quarta-feira, dezembro 31, 2008

BROCARDOS (07)


As horas, os dias são uma invenção do Homem.
Os 366 dias que compõem 2008 são nossa tentativa de controlar o incontrolável: o Tempo!
Aliás, essa é a maior marca dos nossos desencontros, das nossas ansiedades: o desejo de controle. De pôr rédeas aos outros, às nossas necessidades, colocar o cabresto nos desejos alheios, cercear o tempo, limitar as coisas e querer que a banda toque por uma pauta nossa, mesmo que a melodia resulte dissonante.
Ainda não aprendemos que o outro é melhor se livre e que ainda que por caminhos tortuosos, melhor é que ele se vá do que atrelado a nós, definhe.
Ainda não descobrimos o tamanho das nossas pernas e continuamos a colocar nossas “necessidades” no topo mais alto, onde por vezes estão os de fulano e de sicrano, ícones da modernidade, que alguém determinou como gabarito.
E nesse turbilhão nos vemos escravizados por aquele que tentamos controlar, o Tempo, pois na ânsia de ser senhor ocupamos nossas horas com o alheio e deixamos de viver, de aprender, dormir, fazer sexo, comer adequadamente, exercitarmo-nos, escrever um e-mail (até mesmo uma carta, por que não?!), corrigir os deveres dos pequenos, olhá-los de longe e ver que já não são tão pequenos assim, curtir um bom filme e principalmente um bom espetáculo teatral, curtir a música, dançar por uma coreografia torta, mas pessoal, comprar tomates frescos na feira, tomar açaí gelado, dormir. Ao final das 24 horas, ficamos com a sensação de que faltou tanta coisa e que nosso cansaço é o maior que existe e já nos angustiamos com o dia seguinte, prenúncio de novos dissabores.
Mas o tempo continua inexorável. Amanhã, 01 de janeiro de 2009, o dia começará exatamente como hoje, o último de 2008, com a Terra tendo dado a volta sobre si mesma, tornando este lado do mundo aos raios do Astro-Rei. Estaremos um dia mais velhos, mais experientes, teremos morrido um pouco mais diriam os pessimistas e continuaremos vivos, deste, ou do outro lado da vida.
Das tradicionais resoluções que tomaremos para 2009 que tal incluir uma nova diretriz? O de tentar controlar apenas a nós mesmos. Regular nossos horários, assumir realmente as responsabilidades que tomamos para nós, ir, ficar, casar, estudar as novas (e para mim nem tão boas) regras ortográficas, comprar roupas novas, fazer um curso de qualquer coisa, aprender estenografia, ou mandarim. O que quer que façamos, façamos por nós. Apaziguados assim perceberemos que o outro não é lá tão lerdo nem apressado demais, que ele não é tão guloso assim, ou dorme tanto; que eu posso correr, mas o outro apenas caminhar. Entender o limite do outro e assumir o que é seu. Respirar isso, diria um bom amigo.
Um ciclo humano de dias se encerra hoje numa invenção também humana de 24 horas.
Fechemos esse ciclo. Aproveitemos o que foi bom, avaliemos o que não foi e não o joguemos pra baixo do tapete que isso também é aprendizado.
Amanhã tem mais um dia dos 365 que tornarão 2009 um ano ímpar, sem qualquer trocadilho!

