também tinha os passos limitados. Lembro que 39 anos atrás eu passaria o natal sem o meu pai. Professor universitário, ao sair em defesa de seus alunos contra o então presidente Costa e Silva, teve seu cargo posto em disponibilidade e a partir de então um carro preto com dois homens que fumavam continuamente enquanto as horas passavam permaneceria estacionado do outro lado da minha calçada; imóvel, impassível, enquanto um flamboyant lhe tingia de vermelho o capô e o teto.
Meu pai viajou num final de tarde depois que aqueles homens falaram com a minha mãe. Apesar da mala dele permanecer sobre o guarda-roupa, a história da viagem se espalhou pela vizinhança e alguns meninos já não jogavam mais bola comigo. Meu pai só voltou em janeiro. Tão cansado, tão abatido, que por três dias trancou-se no quarto onde apenas minha mãe entrava com caldos, sucos e frutas. Foi dessa época que veio o hábito de olhar pela janela: primeiro para esperar meu pai, depois para constatar, horrorizado, que aquele carro preto ainda passava muito lentamente em frente de casa.
Quando meu pai saiu do quarto deu a mim e ao meu irmão presentes atrasados de natal e nos abraçou tão forte que quase sufocamos. A partir de então, nossos brinquedos seriam sempre no quintal.
Meu filho nem um quintal tem! Eu o chamei e abracei tão forte que ele pediu que eu o soltasse. Pedi desculpas e como se faz nesses filmes do cinema, ou nos contos, pedi que minha mulher ligasse pro meu escritório e desse qualquer desculpa que quisesse. Pegamos o carro e fomos pro Mosqueiro, vazio e nublado nessa época do ano. Corremos na areia, empinamos pipa, tomamos sorvete e comemos tapioquinha.
Voltando tardezinha pra nossa gaiola dourada, olhei pelo retrovisor meu filho que dormia no banco traseiro, no colo de sua mãe exausta, e como nesses finais piegas de novela, não segurei umas lágrimas.
Pensei no meu pai.
Ennio Morricone caberia muito bem ao fundo.

13 de dezembro de 2007.
16h56

EU 13

Hoje me senti nostálgico. Ao passar do quarto pra cozinha, vi meu filho parado em frente à janela gradeada do 13º andar, um de seus brinquedos preferidos debaixo do braço, olhando para fora enquanto a barca do sol apenas começava seu passeio pelo céu. Fiquei olhando pra ele enquanto ajeitava a gravata, pensando que há não tanto tempo assim, eu mesmo tivera aquela idade e corria com meu irmão pelo quintal da nossa casa no subúrbio, comendo fruta no pé e inventando brincadeiras de jornal.
Numa feita meu irmão sumiu. Mais velho, eu era o responsável. Saí atrás dele desesperado, um misto de querê-lo de volta e o medo da repreensão da minha mãe. Procurei por várias horas e já tinha passado do almoço quando eu andando em prantos pelas ruas, gritava por ele. Nada de mais. Numa época em que se colocavam cadeiras à porta das casas, meu irmão saíra passeando e sem limites ou temores, ora simplesmente se afastado, descobrindo ruas e praças novas, depois voltando pelo mesmo caminho com a naturalidade e calma que devem ter os passeios.
Hoje meu filho não passeia. As ruas que ele conhece são as que vê aqui do alto, ou as que são percorridas de casa pra escola pra natação pro inglês pra casa. Nossas vidas se transformaram numa espécie de mapa do tesouro: tantos passos pra direita, uns metros ao lado do grande prédio cinzento, mais passos pra esquerda. No final, nosso baú, nunca suficientemente enterrados contra os piratas contemporâneos sem código de honra, sem ética, amorais.
A bem da verdade, quando eu também tinha sete anos, na minha casa de periferia, com praças cheias de castanheiras e bancos de madeira, o eu reinava era uma tranqüilidade de fachada. Eu olhava por uma janela térrea e sem grades, mas também tinha os passos limitados. Lembro que 39 anos atrás eu passaria o natal sem o meu pai. Professor universitário, ao sair em defesa de seus alunos contra o então presidente Costa e Silva, teve seu cargo posto em disponibilidade e a partir de então um carro preto com dois homens que fumavam continuamente enquanto as horas passavam permaneceria estacionado do outro lado da minha calçada; imóvel, impassível, enquanto um flamboyant lhe tingia de vermelho o capô e o teto.
Meu pai viajou num final de tarde depois que aqueles homens falaram com a minha mãe. Apesar da mala dele permanecer sobre o guarda-roupa, a história da viagem se espalhou pela vizinhança e alguns meninos já não jogavam mais bola comigo. Meu pai só voltou em janeiro. Tão cansado, tão abatido, que por três dias trancou-se no quarto onde apenas minha mãe entrava com caldos, sucos e frutas. Foi dessa época que veio o hábito de olhar pela janela: primeiro para esperar meu pai, depois para constatar, horrorizado, que aquele carro preto ainda passava muito lentamente em frente de casa.
Quando meu pai saiu do quarto deu a mim e ao meu irmão presentes atrasados de natal e nos abraçou tão forte que quase sufocamos. A partir de então, nossos brinquedos seriam sempre no quintal.
Meu filho nem um quintal tem! Eu o chamei e abracei tão forte que ele pediu que eu o soltasse. Pedi desculpas e como se faz nesses filmes do cinema, ou nos contos, pedi que minha mulher ligasse pro meu escritório e desse qualquer desculpa que quisesse. Pegamos o carro e fomos pro Mosqueiro, vazio e nublado nessa época do ano. Corremos na areia, empinamos pipa, tomamos sorvete e comemos tapioquinha.
Voltando tardezinha pra nossa gaiola dourada, olheipelo retrovisor meu filho que dormia no banco traseiro, no colo de sua mãe exausta, e como nesses finais piegas de novela, não segurei umas lágrimas.
Pensei no meu pai.
Ennio Morricone caberia muito bem ao fundo.

13 de dezembro de 2007.
16h56

domingo, novembro 18, 2007

DANÇARÁS, DANÇARÁS ETERNAMENTE

De 09 a 11 de novembro últimos aconteceu no teatro Gabriel Hermes, do SESI, a 6ª edição do FEDAP – Festival Escolar de Dança o Pará, promovido pelo Colégio Moderno e Companhia Moderno de Dança, com o patrocínio (isso é sempre bom que se diga), de LUMAR, Delta Gráfica, Doc Brasil e FIDESA, e o apoio de O paidégua.com, CAD, Gol sports e InterCrédito.
O FEDAP que tem como objetivo reunir os diversos grupos pertencentes às instituições de ensino formal do estado, oportunizando o espaço para a divulgação das produções coreográficas das escolas paraenses públicas e privadas e propiciando o intercâmbio de informações artísticas entre essas instituições. Não há premiações em dinheiro, mas três grupos recebem destaque pela sua produção e todos são premiados com troféus.
Nos três dias de festival se viu de tudo: singelas coreografias com crianças que mal davam dois passos sem trocar as pernas, enchendo sua mães de orgulho, até trabalhos mais elaborados. A modéstia, certíssimo, passou longe e mesmo os figurinos mais simples tinham cor e brilho; outros, abusando da criatividade, criavam estranhas figuras em cena, ou dificultavam a dança; uns poucos absolutamente equivocados, certamente pela falta de um suporte técnico maior.
Os números apresentados abriram mão e cenários, apontamentos, adereços e mesmo um desenho próprio de luz, buscando, quem sabe, concentrar-se na coreografia.
As coreografias são o capítulo principal desta história. Fui chamado a avaliar os grupos dentro de uma visão mais teatral e nem poderia se diferente porque eu no tenho formação, ou estudo em dança, mas estava ladeado por dois dos melhores da área no Pará, Marilene Melo e Ronald Bergman, que comentavam entre si e não se furtavam a responder meus questionamentos, esclarecer dúvidas, ou generosamente tecer comentários que muito ajudaram na minha avaliação. De qualquer forma o menor conhecimento teórico não diminuiu meu senso crítico, muito menos minha emoção. Aqui reside minha pedra de toque!
Reunidos no mesmo palco e sob os mesmos olhares dançarinos de escolas públicas, de onde destaco a EEEM Luís Nunes Direito, cujos dançarinos ratearam entre seus professores a taxa de inscrição no evento – palmas a esses educadores que entenderam o valor da arte e a importância de se fazer presente num evento como esse, seja para os alunos, seja para a instituição que os acolhe –, o Centro Performático de DANÇA Fragmento, da escola Aluísio da Costa Chaves, de Concórdia do Pará, que enfrentou quatro horas de viagem de balsa e ônibus, alunos de projetos sociais, até os nomes mais tradicionais da educação belemense. Aos primeiros o meu aplauso e o merecido reconhecimento, dado em conjunto pelos três jurados. As distâncias e dificuldades lhes deram a garra para estar em cena. Nenhum grupo participante demonstrou mais energia, precisão e harmonia do que eles. Era possível ver a técnica despontando, o talento nato que horas de estudo e treino tornarão virtuosismo. E se as coreografias careciam de técnica apurada , ou maior aprofundamento teórico, a afinação do grupo, agilidade, precisão e força cativaram o público, que os aplaudiu veementemente. Uma boa parte dos grupos de Belém,sobretudo s de escolas particulares (mas não por exatamente por isso!) optaram pelo lugar-comum, pela porta larga, apresentando coreografias opacas, repetitivas, sem técnica, ou estudo, na palavra dos meus parceiros; algumas parecendo ter sido feitas em série, alterando apenas o figurino e a música, ou nem isso, usando canções diferentes com o mesmo arranjo eletrônico. Essa apatia ficou visível quando do bate papo com o bailarino Ed Louzardo, convidado do festival, que falou para uma pequena platéia que foi conferir mais do que uma história de vida, mas uma história de aprendizado, assim como na ausência de oficinas que, segundo os organizadores, não acontecem pela falta de interesse dos inscritos. O que justificaria isso?
Bom é ver que em sua grande maioria, as escolas têm investido em grupos de arte entre seus alunos, seja na dança, teatro ou outra forma de expressão. É inegável o valor dessa atitude na formação cultural, social, intelectual e mesmo moral desses jovens cidadãos, criando a consciência de que o fazer artístico não é algo para iniciados, tampouco marginal; é absolutamente importante que se veja e faça, que se saiba não serem apenas os gênios isolados que nascem aqui e ali os dotados de um pretenso dom artístico. O conhecimento, a pesquisa séria, o estudo aprofundado e muito, muito, muito treino podem tornar qualquer um Artista, assim mesmo, com A maiúsculo. Que o diga Ed Louzardo, que iniciou seus estudos nos projetos sociais da comunidade Riacho Doce e hoje brilha em São Paulo, aplaudido entusiastica e merecidamente em sua terra natal. Louzardo e outros convidados: Cia. Ribalta de Dança, Grupo Coreográfico da UFPA, Cia. Compassos da Dança, SESC Cia. de Dança, o projeto Aluno Bailarino Cidadão, Grupo de Dança Moderno em Cena, Cia. Moderno de Dança (ver RITUAL DE PASSAGEM), entre outros, são capítulos à parte, um trabalho brilhante, perfeito pelo menos aos meus olhos (invejoso lá o meu canto!).
Calcem todos seus sapatinhos vermelhos e dancem. Aqueles que não abraçaram a dança, ou não foram por ela abraçados, simplesmente sucumbirão exaustos. Aos outros, Dançarinos, Bailarinos, pequenos, grandes, de ambos os sexos, de todas as cores, os passos enfeitiçados e nossos reiterados aplausos.

