sábado, julho 27, 2013

EU 33

Dies Irae. “É como acordar de um pesadelo”, escrevi. Pus a caneta em suspenso e fiquei olhando as paredes por tanto tempo que o suco (intocado) ao meu lado se diluiu e transbordou. Recolhi com vagar algumas páginas manchadas, olhei-as com detida atenção e o que eu julguei dispensável juntei à pilha de bolas e picados, provocando um pequeno desmoronamento. Segui com os olhos uma bolota amassada com tal precisão que se poderia julgá-la perfeitamente redonda. Ela correu entre seus pares, deslizou pelas lajotas e foi bater na porta trancada. Pela fresta rente ao chão uma luz se acendeu de súbito. Ato contínuo, apaguei o abajur, prendendo a respiração, e só quando o fôlego me faltou e a vista já divisava os vultos dos poucos móveis do quarto é que tornei a acendê-lo. Rex tremendae. Fui ao banheiro e fiz um varal com as outras páginas. As que supus importantes. Algumas seriam reescritas antes de serem tomadas pelas formigas. Algumas folhas exibiam círculos cinzentos com bordas esverdeadas. Outras, bordas marrons e outras ainda avermelhadas. Estas se espalhavam como rachaduras entre a minha caligrafia. Aqueloutras eram como mórulas. As primeiras eram como um bosque visto do alto. Era preciso se abaixar e desviar para chegar do outro lado do cômodo, alcançar a pia e deixar a água fria escorrer pelo ralo, entre os dedos, pela barba enorme, de novo pelo ralo até, por fim, recolher-se novamente cano adentro. O cheiro amargava a boca. Empertiguei o corpo e contemplei o espaço como um suserano abastado... generoso... compassivo... misericordioso... Confutatis. Alguém chamou meu nome? Alguém entrou no quarto? Alguém leu o que eu tinha escrito? Haveria alguém ali do outro lado da parede decorada com delicados lírios? Haveria alguém no corredor, na escada, na sala de estar, na calçada em frente, no bairro ao lado, na cidade próxima, além do oceano...? Haveria alguém neste mundo? Haveria alguém no Outro? Havia eu? Pus a cabeça fora do banheiro. Lacrimosa. Nada. Pela fresta da porta, rente ao chão, não entrava mais nenhuma luz. Sentei à mesa, tomei da caneta, outra folha de papel. “É como acordar de um pesadelo”, escrevi. Amassei a folha com tamanha precisão que se poderia julgá-la perfeitamente redonda. Lancei-a entre seus pares provocando um pequeno desmoronamento. Mais uma folha de papel. Fiz uma tira, enrolei. Comi. Mais uma. Outra. Outras. E outras e não parei mesmo quando o fôlego me faltou e a vista mal divisava os vultos dos poucos móveis do quarto. Era como acordar num pesadelo. HUDSON ANDRADE 27 de julho de 2013 AD 10h10 CRÉDITO DA IMAGEM: http://www.google.com.br/url?sa=i&rct=j&q=&esrc=s&frm=1&source=images&cd=&cad=rja&docid=M5-zXBwvVDDJ3M&tbnid=Nzb5guUsKvIAaM:&ved=0CAUQjRw&url=http%3A%2F%2Fluizmeira.com%2Ffungos.htm&ei=mc_zUbv9I4nO8QScrYGoBQ&bvm=bv.49784469,d.eWU&psig=AFQjCNGfrEfD5hVPZwx6eCzQbETNUpHH_A&ust=1375019222517463

