terça-feira, dezembro 18, 2007

EU 14

“Era uma vez um faminto!”. Raduan Nassar conta em Lavoura Arcaica a história do homem que ganha as benesses de um poderoso sultão após faminto, sedento e exausto, suportar com paciência e resignação um jogo proposto pelo monarca.
Ninguém pode ter certeza do que essa frase significa até ter o objeto do seu desejo bem ao lado: o calor da pele, a proximidade do toque, o hálito. A possibilidade! Ninguém pode saber o que essa frase significa até ter ao lado o objeto do seu desejo separado por uma muralha invisível e silenciosa – moral e tola para alguns, falsa e sem sentido para outros. Dolorosamente real e necessária para mim e pros passos que eu decidi dar aos meus pés.

Meus olhos vão acostumando à penumbra do quarto. A parede em frente, a estante e os livros vão ganhando contornos definidos em escalas de preto e cinza. Afinal, à noite, todos os gatos são realmente pardos. Deito sobre meu flanco esquerdo. Às minhas costas eles dois, abraçados, dividem o mesmo lençol.
A cada movimento, sussurro, respiração entrecortada, meus sentidos se apuram e eu fecho os olhos e o coração num arremedo de sono.
Ouço vozes roucas e baixas. Pequenas risadas – camundongos riscando o assoalho – e minha respiração fica suspensa.

Muitos meses atrás eu o reencontrei e me apaixonei. Depois soube do outro. E soube também que apenas por um desleixo não sou eu que hoje completa dois anos de namoro. Os três estavam no mesmo lugar. Os três queriam uns aos outros. Mas eu não soube ler os sinais.
Quase um ano depois desse encontro, eis os três novamente reunidos e hoje, depois de comemorar suas bodas de papel, eu lhes disse que não queria dormir sozinho. Não lhes disse diretamente (penso que não poderia fazê-lo!). Só eles aceitaram meu convite e agora estão aqui enchendo minha cabeça e pêlos de arrepios.

Ouço vozes roucas e baixas, pequenas risadas, e minha inspiração fica suspensa enquanto o peito liso, de mamilos salientes, toca minhas costas, ofega levemente no meu pescoço e sem palavras, que elas são completamente desnecessárias, me vira na sua direção.
E são muitas mãos e dedos e lábios. Calor da tua coxa na minha. Calor da minha coxa na tua, diria Caio F. Isso e algo mais, tudo multiplicado.

Abro os olhos. A estante começa a se desenha novamente com seus livros de fuligem. Então não foi real?! Deixo escapar um suspiro de alívio.
Então um leve movimento enquanto os dois se acomodam. Eles estão aqui, meu Deus! Eles estão realmente aqui!!!
O sol vai me encontrar insone, a testa empapada de suor, o corpo rijo. O silêncio. A solidão!!!

17.dez.2007.
16h52

quinta-feira, dezembro 13, 2007

EU 13

Hoje me senti nostálgico. Ao passar do quarto pra cozinha, vi meu filho parado em frente à janela gradeada do 13º andar, um de seus brinquedos preferidos debaixo do braço, olhando para fora enquanto a barca do sol apenas começava seu passeio pelo céu. Fiquei olhando pra ele enquanto ajeitava a gravata, pensando que há não tanto tempo assim, eu mesmo tivera aquela idade e corria com meu irmão pelo quintal da nossa casa no subúrbio, comendo fruta no pé e inventando brincadeiras de jornal.
Numa feita meu irmão sumiu. Mais velho, eu era o responsável. Saí atrás dele desesperado, um misto de querê-lo de volta e o medo da repreensão da minha mãe. Procurei por várias horas e já tinha passado do almoço quando eu andando em prantos pelas ruas, gritava por ele. Nada de mais. Numa época em que se colocavam cadeiras à porta das casas, meu irmão saíra passeando e sem limites ou temores, ora simplesmente se afastado, descobrindo ruas e praças novas, depois voltando pelo mesmo caminho com a naturalidade e calma que devem ter os passeios.Hoje meu filho não passeia. As ruas que ele conhece são as que vê aqui do alto, ou as que são percorridas de casa pra escola pra natação pro inglês pra casa. Nossas vidas se transformaram numa espécie de mapa do tesouro: tantos passos pra direita, uns metros ao lado do grande prédio cinzento, mais passos pra esquerda. No final, nosso baú, nunca suficientemente enterrados contra os piratas contemporâneos sem código de honra, sem ética, amorais.
A bem da verdade, quando eu também tinha sete anos, na minha casa de periferia, com praças cheias de castanheiras e bancos de madeira, o eu reinava era uma tranqüilidade de fachada. Eu olhava por uma janela térrea e sem grades, mas também tinha os passos limitados. Lembro que 39 anos atrás eu passaria o natal sem o meu pai. Professor universitário, ao sair em defesa de seus alunos contra o então presidente Costa e Silva, teve seu cargo posto em disponibilidade e a partir de então um carro preto com dois homens que fumavam continuamente enquanto as horas passavam permaneceria estacionado do outro lado da minha calçada; imóvel, impassível, enquanto um flamboyant lhe tingia de vermelho o capô e o teto.
Meu pai viajou num final de tarde depois que aqueles homens falaram com a minha mãe. Apesar da mala dele permanecer sobre o guarda-roupa, a história da viagem se espalhou pela vizinhança e alguns meninos já não jogavam mais bola comigo. Meu pai só voltou em janeiro. Tão cansado, tão abatido, que por três dias trancou-se no quarto onde apenas minha mãe entrava com caldos, sucos e frutas. Foi dessa época que veio o hábito de olhar pela janela: primeiro para esperar meu pai, depois para constatar, horrorizado, que aquele carro preto ainda passava muito lentamente em frente de casa.
Quando meu pai saiu do quarto deu a mim e ao meu irmão presentes atrasados de natal e nos abraçou tão forte que quase sufocamos. A partir de então, nossos brinquedos seriam sempre no quintal.
Meu filho nem um quintal tem! Eu o chamei e abracei tão forte que ele pediu que eu o soltasse. Pedi desculpas e como se faz nesses filmes do cinema, ou nos contos, pedi que minha mulher ligasse pro meu escritório e desse qualquer desculpa que quisesse. Pegamos o carro e fomos pro Mosqueiro, vazio e nublado nessa época do ano. Corremos na areia, empinamos pipa, tomamos sorvete e comemos tapioquinha.
Voltando tardezinha pra nossa gaiola dourada, olhei pelo retrovisor meu filho que dormia no banco traseiro, no colo de sua mãe exausta, e como nesses finais piegas de novela, não segurei umas lágrimas.
Pensei no meu pai.
Ennio Morricone caberia muito bem ao fundo.