sábado, novembro 17, 2007

EU 12

Tem umas horas em Belém que nem mesmo quem nasceu aqui agüenta. Nesses momentos desafiar um tacacá pelando com pimenta é praticamente um suicídio. Alguns fazem!
Eu desci a alameda da Praça da República que leva ao anfiteatro e sentei num banco sob uma mangueira. Uns poucos centímetros me separavam de uma mancha de luz que avançava conforme o sol se movimentava no céu. Não deve me alcançar, pensei. Vou ficar por aqui mesmo. Abri os botões da camisa até o final do peito, apoiei os cotovelos nos joelhos e dobrei o corpo pra frente, fechando os olhos, tentando abstrair aquela sensação quente e levemente úmida do ar, que fazia pequenas gotas brotarem entre os pêlos do meu braço. Em volta o ruído do trânsito e as vozes de algumas pessoas e periquitos.
Ele sentou a me lado tão em silêncio que quando o percebi já deveria estar ali há vários minutos. Olhei-o por baixo, pelo canto dos olhos. Parecia funcionário de algum banco. Calças sociais, sapatos combinando com o cinto, a camisa de mangas longas enroladas até acima dos cotovelos, um cabelo estiloso, pulseira de metal no pulso esquerdo, gravata. Ele sentou-se na beira do banco e espreguiçou-se longamente, gemendo baixinho. Depois tirou os sapatos e apoiando os pés sobre eles sacudiu-lhes os dedos, protegidos por meias pretas, ou marrons, não sei ao certo agora. Apoiou a nunca com as duas mãos e bocejou alto. Estava tão à vontade que quase se assustou comigo ao seu lado, olhando-o com um leve sorriso nos lábios. Ele também sorriu e comentou algo sobre o calor e o expediente da tarde, que eu respondi meio atravessado, que não gosto muito que estranhos falem comigo. Como que adivinhando meus pensamentos, ele estendeu a mão e se apresentou, ao que eu respondi com o mesmo gesto, algo afetuoso.
Engraçado que depois disso nos calamos, olhando pra frente, ele com a nuca ainda entre as mãos, esticado no banco, os dedinhos dos pés sacudindo. Eu empertigado, as mãos juntas entre as pernas. Não corria um vento, ninguém passava por ali, nenhuma pessoa gritava vendendo nada e mesmo os carros não cruzaram aquela rua em frente de onde estávamos. Era um silêncio tão grande, tão presente, que parecia uma terceira pessoa sentada entre nós.
- Tens namorada? – ele perguntou, súbito
- O quê?” – perguntei sem me virar.
Ele também, parado:
- Namorada. Tens?
Permaneci na mesma posição e respondi:
- Não!
- E namorado?
Olhei aquele rapaz com surpresa. Isso é pergunta que se faça? Ele também me olhou, as mãos no mesmo lugar, com uma cara de o–que-é-que-foi-que-eu-disse-de-errado? Sorri:
- Não, também não tenho namorado!
De repente aquele silêncio de novo. Desta vez mais forte, angustiante até. Na minha cabeça uma separação recente e mal resolvida. Uma sensação desagradável de abandono, de não ter sido bom o bastante, de ter sido bom demais, de não ter dado a devida atenção, de ter grudado muito. Dúvidas demais, ausências demais pra sustentar um relacionamento.
Virei levemente o rosto. O rapaz ao meu lado também. O que estaria se passando naquela cabeça aureolada de castanho?
Nós ficamos nos olhando, tentando entrar na mente um do outro, entender o que se passava, adivinhar o que o outro queria. O que cada um de nós queria. Então todo o burburinho da cidade encheu a nossa volta e nunca nos sentimos tão invadidos quanto naquele momento. Foi um tal de ajeita daqui, senta direito dali, fecha os botões da camisa (então era ali que ele estivera olhando um tempo! Será que pro meu peito, ou pra medalhinha dourada de São Francisco de Assis?). Confesso que também tinha olhado muito pra ele. Quanto tempo gastamos naquele jogo? Por que tudo parecia tão difuso? E tão promissor?
Agora, sentados socialmente um ao lado do outro, parecia que não havia muito mais a fazer, ou dizer. Então ele levou o joelho devagar contra a minha perna e eu levei o meu joelho devagar contra a perna dele e pressionamos um ao outro, olhando sempre em frente.
- Tenho que ir! Ele disse, pondo-se rapidamente de pé.
Girou o corpo e saiu caminhando. Pensei apenas um segundo e também fiquei de pé.
Dei de cara com um senhor barrigudo, pasta executiva na mão, acendendo um cigarro e nos olhando. Encarei o homem. Dei um suspiro. Olhei o rapaz que já ia longe e me enchi novamente de dúvidas...

AGORA A DECISÃO É SUA, LEITOR. O QUE EU DEVE FAZER?

FINAL 1


Sabe quando pinta aquela dúvida? Será isso, será aquilo? Aquele homem a minha frente, cigarro em punho, era a imagem de tudo o que eu deveria fazer da minha vida. Acomodar-me no que é certo, justo e bom. Não investir em algo tão improvável. O que é que aquele rapaz poderia querer com um cara com eu? Ele queria mesmo alguma coisa comigo, ou meu vazio estava me fazendo imaginar coisas?
Segundo suspiro. Vi o rapaz parado na esquina da Oswaldo Cruz, me olhando de lá no exato momento em que o sinal abriu. Ele seguiu no meio de todo mundo e sumiu na esquina do INSS.
Passei a destra no cabelo e caminhei na direção da Assis de Vasconcelos.
Estava quase certo que tinha feito a melhor escolha. Quase!

FINAL 2

Sabe quando pinta aquela dúvida? Será isso, será aquilo? Aquele homem a minha frente, cigarro em punho, era a imagem de tudo o que eu deveria fazer da minha vida. Acomodar-me no que é certo, justo e bom. Não investir em algo tão improvável. O que é que aquele rapaz poderia querer com um cara com eu? Ele queria mesmo alguma coisa comigo, ou meu vazio estava me fazendo imaginar coisas?
Só tinha um jeito de saber. Passei correndo pelo velhote que amassou com violência o cigarro ainda inteiro no chão e resmungou alguma coisa.
Alcancei o rapaz na esquina da Oswaldo Cruz justamente no momento em que o sinal abriu e uma multidão avançou rua abaixo. Menos nós dois. Nenhum de nós arredou pé. O sinal fechou, abriu de novo e nós ali. Rimos.
Mãos nos bolsos, caminhamos pelo calçadão na direção do Teatro da Paz. Olhei pra cima.
- Vai chover!
- Seria bom, não seria?
Sorri:
- Seria, sim. Muito bom!

ESCOLHA O FINAL E RESPONDA NA ENQUETE NESSE MESMO BLOG. ESTOU ESPERADO TUA RESPOSTA.
OBRIGADO E BEIJOS!

terça-feira, novembro 13, 2007

RITUAL DE PASSAGEM

A matéria tem diferentes estados físicos e passar de um para o outro demanda ganho, ou perda de energia. Noutro aspecto, uma recombinação atômica permite que determinado corpo se altere. É assim que a simples adição de um átomo de oxigênio transforma a água essencial à vida num elemento corrosivo. Esse ponto de mutação é delicado e exige uma intrincada combinação de fatores. Entre os seres vivos essa recombinação pode dar origem a indivíduos que sequer vingam, outros que expostos às implacáveis leis da natureza, não resistem e morrem. Aos que sobrevivem, a eternidade, até que uma nova mutação os transforme novamente em algo melhor.
Assisti Homo Mutabilis (é, decididamente eu não gosto desse nome!) coreografia de Ana Flávia Mendes vencedora do Prêmio Secult no VIII Encontro Internacional de Dança do Pará – EIDAP (*) no último dia do VI FEDAD (Leia DANÇARÁS, DANÇARÁS ETERNAMENTE), domingo, 11 de novembro. A saga do homem sobre a Terra, do primitivismo animal ao sapiens sapiens (e além?) é contada nos gestos precisos dos intérpretes-criadores da Companhia Moderno de Dança. Assumindo todo o palco e todos os planos e ângulos disponíveis, vemos esse bicho estranho avançar e crescer. Signos como agrupamentos, a roda ancestral, reforçam a idéia de sociabilidade, que se nos animais mais inferiores é o elemento básico de proteção e conquista de alimento e moradia, nos humanos alcança o ponto máximo, permitindo que nos tornemos senhores deste mundo e mesmo subvertamos essa lógica, deturpando-a na pressão de uns povos sobre outros, na contramão da própria razão evolucionista.
Em Homo Mutabilis a luz ora apaixonada, ora branca espalha e agrupa os seres; o uso de tipitis evoca a natureza, nossa regionalidade. Presentes no palco desde o início da cena e incorporados aos bailarinos, é ressignificado enquanto corpo, elemento de mudança. Os gestos são vigorosos, a música batuca na carne, porque toda mudança exige energia. Energia que extrapola os corpos que rodopiam e saltam no palco e invadem os nossos que, tensos, esperam que eles e nós mesmos, num estalo, sejamos outros. Sejamos novos.
Ana Flávia e seus co-criadores conseguem dar mais um passo na afirmação de sua identidade e excelência, sobrevivendo ainda uma vez nesse turbilhão de tantas experimentações infrutíferas.
Para eles, a eternidade. Inconclusa. Porque para não serem extintos, a Arte lhes exigirá uma nova mutação.

(*) O prêmio Secult contempla companhias com trabalhos autorais e experimentais em dança. O EIDAP é uma promoção do Centro de Danças Ana Unger e aconteceu de 13 a 16 de setembro passado.