HUDSON ANDRADE
Belém, Pará, 31 de dezembro de 2008.
8h40

sábado, dezembro 13, 2008

EU 18


Ele era o zelador. Tinha outros adjetivos e substantivos. Nada significativo.
Estava lá quando chegávamos, ia e vinha enquanto estávamos, mas eu nunca tinha reparado que ele permanecia quando saíamos.
Até aquela noite.
Inconformado com o que eu considerava uma performance medíocre, ficara no camarim até ouvir última porta bater e diante do espelho iluminado buscava o tom que me igualaria aos companheiros de cena. Sozinho, no entanto, eu apenas repetia falas.
Irritado, joguei o texto sobre a bancada espalhando maquiagem e um copo com água inadvertidamente esquecido. Sequei tudo com papel-toalha e pragas, arrumando depois com esmero os lápis, sombras, pancakes, esponjas.
Foi ao passar pelas coxias que eu vi o zelador. Acendera um foco branco sobre si mesmo, círculo perfeito, e com sua vassoura fazia a cena que tanto me inquietava. Seu corpo se movimentava pequeno e preciso, nenhum gesto fora do lugar. A destra segurava a vassoura com força, o braço tensionado, mas sem apertar o cabo, ou amassar os pêlos contra o chão. A outra mão num gesto congelado de quem se despede, permanecia no ar. Seguia com a fala e descia o corpo, sentando-se por fim e depondo a vassoura no colo, descendo finalmente a mão para acariciar a madeira tosca, levando-a depois para o chão, usando-a como apoio para o corpo que descia mais ou menos lento, subindo rápido, descendo novamente. Por fim deitou-se, a parceira de trabalho (e agora de cena) ao lado. Respirou profundamente três vezes e movimentando apenas os lábios, terminou as falas.
Para si mesmo murmurou vivas e aplausos. Levantou-se solene e solene ergueu sua companheira inclinando-se ambos para as cadeiras vazias. Lágrimas nos olhos, não resisti ao aplauso. Ele me olhou apavorado como se pego no maior dos crimes e depois de balbuciar um “...o senhor me desculpe... eu não tive a intenção...” sumiu na escuridão do teatro e eu não consegui encontrá-lo em lugar algum. Queria lhe dizer da minha admiração e que ele tivera toda a intenção sim. Lembrava-o agora parado e atento por trás das panadas. Vira-o dançar com a vassoura, mas creditara a varrição do muito pó. Ouvira-o murmurar e atribuíra ao cansaço, à aporrinhação.
No dia seguinte, deitado ao lado da minha parceira, Black-out, ouvi os aplausos ruidosos da platéia. Enquanto agradecíamos perfilados, apontei para as coxias e fiz uma mesura. Ninguém entendeu.
O zelador foi mais para o fundo e sumiu na escuridão e eu não o encontrei mais na saída do teatro.

HUDSON ANDRADE
11 de dezembro de 2008, 12h43. Revisado em 13 de dezembro de 2008, 11h40.

sábado, dezembro 06, 2008

BROCARDOS (06)