domingo, maio 12, 2013

AINDA É CEDO

O Brasil foi descoberto em 1500 por Pedro Álvares Cabral e fizemos parte da coroa portuguesa até que D. Pedro I, num arroubo, proclamou a independência do país. Esse fato tão magnificamente retratado por Pedro Américo (1888), em exposição no Museu Paulista (antigo Ipiranga) hoje em dia equivaleria a um filho de governador tucano parar seu carrão em plena Doca atrapalhando o trânsito e, entre os nativos que tremem, gritar: “Aí, governo é o caralho! Ninguém manda em nóis. Borá caba queça treta!”. O povo daria vivas (alguém gritaria “leião” lá no meio) e todos quebrariam suas garrafas de bebida alcoólica. Depois voltariam aos seus ataques epiléticos e o filho do governador se candidataria a prefeito pelo partido de algum aliado do vizinho. Com Pedro I também não foi fácil: teve que pagar uma multa altíssima ao próprio pai por causa da graça. O Brasil esteve sob o jugo português até 1822 – o Pará um ano a mais. Nós, brasileiros nos acostumamos a ser colônia, em 1998 houve um plebiscito e é de admirar que não tenhamos votado na monarquia. Nada mudou na verdade porque esse evento foi mais um em que se gastaram e embolsaram os tubos e nós, povinho, agimos com o descaso de todo o sempre amém. Estamos acostumados a ser colônia e receber quinhão. Que outro país tem o rei do futebol, a rainha dos baixinhos, o rei da música, um rei disso e daquilo a cada semana, o rei da cocada preta? Que outro país se coloca tão de boamente no cabresto dos outros ditos poderosos em todos os setores da vida? Mentalidade de colono! Imaginamos um mundo lindo e toca a viver de novela e reality show buscando o belo (físico), o prazer (imediato), o idílico (heim?!). Aqui e ali espocam movimentos reformistas, mas eles apenas são uma outra forma de cadeia; um ato de rebeldia pura e anarquicamente vazia de uma ideologia que se queira pra viver. ........................................................................................................................................... Assistindo Somos tão Jovens (Brasil, 2013) me pus a pensar sobre todas essas coisas enquanto tentava me concentrar num filme que não consegue te prender a atenção por nada. Pior é que quando a plateia deseducada não consegue fixar algo, passa a conversar, mexer nos seus celulares congêneres, fazer piadocas, etc. Quem quer ver o filme ou espetáculo que vá para o diabo! Quando que eu podia imaginar que em 2013, com todo esse papo libertário e de igualdade de gêneros eu ouviria aquele “hmmm-hmmm-hi-hi-hi” quando Renato diz a um rapaz: “Eu gostaria de passar a noite com você!”? Pois bem. O filme de Antonio Carlos da Fontoura (cuja melhor lembrança é A Rainha Diaba, de 1974) vai irritar quem é fã, chatear quem não é, desagradar quem vai ao cinema porque-sim. O roteiro de Marcos Bernstein é de uma tolice e uma obviedade que fariam fulo o jovem e arrogante Rei-na-to Manfredini. Os nomes das canções da Legião Urbana saltando aqui e ali como falas do rapaz no melhor estilo Forrest Gump é risível e irritante. A trajetória do garoto de Brasília se minimaliza ao burguesinho que cresceu ouvindo Bach e Beethoven, foi alfabetizado nos EUA, lê filosofia e revistas francesas de cinema, trata sua sexualidade com a incerteza de uma criança dividida entre mashmellow e paçoquinha e que por viver no Tédio da ociosidade improdutiva, decide gritar contra o Sistema sem nunca – claro – se engajar positivamente contra ele nem sequer sair do conforto do lar, com um papai de regata sob a camisa e o cabelinho emplastrado e uma mamãe de laquê e avental. Tem uma irmã também, mas ela é apenas um elemento figurativo. Mais um dos muitos num filme de interpretações passáveis. Renato, Dinho, Herbert e armação ilimitada – vindos de Londres, indo pra Paris – transitam por suas vidinhas de filhos de militares, embaixadores, professores universitários e funcionários públicos federais, até que exaustos de nada, decidem virar punks cheirosinhos. Colonos! Renato Russo também é rei e como tal é crime de lesa-majestade conspurcar-lhe a imagem, leso! Tanto quanto em O Tempo Não Pára (Brasil, 2004), a pretensa cinebiografia de Cazuza, Somos Tão Jovens busca apresentar um mito palatável e acessível à legião de jovens que hoje cantam o protesto ingênuo dos garotos e garotas (É!) da capital federal com a mesma veemência dos anos 80. Como nossos pais. Como eu mesmo, que aproveitei o marasmo do filme para cantarolar sem voz, marcando o ritmo com o pezinho e voltei para casa fazendo minha própria versão à capela unplugged da canção-título. Essa maquiagem é ainda mais pesada no filme de Fontoura. A rebeldia de Renato sucumbe ao seu eu-interior romântico-depressivo. O primeiro show da Legião fora do berço não tem nem cachê. O que o rapaz quer é mostrar seu trabalho. Dinheiro há. Sua reconhecida homossexualidade é tratada sem qualquer conflito quando, lembrando a tal legião de jovens que irão ao cinema, deveria ser exatamente o contrário, abrindo um necessário canal de discussão. Seu amor por Flávio Lemos, baixista do Aborto Elétrico é platônico; sexo ele faz com a melhor amiga e quando Russo – depois de pedir e pedir alguém – encontra uma pessoa os contatos físicos são assépticos e o jovem é dispensado sem mais. Do filho de Renato nem uma palavra. Da sua sabida contaminação pelo HIV e morte por complicações da AIDS nem um pensamento. Nada que pudesse ameaçar a memória e o reinado de Renato Russo, o líder da Legião Urbana. Mentalidade de colônia. O filme acaba com o show da banda no Circo Voador no Rio de Janeiro. Uma nota falava dos milhões de cópias vendidas de seus álbuns. Do sucesso todo mundo sabe. Do comportamento sarcástico todo mundo tem lembrança (eu, de fato!), mas disso não se trata, nem de como Renato Russo foi se tornando mais ácido, irritadiço e recluso, até se auto-exilar em seu apartamento no Rio de Janeiro onde morreu no dia 11 de outubro de 1996. Por que o título desse texto é Ainda é Cedo? Porque a cena em que Russo canta essa canção para a amiga Ana é a única sequência que fale a pena desse filme. No mais, celebremos a estupidez de quem escreveu este comentário, HUDSON ANDRADE 09 de março de 2013 AD 14h47