terça-feira, outubro 30, 2007

POLÍCIA E BANDIDO

Faz um tempo considerável que não vou ao cinema e o maior motivo disso é a baixa produção cinematográfica atual. Sempre me questionei quanto à indústria americana que tem dinheiro pra investir em cada porcaria que meu-pai-do-céu! Enquanto comércio eu tenho certeza que eles têm consciência o que estão fazendo. Sabem que tem público pra comédias românticas, ou adolescentes, sexualidade mal-resolvido, ou irrefletida, muita pancadaria, melodrama e mensagens de como o mundo poderia ser melhor se todos nos curvássemos a eles. Tudo isso com grossas camadas de glacê, calda, cereja e confeito colorido! Por conta da minha dieta restritiva, declino da oferta!
Mas ontem decidi quebrar meu jejum e prestigiar a prata da casa. Saí embaixo de um toró paraense pra assistir Tropa de Elite. Tem gente falando bem – a maioria – e outros falando mal. Sempre! Decidi tirar minhas próprias conclusões e fui ao cinema, como acho que deve ser, apesar de dois terços dos meus amigos já terem visto o filme por “3 real”.
Com direção e roteiro de José Padilha (Ônibus 174) e com o excelente Wagner Moura (capitão Nascimento) encabeçando o elenco que tem ainda André Ramiro (André Matias), Caio Junqueira (Neto), Maria Ribeiro (Rosane), Fernanda Machado (Maria) e Milhen Cortaz (capitão Fábio), o filme conta a trajetória de Nascimento, capitão do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) do Rio de Janeiro, os Caveiras, na busca de um homem à altura de substituí-lo no comando de sua tropa. Dividido entre a esposa às vésperas de ter seu primeiro filho, uma missão que ele considera insana e um senso de dever e justiça muito próprios, Nascimento vai se aproximando perigosamente de um limite que na sua função, seria fatal.
Enquanto produto cinematográfico, Tropa de Elite é um ótimo filme, apesar dos sempre presentes problemas de som e aqueles buracos comuns nos roteiros: pra onde foi a família de Nascimento? Ou isso não importa? Pra linha mestra do filme, não. Para quem se identificou com o capitão, talvez. E o maconheirozinho que provoca, por vingança, a morte do aspirante Neto? Depois da surra em uma dessas passeatas pela paz – ação onde André Matias reforça todo o imaginário sobre violência e arbitrariedade da polícia que ele próprio negara anteriormente -, o personagem some pra nunca mais. Pequenas coisas talvez, mas que não passam despercebidas.
Voltando: é muito bom ver o cinema nacional maduro, falando de coisas que lhe são próprias, sem tentar encampar ideais estéticos e falas alheias. Os americanos têm o Vietnam, nós, a ditadura militar. Os gringos têm seus serial killers, nós, os traficantes, a miséria, uma desesperança mulata, carnavalesca, girando na sujeira das periferias e aridez dos sertões como uma velha baiana na quarta-feira de cinzas. Tropa de Elite é um filme enxuto, interpretações de boas a excelentes, uma trilha sonora condizente e que jamais estará na minha estante, uma câmera nervosa que compartilha da nossa angústia morro acima, uma luz nublada, diversa dos cartões postais que aqui não têm espaço. Tropa de Elite é um filme maniqueísta. E ele se diz assim na fala do próprio Nascimento: polícia no Rio de Janeiro ou é corrupta, ou é honesta, ou mete a cara. Bandido é bandido e bem melhor se estiver morto! Infelizmente não dá pra não ser maniqueísta. O roteiro constrói personagens a quem não se dá o direito de escolha, com nuances de personalidade muito pálidas, como os deuses do Olimpo, invejosos dos homens mortais que podem ser o que quiserem. Nascimento é um desses deuses, criado para ser eficiente, honesto, inflexível, objetivo, mas que deseja um domingo de sol com a esposa e filho na beira da praia de um Rio de Janeiro que continua lindo. Que continua sendo...Padilha, no entanto, nos brinda com uma pequena jóia. Assistir Tropa de Elite é um exercício de entregar-se, ou de recuar. Queira o não queria, o estômago vai estar sempre embrulhado e é bom que seja assim. Os risos nervosos da platéia, o silêncio, o mexer-se na cadeira dizem que aquilo nos diz respeito. Parabéns, Padilha. Missão dada. Missão cumprida!

sexta-feira, outubro 05, 2007

EU 11

Sentei no banco e procurei controlar a respiração. O pequeno telhado que nos protegia ainda pingava e os arbustos e flores em torno, enfeitados de pingentes, permaneciam imóveis. No alto, algumas nuvens se desfaziam em gotas pequenas e esparsas; outras eram desfiadas pelo vento.
Olhando o céu quase escuro, em parte pela chuva, em parte pela hora, pensei se demorarias, me recusando a olhar o relógio.
E assim foi por 20 minutos.

Bem em frente, num coreto, um casal se abraçava, ele protegendo a namorada – penso que era sua namorada – do vento frio que corria. Ela, aconchegada, colocava as mãos por sob a camisa dele, às costas, aquecendo as palmas. Nenhum dos dois dizia nada. A moça permanecia mesmo de olhos fechados, entregue, um leve sorriso no rosto, enquanto o jovem, atento, olhava sério o entorno.
Fazia muito tempo desde a última vez que estivemos abraçados daquele jeito quase displicente. Nos poucos momentos em que estivemos juntos, os abraços foram sociais, apertos de mão burocráticos, cumprimentos formais, olhares e sorrisos camuflados. Procurei não pensar que não sentias falta do meu calor.
E assim foi por 30 minutos.

Um rapaz moreno sentou na outra ponta do banco. Parecia um pouco ansioso. Perguntou as horas. Menti que não sabia dizê-las! Num instante um grupo ruidoso de rapazes apareceu e meu vizinho se foi, deixando um rastro desagradável de fumaça de cigarro. Uma senhora, cabelos brancos, também sentou no meu banco. Chegou lenta, permaneceu com a calma de quem não espera muito mais da vida e foi embora devagar, apoiando o corpo em uma perna de cada vez. E um rapaz com um violão, mas ele não tocou; e um senhor que discutia negócios ao celular e uma mocinha que procurava emprego nos classificados do jornal, marcando círculos com hidrocor vermelha.
Nenhuma daquelas pessoas me dirigiu mais do que um olhar, ou uma pergunta simples. Ficamos sentados em lados opostos de um mesmo banco de praça, indiferentes um aos outros. Me esforcei pra não pensar em nós, que há muito permanecíamos (indiferentes) em lados opostos de uma conexão virtual.
E assim foi por uma hora!

Quando por fim levantei não havia mais quase ninguém na praça e as luzes dos postes já tinham se acendido há tempos. Não vieste. Nunca vinhas! Esperei porque... Por que?
Iria pra casa, trocaria os lençóis, colocaria no cesto de roupa suja as peças que usaste pra dormir muito tempo atrás, trocaria o retrato no criado mudo, alteraria meu perfil no Orkut e te escreveria um e-mail de despedida... Deu saudade dos bilhetes com letra caprichada no papel, com algum perfume de quem os escreveu e que dava vontade de guardar entre as folhas de algum livro. Deu saudade de tanta coisa. Até mesmo de ti. Mas rápido deletei aquele pensamento, julgando por orgulho que eu não tinha lugar nos teus.
E foi assim pra sempre!!

10.09.2007. 3h05 – 9h26.

domingo, julho 22, 2007

EU 10

‘Ela diz que apesar de tudo ela tem sonhos
Ela diz que um dia a gente há de ser feliz
Se Deus quiser .”
(Janaína. Biquíni Cavadão)

A Dalva nem tinha apagado no céu quando eu enxuguei o suor da testa com o dorso da mão. Tanque cheio, suspiro fundo, alguma olheira. Mas ainda havia o frescor da madrugada.
Enquanto o sol e-va-po-ra-va – meu caçula tinha dito isso! – a água das roupas, limpei a casa, arrumei as camas, lavei a louça do café, varri o pátio. Na panela, feijão e um restinho de toucinho, cebola, alho e sal. Pra acompanhar, arroz e salsicha. O sol parecia tão mais brilhante aquele dia!
A molecada comia apressada pro filho mais velho lavar a louça antes de ir pro quartel. Hoje era dia de educação física pros menores e eu passei as camisetinhas brancas e os shorts azuis marinhos. Quando havia dobrado a última peça e dado uns pontos na toalha grande e felpuda que protegia a trouxa, a casa estava quieta e o sol rachava o asfalto. Lá longe alguém ouvia uma música que eu gosto muito e o Pirata – o vira-latas do do meio! – latia pro nada, sacudindo o corpo todo.
O ônibus tava lotado, mas o segundo, se Deus quiser, tá mais vazio e algum cristão há de pelo menos pedir pra levar a trouxa. Faz um tempão que eu não escuto um “senta aqui, senhora!” e cada vez esses carros demoram mais a passar. Acho que alguém deu uma boa lavada neles ontem, ou hoje. E o cobrador até me disse bom dia.
A dona gosta da minha lavagem, mas sempre abre a trouxa e olha tudo e confere numa listinha antes de me pagar e sempre pede pra ser menos. “Não dá. O preço do sabão tá pela hora da morte!”. Ela sempre paga e já marca outro serviço. São mais dois ônibus e o ponto é longe, inda mais nesse calor. Sento lá no fundo e vou sorrindo da boniteza que tá ficando essa cidade.
Desço do ônibus e sento numa proteção toda de metal, ferrugem, cartazes molhados-rasgados-desbotados. Na outra ponta do banco de madeira uma mocinha fala ao celular e diz que sente saudades também e que não vê a hora de estar junto e que estar junto é a única coisa que eles têm certeza, mas aí a voz já está mais alta e mais nervosa e mais aguda e ela pergunta por que e quando e de que jeito? Desliga o telefone meio nervosa, enfia na bolsinha verde e azul e me olha meio sem graça. Eu olho de volta, complacente, que eu tenho uma dessas em casa e sei como eles são, ah, se sei!
A mocinha desvia o olhar, encabulada e morta de vergonha enxuga uma lágrima gitinha que vem caindo.
Ela me olha de novo quando eu sento ao lado dela e a abraço sem perguntar se posso, se devo, ou se ela quer. Surpresa! Mas logo ela também abraça e chora um pouco e ri. Lindo! Lindo! E sai correndo que seu ônibus chegou e outro sabe Deus quando.
De dentro do carro é que ela olha e sorri, atendendo novamente o telefone.
Também sorrio e sacudo a cabeça. Ah! esses moços!!

19 de julho de 2007.
11h31

sábado, julho 14, 2007

EU 9

Escrevo-te da prisão na qual me encerraste: cadeias teus braços, correntes teus beijos.
Escrevo-te de dentro de uma novela mexicana: olhares afetados. Gestos grandes, frases tolas.
Escrevo-te do meu quarto vazio e imenso sem estares nele, dormindo sem pressa, óculos no rosto.
Escrevo-te do torvelinho que é a dúvida da tua presença: se quero que me revolvas, se quero que passes ao largo.
Escrevo-te pra fugir do telefone.
Escrevo-te porque não lerás essas linhas (?).
Escrevo-te porque é o que sei e gosto e onde posso te pintar com as cores que deseje: azuis abreus, amarelos van gogh, vermelhos almodóvar e brancos e cinzas e negros eus.
Escrevo-te porque assim não partes.
Escrevo-te porque se rasgar esta folha, não ficas...
Escrevo-te épico, cômico, dramático.
Escrevo-te crônica do meu dia-a-dia alterado (pra melhor?!)
Escrevo-te conto, curto, redondo.
Escrevo-te com detalhes de roteiro, com volteios de romance, com a secura dos jornais, na métrica matemática da música, na precisão da tese, ágil como os quadrinhos.
Escrevo-te porque as palavras sobrevivem aos homens.
Escrevo-te enquanto te aguardo.
Ponto. Três!

Para M. O.
Belém, Pará
13 de julho de 2007 – 9h00

A PROGRAMAÇÃO DO PALCO GIRATÓRIO.

Em 2007, uma feliz coincidência reuniu o SESC e o projeto Balaio Cultural dos Clowns de Shakespeare, grupo de Natal que veio a Belém pela segunda vez através da Caranava Funarte – programa de circulação de espetáculos da Fundação Nacional de Arte. O programa incluiu ainda a cidade de Santarém e o estado de Roraima com a apresentação dos espetáculos Muito Barulho Por Quase Nada e Roda Chico, além do infantil Fábulas. Em todos os locais aconteceram oficinas ofertadas aos artistas locais. Em Belém, intermediadas pelo SESC, as oficinas de jogos teatrais e iluminação, além de debates, aconteceram no Casarão do Boneco, sede da companhia In Bust Teatro com Bonecos.

Dentro da programação normal do Palco Giratório esteve em Belém em maio passado o grupo Lumbra, de Porto Alegre, com Sacy Pererê – A lenda da meia-noite, resultado da pesquisa e trabalho do grupo na área do teatro de sombras. O espetáculo apresentado levou dois anos para ser concluído.

Entre os dias 23 e 28 de junho de 2007 esteve em Belém a Companhia catarinense Trip de Teatro Rio do Sul, com o espetáculo adulto de bonecos O Incrível Ladrão de Calcinhas.

Para a primeira quinzena de agosto está programada a Companhia Informal de Teatro, do Rio de Janeiro, que trará a Belém os musicais Antonio Maria: A Noite é uma Criança e Ai, que saudade de Lago, biografia para o teatro do ator e compositor Mário Lago.