A situação é muito simples. Chega o final do mês e tu diligentemente te encaminhas para o Departamento de Pessoal, recebes o contra-cheque (ou holerite, ou envelopinho, enfim...), assinas e ao devolver ao encarregado, devolves também o dinheiro que te foi oferecido. “Não, muito obrigado. Isso não é necessário!”, saindo logo depois feliz e sorridente para mais uma jornada de oito horas.
Essa situação é irreal até mesmo em Dubai e ninguém em sã consciência, ninguém, repito, sequer sonhou em tomar essa atitude. No entanto, é exatamente o que querem que eu faça: que eu trabalhe, me esforce, use meu tempo, meu físico, minha mente, enfrente engarrafamentos, falta de transporte público, de infra-estrutura, de apoio, de vergonha e ao final de tudo ofereça “de grátis” o meu produto!
Deixa eu ser mais claro. Sou ator. Tenho uma companhia de teatro. Temos toda uma rotina de preparação e ensaios e tudo o mais quando estamos numa nova montagem, numa remontagem, pesquisando um novo projeto, etc. Nenhuma produção leva um mês, dois, pra ficar pronta e mesmo quando algumas estréiam precisam continuar a ser buriladas para um resultado mais interessante. São muitas horas de atividade e poucas de sono! Não reclamo, não. É o que gosto de fazer. É o que digo que sei fazer e faço porque acredito e porque quero. Agora queres me ver descer das tamancas, tufar a veia do pescoço como diz um grande e querido amigo, é quando ao convidar alguém para a apresentação que levou toda essa novela pra acontecer a criatura diz: Tem de pagar? Ou pior: Tens cortesia, ou convite? Ou pior ainda: Arranja duas entradas aí que eu vou levar uma pessoa comigo!
Puta que o pariu! Só consigo pensar em mandar o sujeito (a) tomar onde o sol não bate! E não é piada da figura, não! É seríssimo! E se ofende quando eu digo que o ingresso é tanto! E em Belém o ingresso mais caro cobrado por um espetáculo local é R$ 20,00 (vinte reais). Um pouco mais que um ingresso de cinema, penso, que faz tempo que não vou a uma sessão. Sete, ou oito cervejas sem tira-gosto, uma pizza escrota, 10% de um abadá para os três dias de Pará Folia. A maioria dos ingressos custa mesmo R$ 10,00 (dez reais), menos de 1/6 do ingresso de Dona Flor e Seus Dois Maridos que lotou o Theatro da Paz no primeiro final de semana de novembro e que ganhou ainda três sessões extras. O motivo? Atores globais e a bunda do Marcelo Faria (e talvez algo mais!). Não vi o espetáculo e não posso julgar seus méritos, mas posso questionar essa eterna sensação de que a grama do vizinho é mais verde! E nem são meus vizinhos. Os caras ficam lá pra baixo e nem sabem que a gente existe e que produzimos espetáculos de excelente qualidade. Levo em consideração, claro, que pra trazer uma produção dessas pra esse fim de mundo é um osso duro de roer. A equipe, os cenários, equipamentos, elenco. E não dá pra vir de bonde. É pelo céu mesmo. Some-se a isso o aluguel do teatro, alimentação, etc... soma-se dois, caiu um, veio sete, noves fora e o preço é esse mesmo! E talvez nem seja o preço justo!
Alguém já tentou alugar um teatro em Belém? Quem já tentou sabe as dificuldades. E não é só grana, mas a falta de equipamentos, técnicos, disposição, respeito. A administração desses locais (de alguns pelo menos) não entendem sequer o que estão fazendo ali. Acham que eu posso entrar no teatro no dia da minha apresentação, algumas horas antes, montar tudo, ensaiar num espaço novo e ao final de tudo ter cerca de 90 minutos pra botar tudo nas costas e liberar o espaço. Acha pouco. É só pagar mais. No Da Paz a hora de ensaio custa (custava, sei lá!) R$ 500,00 e tem uma hoje, outra daqui dois dias, depois mais uma semana, sendo uma de tarde e as outras de manhã. Pergunto: quem determinou isso conhece a dinâmica de ensaio de uma peça teatral? Claro que não. Age como um mau administrador que visa apenas o lucro com o uso do espaço e está naquela cadeira só porque alguém botou.
Daí euzinho quero levar meu espetáculo pra lá, mas ele não se encaixa nos padrões elevadíssimos da nossa maior casa de espetáculos. A bunda do Faria e o carão da Carol Castro cabem! Então eu tento levar pra outro teatro, do governo, e caio numa fila enorme porque outros como eu estão querendo a mesma coisa. E é justo que queiram! Última alternativa, um teatro pequeno, mas particular: se eu pagá-lo, não tenho figurino nem luz nem nem, porque não tenho apoio que banca isso tudo. Se eu insistir e jogar todo esse bolo, contabilizar, ratear, dividir, enxugar, apertar, meu ingresso vai custar uns R$ 50,00. Isso pra não ter lucro!
Aí vem a criatura e diz: Tudo isso?! Qual é o nome do grupo de vocês mesmo? Vocês já se apresentaram fora daqui? Tá, eu acho que vou no domingo! E sai pra tomar sete, ou oito cervejas sem tira-gosto. Ou comer uma pizza escrota!