13 de dezembro de 2007.
16h56

EU 13

Hoje me senti nostálgico. Ao passar do quarto pra cozinha, vi meu filho parado em frente à janela gradeada do 13º andar, um de seus brinquedos preferidos debaixo do braço, olhando para fora enquanto a barca do sol apenas começava seu passeio pelo céu. Fiquei olhando pra ele enquanto ajeitava a gravata, pensando que há não tanto tempo assim, eu mesmo tivera aquela idade e corria com meu irmão pelo quintal da nossa casa no subúrbio, comendo fruta no pé e inventando brincadeiras de jornal.
Numa feita meu irmão sumiu. Mais velho, eu era o responsável. Saí atrás dele desesperado, um misto de querê-lo de volta e o medo da repreensão da minha mãe. Procurei por várias horas e já tinha passado do almoço quando eu andando em prantos pelas ruas, gritava por ele. Nada de mais. Numa época em que se colocavam cadeiras à porta das casas, meu irmão saíra passeando e sem limites ou temores, ora simplesmente se afastado, descobrindo ruas e praças novas, depois voltando pelo mesmo caminho com a naturalidade e calma que devem ter os passeios.
Hoje meu filho não passeia. As ruas que ele conhece são as que vê aqui do alto, ou as que são percorridas de casa pra escola pra natação pro inglês pra casa. Nossas vidas se transformaram numa espécie de mapa do tesouro: tantos passos pra direita, uns metros ao lado do grande prédio cinzento, mais passos pra esquerda. No final, nosso baú, nunca suficientemente enterrados contra os piratas contemporâneos sem código de honra, sem ética, amorais.
A bem da verdade, quando eu também tinha sete anos, na minha casa de periferia, com praças cheias de castanheiras e bancos de madeira, o eu reinava era uma tranqüilidade de fachada. Eu olhava por uma janela térrea e sem grades, mas também tinha os passos limitados. Lembro que 39 anos atrás eu passaria o natal sem o meu pai. Professor universitário, ao sair em defesa de seus alunos contra o então presidente Costa e Silva, teve seu cargo posto em disponibilidade e a partir de então um carro preto com dois homens que fumavam continuamente enquanto as horas passavam permaneceria estacionado do outro lado da minha calçada; imóvel, impassível, enquanto um flamboyant lhe tingia de vermelho o capô e o teto.
Meu pai viajou num final de tarde depois que aqueles homens falaram com a minha mãe. Apesar da mala dele permanecer sobre o guarda-roupa, a história da viagem se espalhou pela vizinhança e alguns meninos já não jogavam mais bola comigo. Meu pai só voltou em janeiro. Tão cansado, tão abatido, que por três dias trancou-se no quarto onde apenas minha mãe entrava com caldos, sucos e frutas. Foi dessa época que veio o hábito de olhar pela janela: primeiro para esperar meu pai, depois para constatar, horrorizado, que aquele carro preto ainda passava muito lentamente em frente de casa.
Quando meu pai saiu do quarto deu a mim e ao meu irmão presentes atrasados de natal e nos abraçou tão forte que quase sufocamos. A partir de então, nossos brinquedos seriam sempre no quintal.
Meu filho nem um quintal tem! Eu o chamei e abracei tão forte que ele pediu que eu o soltasse. Pedi desculpas e como se faz nesses filmes do cinema, ou nos contos, pedi que minha mulher ligasse pro meu escritório e desse qualquer desculpa que quisesse. Pegamos o carro e fomos pro Mosqueiro, vazio e nublado nessa época do ano. Corremos na areia, empinamos pipa, tomamos sorvete e comemos tapioquinha.
Voltando tardezinha pra nossa gaiola dourada, olheipelo retrovisor meu filho que dormia no banco traseiro, no colo de sua mãe exausta, e como nesses finais piegas de novela, não segurei umas lágrimas.
Pensei no meu pai.
Ennio Morricone caberia muito bem ao fundo.

13 de dezembro de 2007.
16h56