Em setembro, na programação especial, acontecerá a Residência Cênica com a carioca Companhia Etc e Tal, que além das oficinas e bate-papo apresentará três espetáculos: Fulano e Sicrano e as comédias No Buraco e O Macaco e a Boneca de Piche.

Na Aldeia Círio, que começa dia 13 de outubro, as apresentações incluem teatro, dança e música, com intensa participação de grupos locais, valorizando nossa produção artística. Do Rio de Janeiro virá a Companhia Artesanal de Teatro com dois espetáculos infantis: Viagem ao Centro da Terra, baseado na obra de Júlio Verne, e Ciriano de Berinjela.

Fiquem atentos, prestigiem e divulguem.

quarta-feira, julho 11, 2007

PENSE NUMA BESTEIRA!!!

Melhor filme, atriz, atriz coadjuvante, ator, trilha sonora e Prêmio de Crítica do Festival de Brasília.
Melhor diretor no Festival de Cinema de Paris.
Melhor filme no Festival de Roterdã.
Ok! Pira paz!!!
Ou o conceito de arte e de qualidade dos julgadores dos festivais acima citados é completamente diverso do meu – e de boa parte da platéia que assistiu comigo Baixio das Bestas no último dia 08 de julho -, ou eu não entendo nada de cinema, arte, etc. Vá lá que minha experiência não tem dez anos, apenas seis espetáculos e algumas incursões pela literatura, mas por mais obtuso que eu seja ainda tenho sensibilidade bastante para julgar uma obra de arte quando vejo uma. E chamo Baixio das Bestas de obra de arte porque sendo uma produção cinematográfica, etc, pode ser assim classificada, tanto quanto sabonetes de motel pendurados no teto e pedaços de placas de estrada emendadas. No entanto, a tentativa de Cláudio Assis, o mesmo diretor de Amarelo Manga, de “problematizar relações, sugerir narrativas, humanizar questões, aprofundar o cotidiano e dimensionar a existência (*)” se perde nos oitenta longos e desagradáveis minutos de projeção. Não que o comportamento amoral e imoral dos personagens provoque nojo, ou desagrado, anestesiados que estamos pelos telejornais, mas pela completa falta de profundidade e verdade da história. A menina triste, ingênua e explorada que, amarga, decide se entregar sem mais luta ao óbvio de sua vida miserável está lá – como a personagem de Dira Paz em Amarelo Manga -, os jovens bem de vida e revoltados também, espancando domésticas... Ops! Isso é outro filme. Ou pior, não é filme. É real. O que diferencia é que no filme de Assis as cenas são mostradas. Violência explícita, sexo explícito, nu frontal, insinuações homoeróticas e uma avalanche de palavrões – as poucas palavras que se consegue entender no filme -, tudo tenta preencher o vazio de um roteiro raso como a fossa interminavelmente cavada por Maninho (Irandhir Santos, ele mesmo, o Quaderna de A Pedra do Reino!!!). Estratégia simplista. Não dar soluções para os conflitos ao invés de “tirar a platéia da sua passividade (*)” a coloca numa arena romana: diante da vítima inerme, nada há o que fazer senão juntar-se à turba e virar o polegar pra baixo.
A pá de cal vem de Matheus Nachtergaele, um dos personagens unidimensionais e ocos de Baixio das Bestas, quando proclama, grave: “O bom do cinema é que nele a gente pode tudo!”. Sem risos, ou lágrimas.
Baixio das Bestas é uma experiência cinematográfica questionável e absolutamente dispensável. Aliás, perdão pelo comentário infame, mas o título não podia ser mais preciso, já que eu próprio me tornei parte de um lote que se divide com patadas e relinchos, entre os que fingem que entenderam, os que pensam que gostaram, os que lastimam a perda de tempo e dinheiro e os que saíram antes do final da sessão.

(*) Conforme sinopse publicada no informativo Pará 2000, ano I, nº 03, julho de 2007.
Belém, Pará
01h35

domingo, julho 08, 2007

EU 8

Saí do elevador e subia escadinha vertical chumbada na parede até o ponto mais alto do telhado, sentando numa marquise, a perna esquerda balançando, a direita dobrada, apoio do braço direito, o vento agitando violento meus cabelos. Gosto de me sentir um personagem numa pintura do Caravaggio, assim como gosto de andar nas ruas de madrugada cantarolando e fingindo estar num clipe da Alanis Morrisete.
Apoiei a cabeça na parede e fiquei ouvindo o zumbido do vento e o som do trânsito meio distante, abafado. Ali no alto, o sol quase posto ao fundo, não chegavam sons humanos, só rangidos, estalos, bipes.
Abri os olhos só então eu o vi. No prédio ao lado, também na última laje, o rapaz permanecia de pé, olhar duro, os cabelos negros e finos e lisos agitados com força pelo vento. Como é que eu não o percebera? Estaria ali há muito tempo? Teria me visto? Penso que não. Na verdade nós somos invisíveis uns pros outros; pra alguém mais próximo basta um sorriso bem colocado na cara e uma palavras à toa pra parecer que está tudo bem. Ninguém percebe tua dor e se percebe dá de ombros, “que eu mal consigo resolver as minhas!”
Decidi não me mexer, permanecendo assim ignorado. Fiquei bem mais tempo que de costume, descendo apenas quando o rapaz tinha ido embora. Ainda na escadinha pensei ter visto um vulto num terceiro prédio. Parei e olhei com atenção. Ninguém? Ninguém!
No dia seguinte subi ao telhado como de costume, mas coloquei-me mais à sombra, gárgula, espreitando o rapaz que desta vez, de pé, dava passos vacilantes na direção da beirada do prédio, o olhar perdido, parecendo que queria chorar e prender o choro e gritar e não dizer nada que ali não tinha ninguém e quem é que o escutaria? Também eu prendi um pedido na garganta que ele não fosse adiante; que não brincasse com altura e não desafiasse o vento, ou a boa sorte. Pedi preso na garganta que ele pensasse bem se era aquilo mesmo que ele estava pensando. Como ele eu também me sentia muito só e muito triste e queria colo e que alguém me amasse como eu o-a-os-as amaria. Fiquei imaginando respostas para as perguntas que ele me faria, se soubesse que eu estava li há poucos metros dele, ainda que separado por um abismo “de modo que os que aqui estivessem não poderiam passar para o outro lado e nem os de lá para cá poderiam vir”. Ou eu nem precisaria dar resposta alguma e ele desistiria daquele passeio fatal pelo simples fato de ter sido ouvido. Mas enquanto a minha cabeça pensava todas essas coisas eu fechei os olhos para a pessoa. E seus pés se colocaram na pequena mureta e seu olhar volteou e estava úmido e avermelhado.
Ainda corri na sua direção, gritando que parasse. Em vão. Acompanhei ainda um pouco seu vôo às avessas e depois enterrei o rosto entre os braços para não ver o desfecho daquela tragédia tão minha. E gritei! E meu berro era por demais alto. E não era só meu. De todos os prédios em volta saiam das sombras outros e outras e batiam no peito, dobravam os joelhos e olhando pros céus perguntavam por que e por que e por que?
Corri dali pra não ser o próximo.
Nessa noite eu não dormi e nem nas muitas seguintes. Não voltaria ao telhado enquanto meus ouvidos retivessem aquele grito, enquanto eu lembrasse daquele rosto desconhecido e enquanto eu soubesse quão familiar me eram todos aqueles sentimentos e ausências.
Hoje quando o sol se põe eu me protejo atrás de paredes e janelas.
Hoje, uma linda jovem clara, de cabelos encaracolados e vestido azul subiu pela escadinha vertical chumbada na parede do prédio ao lado do meu, acima da última laje.
Esmurrei a vidraça em prantos e corri porta afora, descendo as escadas quase cego de lágrimas, disposto a invadir a qualquer preço o prédio vizinho.

Belém, Pará, 29 de junho de 2007.
15h56

quarta-feira, junho 27, 2007

EU 7

Pára de me olhar desse jeito.
Pára de me provocar!
Eu sei que não vai acontecer nada entre a gente, mas essa viabilidade mexe com a minha cabeça.
Imagina quantas vezes, desde que tudo isso começou – e foi há muito tempo! – que o chuveiro teve que me lembrar que não havia mais ninguém no quarto?
(- Risos.)

Pára de me olhar assim.
Pára de provocação!
Será que a gente é maduro o suficiente pra encarar uma história dessas?
- Eu sou!
Tu és?! Eu sou?
Tu estás acostumado com essa gente toda atrás de ti, correndo e babando, prontas pra te satisfazer, prontas pra se satisfazer; mas cada uma delas: da paty do cursinho à empregadinha gorda, são só parte de um mesmo rebanho de abate.
Comigo não funciona assim, que eu sempre fui sozinho!

- Pára de me olhar desse jeito!
(...)
- Pára de me censurar que também tiveste participação nisso tudo! Nunca percebeste o jeito que me olhas? Nunca te tocaste do timbre estudado da tua voz? Do teu abraço?
Eu não tive a intenção...
- Ah! Tiveste sim! Cada gesto teu foi pensado, cada palavra estudada. Cada insinuação tinha um objetivo. Me mostraste um mundo diferente do meu que eu nem sei se quero experimentar, mas essa viabilidade mexe com a minha cabeça.

Ficamos olhando um pro outro, a eletricidade dos nossos corpos nos atraindo na proporção direta das nossas massas, na proporção inversa das nossas dúvidas.
Um passo a frente meu. Outro dele.
Pro inferno esse não saber-querer-poder que só se vai se ter certeza se.
Uma leve campainha e a porta do elevador abriu. Passei a mão pelo cabelo, ele estalou os dedos das mãos. A senhora do lado de fora nos olhou de alto a baixo e com um sorriso Monalisa deixou que a porta se fechasse novamente.
Mas aí...

Modificado em 26 de junho de 2007.
23h56

NESSES TEMPOS DE DIVERSIDADE.

Brasil. São Paulo. Avenida Paulista. 300 mil pessoas – número que pode colocar a manifestação paulistana no livro dos recordes – se reúnem sob a bandeira do Arco-íris. Da senhora de 92 anos que defende o amor como um fenômeno universal, àqueles que permanecem distantes em camarotes e calçadas, aos que torcem o nariz, todos viram passar a colorida e musical Parada do Orgulho Gay, realizada dia 10 de junho último; gente extravagante que vai às ruas pedir contra o preconceito e a homofobia.
Há quem ache tudo uma grande micareta. Alguns defendem a Parada como um veículo de visibilidade e luta. Difícil chegar a um consenso no meio de tanta gente.
Dois, ou três anos atrás participei da Parada Gay de Belém e estou inclinado a concordar com os primeiros. Não vi nessa oportunidade uma força política capaz de alcançar os objetivos teoricamente indicados. A bem da verdade, será preciso bem mais do que paradas para mudar uma mentalidade arraigada por séculos de formação preconceituosa e de falta de respeito.
Essa mentalidade tolerante precisa começar em casa, numa criação menos machista onde os filhos varões mais novos não sejam servidos pelas mães. Passa pela escola onde as diferenças sociais, econômicas e mesmo culturais sejam tratadas com ética. Consiste numa visão livre de dogmatismos e ordenanças baseadas em opiniões pessoais de qualquer setor religioso. Solicita a retirada das diferentes mídias de personagens caricatos, bichinhas afetadas e vilões afeminados. Está no entendimento preciso do que é diversidade e na busca de um equilíbrio que jamais significará a padronização de comportamentos, sequer sua aceitação parcial, ou plena. Está sobretudo no auto-conhecimento e no respeito a si mesmo e ao próximo.
Ser. Gay, negro, mulher, idoso, especial, menor, suburbano, analfabeto, caipira, caboclo, muçulmano. Alcançar a plenitude de um estado individual que é a célula-tronco de um organismo vivo e saudável. Ser. Aceitar-se, perceber limites – os seus e os alheios –, ajudar a construir com uma postura digna uma imagem.
Ser e ser feliz, meta de toda criatura humana.