segunda-feira, março 18, 2013

TUDO É AMOR

Dias atrás após assistir Argo eu me propus a mais um exercício de crítica onde eu falaria do que tinha visto até então. Não muito, mas foi mais nesses um ou dois meses do que em todo um ano. A ideia era falar de linguagens e coisa e tal. O tempo foi passando e isso ficou meio esquecido. Agora eu assisti Amor e me deu vontade de vencer a preguiça e escrever algo. Nada das firulas que eu pretendia para a postagem anterior. Sei lá. Falar de amor talvez seja o caminho. Simples assim. Amor a Deus e amor à ciência em As Aventuras de Pi (Life of Pi, EUA, 2012); amor a um ideal, à liberdade em Os Miseráveis (Les Misérables, Reino Unido, 2013); Argo e o amor ao trabalho e ao cinema, afinal o diretor usa o cinema pra fazer cinema (EUA, 2012). Em Outros Mundos (Cirque du Soleil: Words Away, EUA, 2013) uma jovem vive um amor-de-repente por um trapezista e em Amor (Amour, França/Alemanha/Áustria, 2012) um casal de aposentados vive um amor de uma vida inteira. Suraj Sharma vive Piscine Pavel, um jovem inteligente e sentimental que se vê na insólita situação de dividir um barco à deriva com um tigre feroz. Anos mais tarde, durante uma entrevista, ele conta sua aventura a um homem que diz esperar que ele o faça acreditar em Deus. O filme é calcado em tecnologia e ele simplesmente não existe sem aqueles oclinhos 3D. Nesses tempos em que heróis da Carochinha são revisitados, recheados de violência gratuita e recobertos de efeitos especiais que tentam (sem sucesso) esconder a falta de qualidade artística dos filmes, assistir uma produção feita num computador é, para mim, praticamente impensável. Mas do outro lado da câmera está Ang Lee, um contador de histórias. E um contador sensível e humano que me fez – como pede na legenda do filme – acreditar no extraordinário. No final da entrevista somos confrontados com a questão: o que se quer: a verdade nua, crua e humana de um boletim policial, ou a força imagética e humana do mito? Assim também é Deus. Entendeu? Tom Hooper é o diretor britânico que concorreu a 12 Oscares pelo excelente O Discurso do Rei. Agora ele traz para as telas o famoso musical da Brodway nascido da obra de Victor Hugo. E tudo em Os Miseráveis é como tem que ser um musical: grandioso, eloquente, visceral, mas é nos detalhes que brilha a força desse que deveria ser premiado o melhor filme de 2012. Lute, canta sem grandes dotes vocais Russell Crowe, mostrando toda a inflexibilidade de Javert. Sonhe, cantam os enamorados Cosette (Amanda Seyfried) e Marius (Eddie Redmayne) junto aos jovens revolucionários na Paris do século XIX. Espere: é a voz de Hugh Jackman que abriu mão dos palatáveis heróis juvenis para viver Jean Valjean, prisioneiro para além de qualquer corrente. Ame: a Fantine da oscarizada atriz Anne Hathaway é o ponto alto da emoção intercalando canto, choro, desespero e esperança em I Dreamed a Dream. Uma joia rara. Arte na sua melhor expressão. Andrew Adamson também conta histórias. Fábulas. É dele Shrek e os dois primeiros episódios de As Crônicas de Nárnia. Esse diretor neozelandês juntou-se a James Cameron que veio fazer o que ele mais sabe fazer: dinheiro. Ouvi uns bochichos de que a empresa de Guy Laliberté e Daniel Gauthier estaria mal das pernas, e isso me pareceu justificar