quarta-feira, novembro 12, 2008

EU 17


Colo o nariz na janela do quarto do hotel. Prédio antiquado, limpo e arrumado. Uma construção, um estacionamento, uma barraca de camelô, um ponto de ônibus. E o Cristo Redentor, lá longe, encarapitado no seu morro temporariamente inacessível.
O medo da cidade desconhecida tinha sumido. Nem maravilhosa nem Babilônia nem quarenta graus nem indiferente. Tomei uma média com pão rances, almocei batata frita, jantei sopa de cebola, trabalhei, atravessei ruas, cruzei arcos, via praia de longe, o pecado de perto, trabalhei, dancei, ri, mas não chorei (o que é de se estranhar!).Peguei sol, trabalhei, tomei chuva. O Cristo,lá de longe, sumiu no meio da cerração.
Ao meu lado sempre tinha um bom amigo, o que dava alegria e reconforto. Mas a cidade não me reconhecia como eu era. Podia passar despercebido entre os nativos sem sotaque, cabeça chata ou cor de pele que merecesse um olhar mais atento. Isso me deixava mais seguro. Andava com desenvoltura certo que a má-fé não me pegaria desprevenido. O Cristo Redentor (Que horror! Que lindo!) nunca me olhou de frente.
E fui sumindo. É! Sumindo! Desaparecendo, ficando invisível! Notei isso a primeira vez quando pensei terem retirado o espelho do elevador social. Olhando a superfície polida sem me ver de volta tive um frio na espinha e depois um leve sorriso nervoso de que a pessoa esta prejudicando um julgamento. Quando desci, o rapaz de roupa social e mochila nas costas não retribuiu meu cumprimento. E todos tinham sido tão educados até agora, pensei! Na rua nenhuma diferença. Todos iam, vinham, davam encontrões e sequer se desculpavam. Desci a Rua da Carioca, entrei no metrô e ninguém me atendeu para vender o cartão. Os outros passavam à frente, não atendiam meus protestos. O tempo foi passando e eu fui me estressando. Bati no balcão, soquei o vidro. A moça e o rapazola de chinelo e bermudão recuaram assustados. Ela chamou o segurança. Ele se foi sob protestos. Eu também não me vi no espelho do guichê. Saí dali, pulei a catraca, entrei no vagão quando a porta abriu para os outros e me encolhi no ladinho da porta. Desci correndo, morrendo de fome, medo e dúvida. No restaurante do hotel, outro espelho e a certeza de que deixara de existir para os outros. No começo até que foi divertido: no banheiro um hóspede cubano oferecia o pau pro garçom de aliança no dedo esquerdo, sem notar minha presença nem quando a luz acendeu automaticamente à minha passagem; no décimo segundo andar comi o almoço deixado sobre uma mesa no corredor; assustei a camareira gorda do sétimo que fugiu com dificuldades, assisti um ou dois filmes e na igreja apaguei velas com sopros fortes, bailando entre os candelabros alterando ritmos e formas. Foi quando o padre jogou água benta na minha direção e eu não senti as gotas que percebi que aquilo estava ficando sério demais. Eu não era visto e logo não seria mais sentido. Voltei para o hotel. No caminho o Cristo, sempre de lado, recebia o brilho de um sol dourado.
Tomei as malas com dificuldade, joguei-as num táxi amarelinho e como não seria atendido pelo motorista, tirei-lhe calmamente as chaves, entrei no carro e saí, tomando o cuidado de fechar os vidros peliculados. Dirigia com cuidado e olhava para o retrovisor para ver se nenhuma viatura me seguia. Na linha vermelha, ao olhar pelo espelho, vi uma leve sombra de mim e quanto mais me afastava da cidade mais essa sombra ganhava contornos, cores e tons. No check-in a moça me deu a passagem com um olhar de estranhamento fixo em mim. O que era pior, meu Deus? Não ser visto, ou aquele olhar que misturava medo e curiosidade? Suspirei aliviado quando o comissário de bordo sorriu e disse boa tarde, senhor!
O avião subiu e o que eu vi do Cristo foram luzes e frágeis contornos. E luzinhas, como um grande bolo de aniversário, ou um cruzeiro no dia de finados. Outra bebida, senhor? Perguntou a jovem loura e uniformizada. Sim, água, por favor!
Indo, ou voltando, quis saber a senhora cheia de livros ao meu lado. Voltando! Respondi. Bom, não?! Ela sorriu. Muito!
E reclinei a poltrona.
Muito!!