PALCO GIRATÓRIO I

O QUE É O PALCO GIRATÓRIO.

A alma de um povo é a sua cultura. De que adianta desenvolver a indústria e o comércio, aumentar o PIB, democratizar a informática, alfabetizar jovens e adultos, fornecer bolsas assistencialista (mas válidas) para alimentação e vestuário, se aquilo que o povo é se estiola?
Porque sem cultura só resta a uma nação retornar ao pó de onde veio.
Num sentido mais amplo a cultura de um povo é o cabedal de conhecimentos, a ilustração, o saber de uma pessoa, ou grupo social, padrões de comportamento, crenças e costumes que os distinguem. Suas danças, musicalidade, imaginário; as histórias que formam a base da sua literatura, poesia e cinema; os ritmos que unem nossa ancestralidade e futuro.
No Brasil existem vários projetos de incentivo e apoio a cultura. Longe de tentar estabelecer um juízo de valores, reconhecemos que de uma maneira geral esses programas estão muito aquém das nossas necessidades. Nem falo apenas de patrocínios, faixa riscada de um disco de vinil, mas de formação de platéias, desenvolvimento teórico e prático de artistas, mapeamento, pesquisa e divulgação das muitas formas de arte produzidas no país.
Dentre esses projetos destacamos o Palco Giratório, idealizado pelo Departamento Nacional do Serviço Social do Comércio – SESC, constituindo-se num programa de circulação nacional de teatro e dança. Em sua primeira edição, em 1998, apenas cinco estados foram contemplados. Com o passar dos aos outros estados foram aderindo ao projeto e atualmente, apenas Espírito santo e Minas Gerais não participam do Palco Giratório. Em Belém o projeto chegou somente em 2004, onde ocorreu apenas a última das quatro etapas anuais.
Em cada etapa grupos convidados são levados a outros estados onde apresentam seus trabalhos, ministram oficinas e trocam experiências com os artistas locais.
Não existem uma periodicidade específica para cada etapa, que buscam, principalmente atender as demandas dos locais onde ocorrem.
Em 2007, por conta dos dez anos do Palco Giratório, além das quatro etapas tradicionais – maio, junho, agosto – quando o grupo visitante deverá permanecer pelo menos uma semana em Belém – e outubro – irá acontecer uma programação especial, em setembro.
Hoje o Palco Giratório é conhecido como uma rede de difusão de artes cênicas, porque não se limita a apresentações de espetáculos – sempre com um bate-papo ao final entre a equipe e a platéia –, mas inclui em sua programação oficinas, Pensamentos Giratórios – troca de idéias entre diretores visitantes e locais. Um debate com temática referente ao trabalho do grupo; Intercâmbios – onde o grupo visitante assiste ao espetáculo de uma companhia local e é estabelecido um dia para troca de experiências; Intervenções Urbanas – pequenos esquetes apresentados três vezes ao dia em locais de grande movimento e em horários de pico, além de outros programas relacionados, chamados Aldeias – pólos culturais de ação. Em Belém acontece a Aldeia Círio – Mostra SESC Círio de Artes, reunindo música, teatro, cinema, artes plásticas, numa extensa programação.
O Palco Giratório promove também o Festival Nacional Palco Giratório. Para Belém existe uma proposta para 2008 de um grande festival de teatro que reúna 12 grupos que fazem parte do circuito do Palco Giratório, apresentando dois a três espetáculos, além de companhias locais, com trinta dias de programação com apresentações diárias em diferentes pontos da cidade.

O Palco Giratório prima por buscar trabalhos e companhias fora do eixo comercial Rio – são Paulo, priorizando grupos que desenvolvam pesquisas em artes cênicas, empenho e qualidade nos seus espetáculos. Acredita assim valorizar e democratizar as artes cênicas. Todos os espetáculos têm entrada franca, com ampla divulgação pela mídia. Para conseguir esse feito, o SESC conta com recursos próprios – prova de que instituições sérias prezam a cultura de seu povo e reconhecem o imenso retorno que isso proporciona – e apoios. Em Belém o SESC conta com a colaboração do Instituto de Artes do Pará – IAP, Teatro Maria Sylvia Nunes, da Estação das Docas, Hotel Regente e Casarão do Boneco. Mas nas palavras do Ângelo, o maior apoio é mesmo da classe artística, que participa em peso de toda a programação, assistindo, acolhendo, trocando, incentivando.

Colaborou com este artigo Ângelo Franco, técnico de cultural do SESC-PA.

domingo, junho 24, 2007

EU 6

O telefone tocou ainda umas três vezes. Olhei em volta esperando que outro funcionário atendesse, mas todos estavam ocupados. Entre resignado e irritado, tomei o fone e o engatei entre a orelha e o ombro, falando ao mesmo tempo em que digitava intermináveis planilhas. A primeira fala foi dele:
- Esse teu negócio com aquela menina tem me deixado muito incomodado!
Surpreso, parei os dedos sobre as teclas, peguei o fone, olhei em volta. Todos ainda ocupados, mas da mesma forma que eu atendi, outro poderia tê-lo feito.
- Estás me ouvindo? – ele insista do outro lado da linha.
- Estou...! E também estou muito ocupado... a gente conversa depois...
- Queres realmente levar isso a sério?
- Mas eu não...
- Todo mundo viu vocês juntos na sexta!
Perdi a paciência. Nunca gostei de cobranças e aquela me parecia demasiada.
- E daí que eu estivesse querendo-tendo-ficando alguma coisa com quem quer que seja...?
- ... me incomoda...!
- E por quê? Nas tuas próprias palavras... – e a voz já subia de tom, imitando seu jeito rápido de falar, engolindo o começo e o fim das frases – “eu tenho alguém e estou tão feliz que nem cogito outro relacionamento!”. Pois deixa que eu te diga – subindo uma oitava – eu não tenho ninguém e eu não estou feliz. – acentuando os “eus” – portanto tenho todo o direito...
Foi quando me vi refletido na janela feia que dava pro paredão do prédio feio quase colado ao nosso. Em pé, afrouxando a gravata com gana, a mão um punho segurando o fone, o centro dos olhares: maliciosos uns, cúmplices poucos, repreensivos todos.
Sentei devagar na cadeira, baixei a cabeça,curvei as costas e disse num tom grave:
- Alô...
Não havia mais ninguém na linha. Desde quando?
- Filho da puta!!!
Voltei ao trabalho. Voltamos.
Nem um minuto havia se passado quando o telefone ao meu lado tocou novamente. Todos pararam e olharam na minha direção sem levantar a cabeça. Meu coração ficou aos saltos e minha respiração curta queimava meu peito. Embolei papel, abri e fechei gavetas e dei três leves murros na minha mesa.
Voltei ao trabalho. Voltamos. Um ritmo mais lento, aguardando, enquanto o telefone feria os meus ouvidos.
E logo em seguida outro. A mão foi instintiva na direção do aparelho, congelando no meio do caminho ante meus olhos arregalados. E então outro e mais um e todos.
O chefe olhou pelo vidro que nos separava. Cabeças baixas, teclávamos e escrevíamos e calculávamos freneticamente.
Ninguém atendeu.

domingo, junho 17, 2007

“CUIDEM BEM DOS ATORES...”

Shakespeare disse isso e completou que somos, os atores, as vozes do nosso tempo
E que tempos são esses? Desde a mudança de governo iniciou-se uma onda de esperança de dias melhores para a cultura do Pará e percebemos algum movimento, tímido, de reforma. A mudança na direção do Teatro Experimental Waldemar Henrique buscou atender uma demanda da própria classe artística, que se mobilizou – sempre com muita língua e poucas mãos – em reuniões, listas tríplices, campanhas, eleições e, espera-se, tenha-se conseguido um bom resultado. Até o momento não foi possível avaliar isso!
Foi criado ainda um Sistema Integrado de Teatros, o SIT, que sob a direção de Aílson Braga tem desenvolvido trabalhos no sentido de revitalizar, unificar, implementar, conhecer, fomentar – e outros verbos no infinitivo – nossa cultura no que ela tem de plural e de melhor, seja em que corrente atue. Sou amigo pessoal do Aílson, já tive o prazer de trabalhar com ele em vários momentos e reconheço suas qualidades como ator, diretor, dramaturgo, escritor e por isso creio que ele entenda nossas necessidades e se esforce para supri-las. Tarefa inglória. Alçado a essa condição, recai em suas costas os anseios de uma classe desunida que costuma ceifar mais do que semeou. Ao mesmo tempo um povo apaixonado pelo que faz, que abre mão de uma (pretensa) estabilidade social e econômica para levar adiante sua arte. O trabalho que o SIT iniciou ainda não é visível, mas eu ponho muita fé nele.
De cima da ribalta continuamos nós. E temos trabalhado bastante. Somos grupos muito jovens, como a Nós Outros – que prepara A Comédia dos Erros, de Shakespeare – e os Desabusados com seu Quem vai Levar Mariazinha Pra Passear?, veteranos como Cuíra e Gruta – respectivamente com Laquê e A Peleja dos soca-soca João cupu e Zé Bacu –, outros trabalhos, mais recentes, no entanto sob a tutela de grandes nomes do nosso teatro, como O Império de São Benedito, dirigido por Karine Jansen, que ainda montou uma instalação fotográfica sobre a história do teatro paraense, em exposição no Hall do Espaço cuíra e Em Carne e Osso, da Wlad Lima. Gente muito jovem em idade e experiência também dão seus passos, como o Kronus, que dia 29 de maio apresentou para um Waldemar Henrique lotado, Amor Barato, baseado na obra Amor de Perdição, do português Camilo Castelo Branco. O Nós do teatro estreou no último dia 08 de junho Arlequim, servidor de dois amos, dirigido por Rodrigues Neto – um dos espetáculos contemplados com o prêmio Miriam Muniz, da Fundação Nacional de Arte – FUNARTE, no anfiteatro da praça da República. A In Bust iniciou um projeto chamado Sábado Sim, Sábado Não, tem Teatro Infantil no Casarão, apresentando espetáculos voltados ao público infanto-juvenil, que ao custo de um brinquedo, ingressa no universo mágico de lendas, fantasias e bonecos com a própria In Bust e a Entreatos Companhia de Artes, que também se apresenta no Forte de São Pedro Nolasco, na Estação das Docas, com os espetáculos Histórias de Vagalume e Carro-Céu. No último 28 de abril a Escola de Teatro e Dança da UFPA promoveu o primeiro Cena Aberta de 2007, com performances de teatro, dança, música e uma exposição interativa de figurinos dos espetáculos promovidos pela instituição. Na mesma data a EDTUFPA recebeu oficialmente a posse do antigo prédio do MEC, que passa em definitivo a ser um espaço de aprendizado e, sobretudo, do fazer artístico na capital do Pará, celebrado com um abraço simbólico no prédio, que recebeu ainda recursos para a construção de um teatro experimental num de seus galpões. Na ocasião, Miguel Santa Brígida e o ICA (antigo Núcleo de Arte) lançaram O Auto do Círio 2007, com a apresentação do cartaz oficial do evento e um mini cortejo que reuniu personagens das diferentes matrizes artísticas e culturais que formam o espetáculo que vai à cena sempre na sexta-feira que antecede a procissão do círio de Nossa Senhora de Nazaré, em outubro, na Cidade Velha. Recentemente um movimento chamado Arruassa promoveu um encontro de performances e intervenções na praça do Carmo, reunindo vários artistas de Belém, apresentando teatro, música e artes plásticas. Num segundo momento e com o apoio do Cuíra, o Arruassa alterou a paisagem da Primeiro de Março, no Dia do Trabalho, questionando através de pinturas e grafites o abandono e descaso com aquela área da nossa cidade.
Muito mais gente está trabalhando, escrevendo, dirigindo, dançando – salve Ana Flávia Mendes e a Companhia Moderno de Dança! Salva, Jaime Amaral e seus bailarinos –, cantando – Júlio Freitas, Clepsidra, Vinil Laranja –, atuando dentro e fora dos palcos, iluminando – Milton Aires, David Matos, Sônia Lopes, Patrícia Gondim e Oriana Bitar – e sonorizando – Rutiel Felipe, o tico, Léo Bitar, Fábio Cavalcante, Marcus Paulo, João Paulo e Júnior Cabrali, os fantásticos (desculpem a falta de modéstia) músicos da Nós Outros – cenas, sem falar nos cenários e figurinos de Aníbal Pacha e Nando Lima.
Sei que muito mais gente está em plena atividade em Belém, mas por essas coisas que a gente não compreende, não nos conhecemos, não nos sabemos e não divulgamos o trabalho alheio – o que longe de nos roubar mercado, traria maior visibilidade pela multiplicação da propaganda boca-a-boca, defendida por Éster Sá, escritora, atriz e diretora, atualmente na Desabusados.
Aliás, dia desses, por e-mail, uma publicação carioca especializada em teatro me pediu indicação de iluminadores e cenógrafos para uma matéria. Indiquei quem eu conhecia. Quantos mais eu não conheço e não pude indicar? Saiam da toca! Escrevam pra nos-outros@hotmail.com, ou neste blog e deixem seus contatos. Vamos aparecer!!!
Não gostaria de me delongar e ainda nem comecei propriamente a falar do que pretendia com este artigo, mas antes me seria de muita valia se eu soubesse vossa opinião: quando vemos a Bienal de Música abortada por mesquinhas questões políticas, o declínio alarmante do Festival de Ópera – enquanto o de Manaus cresce maravilhosamente. Parabéns pra eles!!! –, os contratempos trazidos pela mudança do nome do concurso de canto lírico Bidu Sayão por questões de marcas – não questiono (muito) isso, apenas cito –, apesar de tanta gente e trabalhos acima citados, mas pouco vistos, pelo nosso descaso em formar platéias que nos assistam e não questionem boquiabertas que o ingresso ao espetáculo seja cobrado, pela ainda falta de espaço para ensaios, pela sempre dificuldade na captação de recursos para nossas montagens, qual é o futuro da Arte em Belém e no Estado do Pará? O que temos pra oferecer e o que queremos de volta?
Por favor, respondam. Usem este espaço, ou escrevam para nos-outros@hotmail.com.