fazer uma colcha de retalhos de diversos espetáculos do Cirque du Soleil costurados por uma historinha simplória e açucarada. Assisti Outros Mundos sem esperar mais do que ele poderia me oferecer e por ter chegado muito cedo ao shopping. Não me arrependi. Adoro o Cirque du Soleil e seus números matematicamente cirúrgicos camuflado em luz, figurinos e maquiagem oníricos. Cinema, pipoca e Coca Cola... sem pipoca que eu não gosto. Ao fim das duas horas de exibição de Argo eu (e creio que todos) saí do cinema com a sensação de que tudo durou não mais do que meia hora. Isso porque Ben Affleck decidiu contar sua história em linha reta: em 1979 um agente da CIA, Tony Mendez (o próprio diretor), deve resgatar seis funcionário da embaixada americana num Irã radicalmente anti-estadunidense sob o governo do aiatolá Khomeini. É isso. Sem reviravoltas mirabolantes, sem um tiro sequer. Mendez cumpre sua missão num projeto tão estapafúrdio que tinha tudo para dar errado. Deu certo. Na vida real e nas telas. E Argo é o melhor filme de 2012 para a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Uma decisão política, mas nada injusta. Direção, roteiro, elenco, edição, tudo afinadíssimo para deixar a plateia em permanente estado de tensão que só se quebra fora do espaço aéreo iraniano, quando personagens e público respiram juntos, aliviados; um sorriso de eu-já-sabia no canto esquerdo da boca. O filme de Michael Haneke é para ser visto em silêncio. Talvez não só como eu estava – ainda que tivesse ao meu lado duas grandes almas e grandes atrizes, Adriana Cruz e Valéria Andrade –, mas em silêncio. Um calar interior para perceber o desenrolar da vida de Georges (Jean-Louis Trintignant) e Anne (Emmanuelle Riva) que apesar dos filhos, do apartamento (para mim) confortável, do piano e dos quatro álbuns de fotografia onde a velha senhora reconhece ser linda e feliz uma longa vida apenas para – outra vez – insinuar que ela já pode ter seu desfecho, só tem um ao outro, num regime de simplicidade e felicidade quase burocrática. Quietude para reconhecer que a rotina mais aguerrida pode ser quebrada por um acontecimento inesperado. Paciência para acompanhar os passos cada vez mais arrastados de George. Em tempo, Riva foi indicada ao Oscar, mas Trintignant a acompanha passo a passo. Amorosidade para ver que um tapa pode não ser um ato de violência, mas um pedido desesperado de socorro. Essa cena, aliás, quebra o tal silêncio. Entre o casal e na audiência que ouviu um “oh!” percorrer as filas de cadeiras para logo sumir, envergonhado. Auteridade para buscar compreender um separar-se sem despedidas, de supetão; um ritual de arrumar, dispor flores, lacrar portas e esperar que lhe venham resgatar da insuportável solidão. Amor, para descobrir o real sentido de compartilhar. Ao final ficar um pouco no fundo da poltrona pensando em si ou naquele amor que está ao lado e do qual não cuidamos. Ou levantar de pronto, na pressa de ir atrás de si em si mesmo ou em outrem. Cinematograficamente (para manter uma linha de pensamento feita acima) Amor é bijuteria, mas é a peça mais querida da caixinha. Aquele coração metálico que se abre com dificuldade para revelar duas pequenas imagens: felicidade congelada no moto perpétuo do tempo. HUDSON ANDRADE 18 de março de 2013 AD 01h27

quinta-feira, janeiro 03, 2013

FILHO DA PÁTRIA

Mas se ergues da justiça a clava forte verás que um filho teu não foge à luta nem teme quem te adora própria morte, terra adorada
(Hino nacional brasileiro) Bem disse Gandalf, o cinzento: “Toda história precisa de um polimento” e isso é um fato. Ao assistir Lula, o filho do Brasil ontem, na TV, tive exatamente essa sensação. Outros líderes já foram retratados em livros e filmes: Leonidas, Nixon, Hoffa, Malcolm X, Steve Biko, Gandhi, Napoleão (segundo uma nota que eu li milhares de anos atrás, o mais retratado, ultrapassando até Jesus Cristo), William Wallace e o rei Arthur de quem se fala que sequer existiram, etc. Todos eles impolutos. Abraham Lincoln é o próximo, num dos filmes mais aguardados de 2013 e um dos mais cotados a vencer o prêmio máximo da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Dirigido por Steven Spilberg, está destinado a transformar o já mais fudêncio dos presidentes americanos numa espécie de deus olímpico. Para os lados de lá é normal que esses estadistas tenham arroubos de violência, peguem em armas, desejem vingança, odeiem e chutem bundas: é da natureza estadunidense, coerente com a fórmula grega de divindade antropomórfica e ciosa que adotada pelos romanos chegou até o Deus cristão que ama aqueles que o amam e castiga até a décima geração os que o desagradam. Isso aproxima a divindade da humanidade, o mito do cidadão comum, aliviando assim os egos feridos de quem não admite alguém acima de si. Tem ainda uma função punitiva e imediatista, porque castiga os maus em nome dos bons e estes não precisam sujar as mãos (normalmente por covardia!), sentindo-se justiçados. Justiceiro é, inclusive, o nome desses assassinos entre os brasileiros, bem mais hipócritas que os norte-americanos. Cabras que dão o merecido fim aos neguinhos de alma sebosa são glorificados e não à toa o Capitão Nascimento se tornou o santo no altar de muita gente cansada de ser macerada pelo Sistema que protege os “de menores” delinquentes e nunca, nunca, nunca prende os ricos. Mas voltando ao filme de Fábio Barreto, a ideia era criar um novo mito, aproveitando a popularidade do então presidente Lula e, segundo as discussões à época, catapultar a eleição da candidata petista Dilma Roussef, que como todos sabemos foi eleita. Inspirado no livro homônimo de Denise Paraná (1996) o filme de 2009 lançado no primeiro dia de 2010 custou 16 milhões de reais – o mais caro até o lançamento de Nosso Lar, no mesmo ano – e foi escolhido como o representante do Brasil ao Oscar de filme estrangeiro, batendo o preferido do público, Nosso Lar e outra cinebiografia, Chico Xavier. O filme de Barreto não passou sequer da primeira seleção que preferiu o excelente biutiful, do mexicano Alejandro Gonzáles Iñarritu (esse eu vi! Putz. Filmaço!), o canadense Incêndios, o argelino Fora da Lei e o grego Dente Canino. A estatueta ficou para o também vencedor do Globo de Ouro Em Um Mundo Melhor, da Dinamarca. Lula, o Filho do Brasil tem muitos pecados. O primeiro dele é selecionar um retalho grande demais da vida de uma criatura e suas necessárias transversalidades. O filme mostra ainda a determinação de dona Lindu, mãe de Luiz Inácio, cuja coragem e fibra ajudaram a fazer