sábado, junho 02, 2007

EU 5

O porteiro sequer olhou na minha cara. Tão automático quanto o portou, clicou meu acesso e voltou à TV com bundas e peitos sacolejantes.
No hall do primeiro bloco um casal de namorados, um rapaz ao celular, gesticulando. Ninguém viu a sombra que passou. “Fosse uma cobra...” diria minha avó num outro contexto.
O elevador subiu segundos antes que eu o alcançasse e como foi até o último andar, demorou a voltar. Esperei que ele trouxesse alguém e seria quase impossível abrir a porta e não dizer oi-boa-noite-e-aí-como-vai. Vazio, claro!
Segurei ainda a porta alguns minutos esperando que alguém chegasse e quisesse subir. Duas da manhã. Quem viria? Suspirei. Subi.
Na metade do caminho enfiei os dedos nos botões, travei o elevador entre dois andares e o mantive assim. Sorri ante meu próprio ato terrorista, meu momento de mando; rei de um cubículo prateado com súditos numéricos: x pessoas, ou tantos quilos. Até que era muita coisa!
O tempo foi passando. Dei de ombros.
Dane-se o porteiro mal-humorado recebendo dezenas de chamadas de gente querendo descer e reclamações de gente querendo subir. Dane-se o síndico acordado pela impaciente do 407 gritando que o elevador quebrara de novo. Às favas a gorda do 703 que só faz compras em supermercados 24 horas, bobes na cabeça. Pro inferno as gêmeas do 202. dollies mal-criadas e choronas à caminho da escola. Foda-se o boyzinho do 805, o tanquinho aparecendo toda vez que ele levanta os braços pra arrumar as mangas da camisa. E ele as ajeita muitas vezes. Morra da infarto a cobra do 501 comentando com a empregada sonolenta que a putinha do 304 já estava de sacanagem com o cara casado do 906.
Dane-se eu, se acho que alguém vai se incomodar com o elevador, comigo, ou com o que quer que seja.
Cinco da manhã. Quem?!
Suspirei. Desci.


Belém, Pará, 01 de junho de 2007.
15h54, modificado em 02.06.2007, 01h13.

segunda-feira, maio 21, 2007

EU 4

O ônibus dobrou à esquerda e naquela rua o sol recém parido subia forte. Pego de surpresa, fechei os olhos, mas a luz que avançava pelas frestas das minhas pálpebras criava para mim um mundo laranja levemente sanguíneo. Enterrei a cabeça entre os braços, contra o encosto do banco da frente. Pouca melhora. A luz me invadia por todos os lados.
Sempre disse que não queria viver longe da minha terra e se preciso fosse um afastamento, queria tornar a ela antes de morrer e aqui terminar os meus dias, como os velhos elefantes, ou os peixes piracema acima. E por mais contraditório que isso possa parecer, o que mais eu sentiria falta do berço seria a luz. Uma luminosidade quente, branca, que dá às mangueiras um tom esmeralda, fazendo brilhar as Marias dos poucos azulejos sobreviventes, tornando o asfalto um rio barrento e duro. Uma luz que esquentava brotando poças nos sovacos, costas, nas barrigas proeminentes, escorrendo pelas pernas com um certo nojo salgado.
Ontem, na escuridão da minha noite insone, o que me iluminava era a tela pela qual conversávamos; desde há muito, a única forma de contato, nosso único elo. Eu poderia encarar isso como uma fuga do momento em que diríamos o que era evidente? Que não mais me querias, ou que nunca me quiseste, que eu te deixei faltar algo, ou que exagerei nos cuidados? Que ele te fazia mais feliz que eu... que o deixaste, encantado pelas minhas palavras melífluas, vazias, o que só tardiamente descobriste. Ou talvez o vazio fosse teu, pois te jogaste com um furor apaixonado, típico da juventude, bebendo direto na veia, deixando a mim, minha cama e meu dia exaustos quando partias com essa luz azul-dourada do nascer do sol.
Ontem eu não dormi. Encerrar a conexão fora um presságio, minhas fundas olheiras e os pequenos vasos nos olhos aumentando minha fotofobia mesmo debaixo dos óculos escuros.
Ontem tu dormiste? Se ao te encontrar estiveres bem disposto, os olhos castanhos ainda mais claros pela luz branco-quente da minha cidade natal; se te sentares sorridente, mastigando salgadinhos, saberei que acabou.
Desço do ônibus desejando te encontrar mortificado, um boné escondendo os cabelos despenteados, a camisa – a primeira que encontraste – meio amassada e um pouco torta no corpo. Ao mesmo tempo entro numa lanchonete, lavo cuidadosamente o rosto, arrumo meticuloso os cabelos e as roupas. Examino meu andar, o hálito, o pulso. Ensaio sorrisos e cumprimentos másculos.
Depois de longos minutos e por causa do chuvisco, vou embora.
Na caixa de entrada, o recado: “Desculpa, não deu. Dormi demais!”
Pela janela os astros vaticinavam mais uma noite em claro.

Belém, Pará, 18 de maio de 2007 AD
11h01

quinta-feira, abril 12, 2007

EU 3

Subi as escadas pesado. Sapatos nas mãos, livros no sovaco.
A porta do meu quarto escuro, aberta e convidativa, anunciava cama, sono e repouso há muito esperados.
Mal eu entrara no quarto e a luz se acendera, senti o impacto seco e estalado sobre a boca. Assustado, respiração presa, olhei em volta. Nada! Imediatamente o cérebro raciocinou: uma barata! Daquelas enormes, pretas e voadoras, que Satanás botou na Terra pra separar homens de meninos e pôr à prova as mulheres.
Mas onde estaria a desgraçada?
Patético, fiquei girando em torno de mim, olhando carrancudo cada canto, enquanto a manga da camisa esfregava repetidamente os lábios, tentando livrá-los da imundície daquele que e o mais asqueroso de todos os insetos. (Claro que eu odeio infinitamente mais as aranhas, mas estas, apesar de artrópodes, não são insetos, mas aracnídeos da ordem araneidos.)
Pois bem. Patético, fiquei girando em torno de mim, olhando carrancudo cada canto, quando um arrepio percorreu minha espinha. Matreira, a barata saía de dentro do sapato que eu segurava e subia vitoriosa pelo meu braço. Eu tinha lhe dado guarita; eu lhe dera asilo. Agora ela reclamava aconchego.
Agitei os braços lançando inseto, sapatos e raiva pra longe. A barata caiu no chão, arrumou as asas cor de sombra, aprumou as antenas e fixou os ocelos em mim. Durante vários minutos ficamos assim, face-off, inimigos declarados. Eu, animália, primata, superior em tudo, raça dominante pela tecnologia e inteligência, visão em cores, fala articulada, inconsciente de mim. No canto oposto ela, a barata, animália, blattaria, apenas alguns gramas, de uma classe numericamente capaz de dominar meu mundo civilizado, rudimentos de sistema nervoso, inconsciente de si.
Não éramos, afinal, tão diversos um do outro.
Ainda assim exigia o mundo que eu a destruísse e prevalecesse sobre a mesquinhez da sua existência. Avancei lento, apanhei um dos sapatos. Empertiguei o corpo. A barata agitou as asas, pulou para a parede e dali para a janela aberta, à escuridão e ao vento fresco da madrugada.
Eu fiquei ali parado contra as grades do meu quarto, enfim vencido.
Sem poder voar, minha inconsciência pesava mais que meus exaustos passos escada acima.

10.abril.2007 – 10h56
Modificado em 12.abril.2007 – 02h04

quarta-feira, abril 04, 2007

AH, SENHOR, A VAIDADE!

Muito já se falou deste que é um dos sete Pecados Capitais e nas artes ele parece assumir um caráter quase de obrigatoriedade. Astros e estrelas se esmeram em exigências absurdas e comportamentos anti-éticos em nome de suas famas, crentes no poder que lhes foi outorgado pela admiração pública. Julgam que podem agir livremente, quando em verdade precisam ter o dobro da responsabilidade.
Não foi nem um nem dois que tombou! Um caso clássico é do Kevin Costner, alguém que eu julgava um bom ator e que fez filmes que me encantaram e emocionaram, só pra citar Dança com Lobos, um dos primeiros exemplares desses filmes (dizque) proposta falados em línguas diversas do inglês, idioma oficial dos egípcios da I Dinastia aos Klingons. Com O Segredo das Águas e O Carteiro ele enterrou sua carreira com os milhões investidos numa megalomania suja e feia. Recentemente uma crítica sobre Superman – O Retorno, comentava a vaidade do diretor Brian Singer – outro que eu considero um ótimo profissional e que afirmava, nunca tinha me decepcionado – em fazer do Escoteiro de Metrópolis em deus, em cenas que traçavam paralelos esdrúxulos entre ele e o Cristo, além de outros pecados. Penso que Singer errou feio mesmo, da escolha do elenco ao uso spilbergueriano do cinema.
Então vislumbrei mais uma queda: Apocalypto, de Mel Gibson, é um filme horroroso! O americano criado na Austrália fez uma carreira brilhante em Hollywood. Começou sendo dublado em Mad Max, porque ninguém entendia o que ele dizia no inglês “complicado” da Oceania, passando por momentos memoráveis do cinema-pipoca – os tantos Máquina Mortífera – até a fundação de sua produtora, a Icon. Gibson fez de tudo: drama, comédia, suspense e até Shakespeare. Produziu, dirigiu e protagonizou um dos campeões do Oscar, Coração Valente, desses épicos tão bons que não podem ter continuação. Daí investiu nas línguas mortas e levou às telas em aramaico e latim A Paixão de Cristo, onde já brotava a semente da árvore na qual ele se enforcaria. Sectarista religioso e extremista foram adjetivos que se juntaram ao homofóbico e intransigente, mas o alarido em torno do filme só fez aumentar a propaganda e os outros estúdios, espertamente, inauguraram setores que trabalhariam filmes com temáticas semelhantes, ainda que menos, digamos, artísticos, para garantir o leite das crianças e colaborar com a evolução moral da humanidade.
Apocalypto deveria mostrar outra dessas histórias de sofrimento e dor e começa com uma frase que demonstraria a que o filme veio: “Uma nação só pode ser destruída se já estiver consumida por dentro”. Mais ou menos isso! O que se vê, no entanto, é uma piada de péssimo gosto, com referências sexuais dignas de A Turma do Didi, filosofia de almanaque, atuações inspiradas nas modelos das novelas globais das oito; filmado com um grande contingente de populares, falado nas línguas nativas, o filme começa num ritmo lento, apresentando aqueles que seriam as vítimas dos vilões malvados e facínoras como um povo alegre, orgulhoso de sua força e tradição, familiar, amoroso. No segundo momento, somos apresentados ao lado negro da força: os maias, gente sem coração (será por isso que eles arrancam o dos outros?!), violenta, debochada, sensual, supersticiosa, canalha mesmo! Nesses dois momentos vemos os cenários pífios – digitais, ou de pau a pique, mas pífios. Daí começa o momento corra-lola-corra (sem o charme germânico) e o típico cinema americano: o exército de um homem só, abatido, ferido, de quem se tirou tudo, ou quase tudo, que depois de levar muita peia destrói na moral a cambada que o persegue. O filme termina onde a propaganda dizia que ele começaria: a chegada dos espanhóis, o verdadeiro inimigo, mas daí já tinham passado umas duas horas e seria necessária uma continuação, que Deus nos proteja! A imensa samaumeira que tomba lá pelas tantas (pra que essa cena mesmo?) há de erguer-se para servir de cadafalso ao cara que sabe o que as mulheres gostam.
No começo deste texto eu falava da vaidade. Mel Gibson em Apocalypto é um típico exemplo disso. Outros tantos artistas criam obras que só eles mesmos entendem. Defendo que a avaliação de uma obra de arte seja antes sentimento do que razão e que o distinto público não precisa entender de escalas cromáticas, semi-tons, etnocenologia para apreciá-las. Igualmente defendo que é preciso pensar no público, a fim de evitar resultados tão obscuros, acessíveis quiçá à pitonisa de Delfos. Da mesma forma defendo que precisamos tirar a platéia da mesmice. Dia desses fui chamado de vaidoso por defender um trabalho que fugisse do lugar-comum, porque esse lugar-comum é o que o público deseja. O povo que assiste Pé na Jaca, talvez. Acredito que as fórmulas requentadas das novelas – atualmente o pior produto da cultura de massa em exibição na TV – são a porta larga depois de um dia exaustivo de escritórios e paradas de ônibus. Mas a ousadia não seria bem vinda? Pequenas jóias produzidas aqui e ali não encantam pela antevisão do novo e/ou do diferente?
Ao fugir do clichê podemos sim optar pelo hermetismo e do alto da nossa arrogância exigir que as pessoas subam ao nosso empíreo por um fio de teia. Mas igualmente podemos oferecer-lhes novos sabores, como descobrir que a melhor canção do CD não é aquela que toca na rádio.
A vaidade é sim inerente ao artista, pela busca do belo e do perfeito. Pecamos porque ao filtrar o belo e o bom pelos nossos humores mortais conseguimos apenas resultados pálidos que, no entanto, enfiamos goela abaixo do povo, sem discernimento.
Contraditoriamente, não defendo que haja algo de bom na vaidade, mas abraço a causa da busca, do experimento; de buscar as pérolas no fundo do mar escuro, mesmo que à custa de todo o ar do nosso peito.

quarta-feira, março 28, 2007

EU 2

Quando a gente olha pra cima nessas horas em que o dia vai nascendo, pensa poder acompanhar o espetáculo desse sol que desabrocha, despetalando luz por sobre a Terra. Vã ilusão! Num momento o céu é azul anil, escuro, pesado e as estrelas ainda estão lá, pálidas, mas presentes. Logo depois o céu está raiado de tons de laranja e de vermelho. Nenhuma estrela mais é visível. E então o sol irrompe com força pintando o alto de azul celeste, desses tons angelicais que apertam o coração. A luz, mesmo que insista em não se recolher, tem de se acomodar a sua posição de coadjuvante, apagada como um fantasma.
Num desses reveillons quando todo mundo decidiu sair, uns pra praia, outros pra ver uns tais fogos de artifício, outros pra cama mesmo – que dia primeiro de janeiro não tem nada de diferente –, sentei-me na varanda do meu quarto e decidi olhar o céu e perceber a noite que se ia e o dia novo do ano novo que chegava. O silêncio era quebrado pelos risos, fogos, músicas, festas. Um carro que passava, aplausos, uma taça que quebrava, um palavrão, ou dois que sabe; até mesmo alguns zumbidos de inseto. Vento nas folhas. Minha respiração.
O céu não tinha nuvem alguma. Consultei o relógio. Duas horas. Li, ouvi música, cochilei. Três horas! Tomei água, mastiguei qualquer coisa e com os olhos injetados vi a carta sobre a cama. Quatro horas! Num suspiro desalentado reli pela enésima vez a despedida e olhei a foto em que, abraçados, nunca imaginaríamos que hoje não fôssemos mais nós. Cinco horas. Falta pouco! Concentrei-me em, com as mãos, recortar aquele retrato, separando ali o que já não tinha mais nenhum nó.
Pensei que eu também não pudera perceber como as coisas tinham mudado entre a gente. Não prestara atenção, ou não tivera tempo?
Com as duas metades da foto nas mãos sentei novamente em minha cadeira e concentrei-me no espaço, esforçando-me para sequer piscar, e fui vendo milhares de mãos solares espalharem suas bênçãos pelo céu. Sorri.
Então baixei os olhos para os teus naquela metade de papel brilhante (um instantinho só!) e isso foi o bastante para que ao levantá-los eu tivesse perdido aquela fase final em que é dia e é noite. O sol já tinha se instalado e aquecia o meu rosto.
Sorri novamente. Agora entendia perfeitamente porque tinha te perdido!

sábado, março 17, 2007

EU 1

Da cama larga onde eu dormia podia ver pela janela a parede.
Nela um dia eu vi nascer uma dessas plantinhas impertinentes cujas sementes vindas sabem-se Deus de onde, instaladas, insistem em brotar. Esta brotou nas trincas do cimento.
Primeiro eu pensei em arrancá-la, impulso inicial. Depois, em cultivá-la, tomado de paixão pela sua comovente coragem. Por essa mesma coragem decidi deixá-la à própria sorte. Que fizesse por merecer estar ali.
E não é que a danada vingou?! Virou suas folhas pro sol, cresceu na direção na chuva e fincou raízes sabe-se Deus onde.
Um dia inventou de dar flor. Acompanhei aquela gestação com interesse e carinho, borrifando água fria em suas folhas miúdas com um frasquinho de desodorante, espantando formigas com borra de café. Por dias e dias ela ficou ali, dobrando delicadamente as pétalas dentro de um botão verde claro, miúdo e solitário.
Por fim abriu-se a flor, vermelho claro, um pouco laranja, riscada de amarelo por dentro. Quente! Maior do que o botão denunciava e mais bela do que eu jamais imaginara, buscava compensar nas cores detalhadamente distribuídas e nos brilhantes riscos padronizados de suas pétalas a falta de perfume.
Chorei emocionado.
A flor abriu cedo e logo ao final da tarde murchava. Suspirei resignado.
Mas ao olhar pela janela no dia seguinte vi que toda a planta havia morrido, exaurida.
Fechei os olhos por algum momento.
Antes de fechar definitivamente aquela janela depositei o cadáver verde musgo ao meu lado, puxei as cobertas e fechei os olhos.

terça-feira, março 06, 2007

SOB O PESO DA CRUZ

Cada vez que olhamos uma coisa, ela ganha um novo significado. Talvez por isso o poeta Sthépane Mallarmé tenha dito que nomear um objeto é destruir três quartos do prazer que reside no adivinhar gradual de sua verdadeira natureza.
Quantas vezes eu já não havia lido os poemas de Cruz e Sousa (1861 – 1898), poeta catarinente que introduziu em nosso país o simbolismo e foi o seu representante mais significativo. De influências realistas, compôs textos marcados por profundo pessimismo e materialismo; dos parnasianos, demonstrou excessiva preocupação com a forma. Aliás, a forma era algo de profunda importância para os simbolistas, com a poesia e a música expressando os mistérios da alma humana. Não é à toa que as aliterações tão comuns nos textos simbolistas nos remetem a uma musicalidade que por vezes extrapola o próprio sentido das palavras. Quantas vezes não tinha eu lido seus versos, gostado sim, mas nunca apreendido um sentido mais profundo em suas palavras. Nunca tinha me identificado com ele e com sua poesia como me envolvi recentemente. Na busca de material para um novo espetáculo da Companhia Teatral Nós Outros garimpávamos vários autores na busca de textos e idéias. Encarreguei-me do Cruz e Souza porque disse que queria falar sobre gente e ele pareceu que me proporcionaria isso, que também tenho lá minhas inclinações pessimistas.
E como o próprio poeta desci aos seus infernos de sombras e azeites, não para encontrar Baudelaire, mas para achar a mim mesmo capro e revel, com os fabulosos cornos, num momento de saudade e tédio, de grande tédio e singular saudade (...) já das culpas sem remédio. E me vi lendo por todos os lados, em casa, ônibus, consultórios, ruas e em voz alta, que não há como ler um poema sem escutar a própria voz que o canta. E lê-los repetidamente, porque a cada nova leitura a tal música simbolista aparecia em acordes diferentes e eu, ator, queria saber como ela seria melhor executada.
E fiquei absolutamente fascinado. Absolutamente atado por uma trança negra e desmanchada a essa flor branca como um jarmim-do-Cabo cujo perfume me inquietou sobremaneira.
Inicialmente não mais levaremos Cruz e Sousa aos palcos. Pelo menos não por enquanto. O diretor deste espetáculo, Adriano Barroso, crê que nos falta estofo e entende nossa ansiedade (minha ansiedade!) em querer experimentar novos campos além do que tenho feito. Seu conselho reside em aprofundar mais em mim mesmo, como pessoa e sobretudo como profissional do teatro, para dar um passo tão largo com absoluta segurança. Experimentar sempre se pode, mas os resultados poderiam ser questionados e pesa o nome daquele eleito para nos dar as palavras que sairiam de nossas bocas. Acedi. Iniciamos um processo muito interessante de estudo do que é o teatro e suas muitas nuances e possibilidades. Na verdade, retomamos o que fizéramos em Medéia – A tragédia do feminino ultrajado, agora com maior maturidade e leveza e um desejo muito maior de fazer do teatro a arte de pescar homens e conduzi-los pela mão a um labirinto onde tudo o que existe é o que ele – homem comum – quer ser, mas não pode. Ou não deixam!
Cada vez mais essa arte - minha arte! – se entranha em mim e cria frutos, meu caminho onde encontra-se o tesouro pelo qual tantas almas estremecem. Mais eu descubro que quero ser ator e que isso é o que melhor eu sei fazer e quero compartilhar isso com o mundo, seja pelo simbolismo do Cruz e Souza, pela prosa urbana, solitária e caminhante de Caio F., pelos desvios trágicos de heróis, ou semi-deuses e nos qüiproquós vitorianos. Quero afundar o povo desta cidade em Sertões e Amazônias, trancafiá-los em castelos, porões e matas escuras, cercá-los de anjos e demônios, fadas e feitiços, danças, mamulengos e muita música, aquisição recente e benfazeja da nossa companhia na figura de quatro criaturas de talento ímpar e ainda desconhecido.
Vamos nos encontrar pra que eu lhes mostre objetos estranhos e palavras aparentemente sem sentido, para que cada um de vós possa descobrir (-se).
E gozar do vinho sempiterno de Baco.
Evoé!!!