do filho o que ele viria a se tornar. Não vi o filme no cinema por pura falta de tempo e interesse – aliás, fui bem pouco ao cinema em 2010 e 2011 – e passei ao largo de todas as teorias de conspiração projetadas a partir da película lançada em ano eleitoral, custeada por quem, isso e aquilo. Vendo ontem na TV, o filme me parece raso ao contar de forma recortada e simplista a trajetória do futuro líder sindical, da infância pobre até sua vitória nas eleições presidenciais, citada na última e derradeira cena do filme, novamente com referência à dona Lindu. As cenas vão saltando de uma para outra sem que amadureçamos nada para a ideia seguinte. Se a proposta era mostrar o líder sindical, então que esse fosse o mote e o filme começaria na diplomação pelo SENAI do jovem torneiro mecânico Luiz Inácio da Silva. O completo descaso do pai na infância, as agressões sofridas, o menino inteligente que fala da moça que morreu na viagem de pau de arara, comovendo a professorinha Lucélia Santos (?!), o rapazola que suja o macacão – símbolo máximo daquela classe, “Eu ainda vou ter um macacão desses!”, o jovem Lula diz com esperança – para satisfazer a mãezinha; o primeiro relacionamento e a morte da esposa e do primeiro filho. Sério, eu jamais teria colocado aquela cena ridícula de “O-senhor-precisa-ser-forte-porque-seu-filho-morreu-e-mais-forte-ainda-porque-sua-mulher-também-morreu e agora vá pra casa que a gente tem mais pobre pra matar!” e a patética despedida no cemitério, cortando pra cena seguinte quando, “pra ocupar a cabeça”, o sindicalismo surge como catarse. “Isso aqui é minha família agora!” ele diz, e vai galgando o poder pela simpatia, pelo carisma, pela organização, pelo desejo de ajudar a melhorar o mundo sem se assustar com a ditadura militar que avançava: “Cadeia é pra homem!”, ele afirma com convicção. As sequências no estádio de futebol quando a greve é decidida; na igreja quando a greve é mantida após ele colocar o cargo à disposição “porque esse sindicato é de vocês, trabalhadores, não dessa diretoria!”, a prisão e mesmo antes, quando ele vende laranjas e peita o pai ao defender a mãe “Homem não bate em mulher!” (um nordestino dizendo isso? Têm certeza?), tudo tende a criar uma atmosfera de austeridade viril que me faz lembrar Balin contando a história de Thorin Escudo de Carvalho: “Então eu pensei: Esse é um homem que eu poderia seguir. Esse é um homem que eu poderia chamar de rei!”. Muitos seguiram desde o ABC Paulista. Lula se tornou presidente do Brasil e após dois mandatos saiu como a maior incógnita da história política desse país. Ainda hoje é chamado de presidente. Ainda hoje seu nome é sussurrado em escândalos. Muitos de seus pares caíram vergonhosamente, mas não receberam o justo corretivo, e no entanto, sua presença em palanques ajudou a catapultar – e destruir, na minha opinião, como aqui em Belém – muitas candidaturas nas últimas eleições municipais. Se tivesse morrido vitimado pelo câncer, teria sido chorado pelas multidões como foi Getúlio Vargas quando de seu suicídio. Como não foi, foi ridiculamente incitado a procurar o SUS para seu tratamento. Fico sem saber quem é esse homem afinal. O do filme eu tenho certeza que não é. HUDSON ANDRADE 03 de janeiro de 2013. 9h19