Despeço-me com dois momentos muito distintos de Cruz e Souza: um quando ele ainda vivia sobre a Terra e outro, pela psicografia de Francisco Cândido Xavier, coletado do Parnaso de Além-Túmulo, primeiro livro publicado pelo médium mineiro.

Anima Mea (Últimos Sonetos, 1905)

Ó, minh´alma, ó, minh´alma, ó, meu Abrigo,
meu sol e minha sombra peregrina,
luz imortal que os mundos ilumina
do velho Sonho, meu fiel Amigo;

Estrada ideal de São Tiago, antigo
templo da minha Fé, casta e divina,
de onde é que vem toda esta mágoa fina
que é, no entanto, consolo e que eu bendigo?

De onde é que vem tanta esperança vaga,
de onde vem tanto anseio que me alaga,
tanta diluída e sempiterna mágoa?

Ah! de onde vem toda essa estranha essência
De tanta misteriosa transcendência,
Que estes olhos me deixa rasos de água?!

Alma Livre (Parnaso de Além-Túmulo, 1978)

Um soluço divino de alegria
Percorre a todo Espírito liberto
Das pesadas cadeias do deserto,
Desse mundo de sobra e de agonia.

A alma livre contempla o novo dia,
Longe das dores do passado incerto,
Mergulhada no esplêndido concerto
De outros mundos, que a luz acaricia!

Alma liberta, redimida e pura,
Vê a aurora, depois da noite escura,
Numa visão mirífica, superna...

Penetra o mundo da imortalidade,
Entre canções de luz e liberdade,
Forçando as portas da Beleza Eterna.

Citações dos poemas Satã e Serpente de Cabelos (Broquéis, 1893); Flor do Diabo (Faróis, 1900); Caminho da Glória (Últimos Sonetos, 1905) e de No Inferno, prosa poética publicada em Evocações (1897-1888)

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

PALAVRAS POR TRÁS DOS CORAÇÕES.

Este texto foi escrito para ser publicado no programa oferecido ao público quando das apresentações 2006 - 2007 de O Glorioso Auto do Nascimento do Cristo-Rei. Reflete um momento por que passava a Companhia Teatral Nós Outros e minha própria visão do teatro.
Estejam comigo neste devaneio.
Evoé!!!


O Bem e o Mal. Água e azeite. A Luz e a Escuridão.
Tão diametralmente separados quanto irremediavelmente reunidos, pois é exatamente a antítese de um que faz a possibilidade do outro.

O Glorioso Auto do Nascimento do Cristo-Rei vem falar destes contrastes e mostrar que nem mesmo na letra, na ribalta, existe quem caminhe sobre a Terra que abrace um estado (conceito, dogma...) em detrimento total do outro. Que cedemos às obrigações, mas pesamos valores; tomamos decisões movidos pelo incontrolável desejo de sermos felizes e, portanto, acreditamos estar fazendo nosso melhor. E muitas vezes estamos!

Para dar vida a esses personagens míticos como íntimos, nós, atores. Perfectíveis como eles, pela nossa humanidade. Arrogantes e vaidosos como apenas nós sabemos ser! Num processo lento que só funciona se dermos nossas mãos suadas, construímos este espetáculo na esperança de alcançarmos vosso coração e entendimento, forrando com nossa história as personalidades que representamos, usando a música e a dança como indutores das nossas sensações, materializando e metamorfoseando o que antes estava apenas no plano das idéias.

Enfim curvamos nossas cabeças ao vosso aplauso, pois não há quem melhor nos julgue do que vós.
Porque no Teatro, como na Vida, como em Tudo, o joio cresce estreitamente abraçado ao trigo!!!

domingo, janeiro 14, 2007

OS SETE SELOS

Este texto foi originalmente escrito para integrar a campanha da blogueira Luciane Fiúza de Mello, ou simplesmente Lu.
Visitem o blog dela e leiam as demais virtudes já postadas e outros textos. Prestigiem!
Transcrevo este, cria minha, para vossa apreciação.

1. HONESTIDADE: Eis que um homem saiu a caminhar. Tinha ele quatro anos para dar a volta ao mundo, retornando ao ponto exato da partida. De si, um facho de luz, sapatos confortáveis, um cajado onde se apoiasse, a roupa do corpo, mãos operosas e uma cabeça fervilhando de idéias. Deveria atender a demanda de muitos, dormir pouco, ouvir atentamente, falar com clareza. Essa talvez a sua maior virtude: suas palavras não teriam sentido diverso daquilo que expressavam e por isso ele tinha sido escolhido para essa missão. Já outros o antecederam e falharam exatamente neste ponto. O homem sabia – como seus antecessores – que as pessoas gostavam de ouvir promessas, porque é da natureza humana ter esperança; mas era seu dever ir além dos dizeres, não iludindo o povo com o ouro falso da oratória vã e não comprometendo assim aquele que lhe enviara.

2. SIMPLICIDADE: Consciente do poder que lhe fora conferido, o homem tivera dois caminhos a escolher: deixar que o povo fosse até ele, que os receberia em dia e hora acertados, atrás de uma grande mesa de madeira negra e lustrosa. Ricamente vestido, ele sabia que muitos sequer levantariam os olhos na direção do seu rosto, balbuciando meios pedidos e menosprezando suas próprias necessidades. Por outra, sairia ele mesmo do templo. Nessa condição, estava certo do escárnio de muitos que vêem a forma antes do fundo, e mais certo ainda de que tudo o que lhe fosse dito seria a expressão da verdade, porque também é da natureza dos homens se tratarem com irmãos quando se sentem acolhidos entre os seus pares.

3. EQÜIDADE: A ordem do seu senhor era de que servisse a todos e a todos contemplasse. Ele dissera ao homem que haveria grandes desejos, anseios equivocados, necessidades reais, pequenos favores. Cada um deveria ser recebido e justificado. Atendê-los significava buscar o interesse coletivo: um único e soberbo edifício, ou vários menores e confortáveis, formando diversos núcleos de trabalho e estudo? Pautas distribuídas pela relevância da obra, ou pela pomba de seus participantes? Áreas públicas livres, limpas e seguras, ou logradouros cercados de grades e taxas? Garantir o espaço de cada um e os recursos necessários a sua manutenção era um trabalho complexo, mas perfeitamente exeqüível.

4. SOLIDARIEDADE: Se é verdade que tempo é posto, é igualmente verdade que se alguém, ou grupo não receber oportunidades, nunca terá adquirido experiência bastante. O homem então precisaria dar chances a todos e premiá-los pelos seus esforços e méritos. Algumas decisões não pereceriam justas. Todas seriam questionadas, por ser ainda da natureza humana pedir mais do que precisa e colher onde não plantou (e isso não é privilégio dos menos humildes!), mas sua decisão seria acatada, não que ele fosse infalível – porque humano –, mas porque o precedia a fama de reto e justo.

5. RESPONSABILIDADE: Firmemente preso à cintura o homem levava um saco de couro cru. Nas dobras da roupa, papel e pena. No saco, parte do erário real que se destinava às suas múltiplas atividades, que eram cuidadosamente registradas. As moedas tinham uso variado, mas um único destino: tornar o povo mais ciente de si enquanto cidadão. Como um lavrador, o homem espalhou livros, mapas, tratados, códigos; mandou construir salas de estudo e trabalho, bibliotecas, móveis, instrumentos musicais, peças de calçado e vestuário. Distribuiu tintas, telas, pincéis e sapatilhas. Deu ainda condições de uso aos espaços existentes, seja por equipamentos, seja por recursos humanos qualificados e dedicados. Através de edital afixado em placa pública, qualquer pessoa poderia concorrer à ajuda real, reforçada por súditos abastados e zelosos do seu país, por entenderem que o povo letrado e culto é mais livre e mais feliz. E eram os próprios financiadores que decidiam com quanto e a quem iriam auxiliar. Em cada cidade havia um festival e bastava dobrar uma esquina para ser tomado pela música, poesia e teatro. E mesmo na maior festa religiosa do reino, quando cada grupo homenageava a padroeira conforme sua própria filosofia, havia um cuidado especial do senhor – não sem alguns olhares de esguelha! – para um grande cortejo promovido pelos artistas. E era tão belo e verdadeiro o espetáculo que ele ficou conhecido por todo o país e muito além dele, atraindo os descontentes, pois é da soberba humana denegrir, macular, ou destruir o que é feito com alegria e fora de levianos interesses.

6. DISPONIBILIDADE: Algumas palavras não eram jamais pronunciadas pelo homem: “Não é possível!”,“Não há condições!”, “Não temos espaço, ou verba, ou pessoal para isso...”,“Seu pedido não atende o perfil do nosso trabalho...”, “ Lamentamos informar...”, precedido pelo irritante “Neste momento que o parabenizamos pela iniciativa...” Por outra, seus auxiliares possuíam carga horária a cumprir e a executavam incontinenti, pois deveria ser da natureza humana ter responsabilidade com o que lhe é próprio e maior responsabilidade ainda com o que é alheio. E, mãos estendidas e sorriso franco – às vezes sob forte cansaço! – diziam sempre “Pois não?”, “Em que posso ajudar?”, “Sou eu quem deve ajudá-lo nessa tarefa!”, “Por favor, disponha de meus serviços!”, “Todos aqui são responsáveis por todas as atividades do espaço!”, “Será providenciado imediatamente!”. Os bons serviços de uns tornavam fácil o bom serviço dos outros e todos terminavam suas atividades com a certeza do dever cumprido e a felicidade natural que isso acarreta.

7. CONFIABILIDADE: Eis então o homem de volta ao local de onde partira quatro anos antes. Chegara no dia e hora combinados. Nada de seu se perdera porque por onde passava havia quem o acolhesse e o salário por seus serviços. Nada de mais nem de menos. Estava cansado, é certo, mas realizado. E o povo todo lhe pediu que ficasse e que estivesse com eles mais quatro anos. Com um sorriso bondoso o homem recusou. Já cumprira sua cota na obra do seu senhor e era tempo de ser substituído por outro, mais jovem, com um novo entusiasmo, novas idéias e mãos ainda mais ativas. Seu senhor também descansaria, pois o cetro que passa de mão recebe impulso novo e jamais se acomoda!