segunda-feira, setembro 17, 2012

E A VIDA CONTINUA?

O espírito Emmanuel afirma: “A maior caridade que se pode fazer pela Doutrina Espírita é a sua divulgação”. De uns tempos para cá filmes, séries e novelas têm apostado numa corrente espiritualista. Digo espiritualista, não espírita, uma vez que muitos conceitos veiculados não estão plenamente de acordo com a doutrina cristã codificada pelo francês Allan Kardec e inaugurada oficialmente com o lançamento de O Livro dos Espíritos em 18 de abril de 1857. Nesses 155 anos os livros têm sido a principal fonte de divulgação do Espiritismo, sobretudo no Brasil, a maior nação espírita mundial. Nosso país travou conhecimento com os fenômenos das “Mesas Girantes” – evento que levou o professor e escritor Hippolyte Leon Denizard Rivail a iniciar o seu processo de pesquisa científica que culminou no Espiritismo – entre 1853 e 1854 através de publicações no Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, do Diário de Pernambuco, de Recife e pelo O Cearense, de Fortaleza, comentando os prodígios que aconteciam nos Estados Unidos da América e na Europa. Esses livros, em várias linguagens literárias, são escritos em sua maioria através da psicografia, fenômeno no qual um desencarnado dita e/ou escreve através de um médium, pessoa capaz de promover o intercâmbio entre os dois planos de existência. A Federação Espírita Brasileira – FEB, disponibiliza no seu site www.febnet.org.br várias publicações para download, além de mensagens e a Revista Reformador – http://www.sistemas.febnet.org.br/reformadoronline/revista/ – que desde 21 de janeiro de 1883 segue ininterruptamente divulgação a Doutrina Espírita. Há um link ainda para sua editora – http://www.febeditora.com.br/ – onde se pode acessar o catálogo completo de obras e solicitá-las em domicílio. Com o surgimento de novas mídias as informações sobre o mundo espiritual e a doutrina trazida à luz por Kardec ganhou novos caminhos. O primeiro filme brasileiro considerado espírita e que me lembro de ter assistido foi Joelma 23º andar, dirigido em 1979 por Clery Cunha e tendo Beth Goulard como protagonista. Foi baseado no livro Somos Seis, psicografado por Francisco Cândido Xavier e que retrata o trágico incêndio do edifício Joelma que vitimou 179 pessoas e feriu outras 300 em 1 de fevereiro de 1974. Chico Xavier (Brasil, 2010), dirigido por Daniel Filho a partir do livro As vidas de Chico Xavier, do jornalista Marcel Souto Maior – posteriormente transformado em série televisiva com acréscimo de cenas não mostradas no cinema –, Nosso Lar, também de 2010, com roteiro e direção de Walter de Assis a partir de um dos mais famosos livros espíritas já publicados e As Mães de Chico (Brasil, 2011), roteirizado e dirigido por Glauber Filho, são os exemplos mais atuais dessa safra, além de novelas com citações e temáticas que refletem direta ou indiretamente a vida espiritual como tema. O mais recente produto desse filão é E a vida continua. Produzido em 2012 com um orçamento de 2 milhões de reais é baseado no 13º livro de uma série que retrata o mundo espiritual, tendo sido ditado pelo Espírito André Luiz ao médium Chico Xavier, o filme não chega aos cinemas com o mesmo estardalhaço dos seus predecessores. O próprio As Mães de Chico teve uma publicidade e veiculação muito tímida perto dos outros dois, inclusive Nosso Lar, louvado como uma mega produção para os padrões brasileiros. E a vida continua teve sessão especial na sede da Federação Espírita no Rio de Janeiro e na abertura da 22ª. Bienal Internacional do Livro de São Paulo, entrando no circuito comercial no último dia 14 de setembro. É absolutamente lamentável afirmar isso, mas a película é extremamente mal feita. Enquanto produto artístico não vale o valor do ingresso. Enquanto propaganda é um despropósito. Uma senhora ao meu lado no cinema comentou com a filha que mesmo sendo muito ruim “a mensagem é boa, né?!” e saiu da sala de exibição como muitos outros, com um sorriso amarelo de constrangimento. Tudo no filme é inconsistente, medíocre, raso. As locações e os figurinos são pífios; os enquadramentos, o tratamento das imagens e do som de péssima qualidade, sobretudo quando utiliza efeitos visuais, como na sequência dos planos inferiores. O que mais provoca desagrado, no entanto, são a trilha sonora – incoerente, irritante, despropositada –, o roteiro tosco, didático, mesmo maniqueísta e as interpretações dos atores de uma pieguice e falta de vigor absurdas, quase um dramalhão mexicano, só que sem a graça de um estilo que já virou cult de tão clichê. Até a montagem do filme nos remete a uma imensa palestra sem ação, sem um motivo ou uma falha trágica que encaminhe os personagens que se entrelaçam como cabelos ao vento, a um fim. Com a palavra o diretor, roteirista e produtor Paulo Figueiredo. E a vida continua é um grande equívoco e por mais que se tente justificar suas falhas com a desculpa de que ele se presta ao fim a que se propôs, não mudará o fato de que é imperioso o cuidado com qualquer produção que se preste a ser um veículo de divulgação e a FEB quer sim alargar as fronteiras do Espiritismo no Brasil, ou não daria sua chancela a essa produção, não disporia um site tão completo quanto o seu, não mesmo venderia livros distribuindo a mensagem da Verdadeira Vida pelo mundo afora. Ir ao cinema, pagar um ingresso e receber um tal produto é de uma falta de respeito enorme e mesmo com muito boa vontade, ser caridoso com algo assim é prestar um desserviço a uma filosofia que no seu pendão libertário e consolador é de uma beleza sem par. HUDSON ANDRADE 15 de setembro de 2012 AD 10h47

sábado, junho 30, 2012

REFLEXÕES DE UM ARTISTA INSONE

Na noite de São João a Globo ofereceu um fast food do que foi a entrega do 26º Prêmio da Música Brasileira onde o grande homenageado foi o músico João Bosco. Para os insones que varavam a madrugado de segunda-feira foi um prazer ouvir as canções do mineiro – ainda que na minha ignorância musical eu tenha achado os arranjos algo demais. Over. Enfim, que sei eu?! – sobretudo duas das composições mais lindas, mais magníficas da MPB e mundial: Quando o amor acontece e Corsário. Eu que sou um apaixonado pela palavra, que me deleito com o verbo dito, com a letra impressa; que – me perdoem os Androids – sou amante dos livros que eu desvirgino abrindo aleatoriamente e enfiando o nariz para aspirar papel e tinta, fiquei me deleitando com o dizer do Bosco. Numa
“Aí que a dor do querer muda o tempo e a maré, vendaval sobe o mar azul”
, noutra
“Meu coração tropical está coberto de neve, mas ferve em seu dofre gelado e a voz vibra e a mão escreve mar”
. Fui pra cama pensando no meu eu artista e novamente João Bosco e Aldir Blanc – seu grande parceiro musical – me inspiraram: “Glória a todas as lutas inglórias”! (O Mestre Sala dos Mares). Eu que escrevo e que nunca fui premiado em minha terra e com os mesmos textos fui reconhecido fora e me questiono, porque eu não quero aprovação, mas reconhecimento dos meus pares. Claro. É essa gente, esse chão, nossas histórias e memórias que fertilizam meu escrever. Agora mesmo quatro dramaturgias minhas estão sendo editadas em São Paulo pela Giostri Editora e a apresentação do livro é do capixaba Hugo Passolo. Bom que pessoas completamente isentas e desconhecidas avaliem e julguem mérito no teu fazer, mas fica um ranço. Fica em mim. É meu. Vaidade? Orgulho ferido, egolatria? Sim! Talvez não. Sentimentos que todo artista tem perigosamente sem medida. Penso no meu teatro. Nos 10 anos da minha Companhia Nós Outros, suas vitórias e conquistas. Que 2012 tem sido fantástico graças a parceria e competência de meu companheiro e produtor, Carlos Correia Santos, que permite que eu liberte mãos e cabeça para a cena enquanto ele cuida da parte chata e necessária da coisa. Penso no esforço de produzir trabalhos de qualidade, com cuidado e atenção à equipe e ao público; da sempre falta de grana, incentivo. Grato pelas parcerias que suprem nossa falta de local de ensaios. Penso em tudo isso e reflito. As platéias cheias do Batista, não porque as sessões do SESC Boulevard eram gratuitas, porque exatamente por serem de graça não há porque se submeter a longas filas, tempo ruim, espera. Não há a obrigação de permanecer na sessão se o espetáculo não prende. Não se pagou mesmo. É só levantar e sair. Mas ninguém saiu. Em Castanhal, dia 23 passado, a Casa de Cultura lotou e com ingresso vendido. Havia um apelo educacional de um grupo de professores de língua portuguesa e história, organizadores do evento, mas havia a imensa carência de atrações como essa no município que tão perto de Belém não é atendido nesse sentido. O Terruá Pará leva nossa música para o sudeste. Louvamos estar nas novelas das 6 e das 7 da “grande emissora de televisão do Brasil”, mas quando uma grande inauguração, ou evento de monta é feito na capital, são atrações alienígenas as grandes prestigiadas e para o interior, nem a prata da casa. Penso que não é a cobrança de ingresso que impede se lote um teatro para produções ruins e humorísticos com atores e comediantes globais; vejo que não é o ingresso que impede que se lote um teatro por um espetáculo raso, ou vazio de conteúdo, que atenda unicamente a necessidade de escarnecer da nossa própria mediocridade. Minhas produções não são o supra-sumo do teatro paraense,meus textos não são clássicos da dramaturgia. Eu optei por um caminho que me satisfaça como ator, diretor, dramaturgo e que desejem ser propostas de reflexão para quem os veja. Houve um tempo em que eu me irritava com isso que chamava de inversão de valores. Julgava a platéia, os artistas, os textos; assumia o pedantismo de me crer superior em alguma instância por “não atender ao gosto vulgar do populacho”. Hoje eu decidi ser coerente com minha crença. Determinar o que eu quero fazer e dizer com a minha Arte seja para 100, 10, ou 01 criatura para ver. Quem estiver comigo merece ser honrado por ter saído do seu conforto para ser instigado e ainda – algumas vezes – pagar por isso. Deixem que o medíocre faça fortuna. Deixem que o tacanho seja ovacionado. Ainda há lugar pra beleza, pra poesia, pras intrincadas – e não raro – enfadonhas construções estéticas. Dizem meu inspirador: “O show de todo artista tem que continuar”. (O Bêbado e o Equilibrista. Grifo nosso) HUDSON ANDRADE 25 de junho de 2012 AD 11h30

segunda-feira, março 26, 2012

RABISCOS



Dois deuses regem a minha vida.
Dois deuses contraditórios, como eu próprio sou contraditório.
O primeiro deus é Deus, assim chamado – diz Victor Hugo – por não haver designação maior que nomeá-lo.
O outro é Dionísio, o caprichoso deus que ensinou os homens como tirar da uva o sêmen do delírio.
O primeiro me criou. O segundo me suporta.
Um me fez imortal. O outro me recria por efêmero.
Deus me vivifica. Dionísio me alucina.
Aquele é a razão, este, a ação.
Ambos estão em toda parte. Deus onde quer que eu esteja. Dionísio onde quer que Moliere soe suas três bastonadas.
Num me encontro, no outro me esqueço, nos dois me confio.
Para ambos, velas. Para ambos, incensos. Para os dois eu canto. Com os dois eu danço. A Deus, misericórdia. A Dionísio, sacrifício.

Neste dia coberto de cinzas meus dois deuses me fizeram luz. Deus na prece que o Evangelho conduziu, Dionísio na oração de Santiago Serrano rezada por Juliana Porto e Leoci Medeiros. A fé de um, o drama do outro.
Se a quem me lê pareço confuso, pense que ninguém sabe quem levará nossas preces aos Céus, assim como o dramaturgo, o diretor, aqueles em cena não sabem o que a plateia vai acolher de nossa messe.
Cheguei à Casa da Atriz com o corpo e o coração alquebrados. Orei a Deus e depois de um silêncio reconfortante, entreguei-me a liturgia do Teatro.
Juliana tem razão: Deus está aqui.
Evoé!

HUDSON ANDRADE
27 de janeiro de 2012 AD
22h08
No ônibus, já feliz, indo para casa.