HUDSON ANDRADE
11 de novembro de 2008.
12h30

terça-feira, outubro 21, 2008

BROCARDOS (05)


É nos momentos de grandes dificuldades que se revelam as mais nobres almas.
Depois de dias de terror, horas de expectativa, Eloá Cristina Pimentel chega ao fim de sua curta vida. Apenas 15 dos nossos anos, cortados pela imaturidade de uns, pela ineficiência de outros. Isso agora acaba não sendo assim tão relevante. A jovem de Santo André se foi. Sua mãe, Ana Cristina Pimentel, no entanto, tendo todos os motivos para movimentar-se em desespero, ódio, revolta, mantêm uma calma e serenidade invejáveis, perdoa o causador da morte da sua filha e, exemplo maior, doa os órgãos de Eloá para transplante. Sete pessoas, entre elas uma paraense, têm uma nova chance de vida, com qualidade e possibilidades.
Já disse aqui antes que não entendo de leis. Repito. Falo, como também já afirmei, pelo que sinto.para casos extremos, medidas extremas e a fila de doentes esperando transplantes é, para mim, caso de saúde pública. Setenta mil, segundo o presidente de Associação Brasileira para Transplante de Órgãos (ABTO), ontem, 20 de outubro de 2008, durante entrevista ao Jornal da Globo. Desses, alguns correm risco de morte; a paraense que recebeu o coração de Eloá esperou 16 dos seus 39 anos por este transplante. Setenta mil pessoas que esperam pela solidariedade de poucos. Quantos não permitem a doação de seus órgãos pelo egoísmo de enterrar o corpo sem “mutilação”? quantos identificam suas RGs como NÃO DOADOR DE ORGÃOS E TECIDOS por medo, desinformação, preconceito, descaso? E para quê? Para não violar uma embalagem. Para deixar se desagregue uma casca tão relevante como tempo quanto uma fotografia, ou um objeto pessoal.
Pode ser duro falar assim, mas eu acredito que deveria haver obrigatoriedade para doação de órgãos, ao menos um por pessoa. A solidariedade é muito mais digna e bonita,mas enquanto setenta mil pessoas agonizam não há solidariedade certa! Somos obrigados a votar. Somos obrigados a prestar o serviço militar. Por que não ser obrigado a doar o que não nos servirá mais? Diz o Espírito Emmanuel – mentor espiritual do médium mineiro Chico Xavier – que as boas ações começam pela obrigação, passam pela conscientização, até se tornarem espontâneas. Seria um processo de aprendizagem, temporário, até que se entendesse que vale o corpo mais do que a roupa.
Parabéns a D. Ana, mulher valorosíssima. Nossas orações a Eloá, que mais este gesto lhe seja levado em conta em sua nova vida. Nossas orações a Nayara Silva, amiga de Eloá, por sua pronta recuperação. Que coragem nunca lhe falte. Nossas orações ao Lindemberg Alves que não foi ensinado, ou não aprendeu o valor do não. Nossas preces ao Lindemberg, este, agora, o mais necessitado de todos.

HUDSON ANDRADE
Belém, Pará, 21 de outubro de 2008.
16h30

sábado, outubro 18, 2008

É SÓ SENTIR O VENTO FLUIR...

...sentar, relaxar e rir. Quando a Sorte te Solta um Cisne na Noite (cisnÊ e não cisnEM) é a nova produção do Cuíra, direção de Wlad Lima e Karine Jansen, premiado com o Myriam Muniz, da FUNARTE e que entrou em cartaz no último dia 17 de outubro.
Até novembro, todas as noites de sexta, sábado e domingo serão cinza, prata e preto. Algum branco. Meia maquiagem, música, a alegria e o deboche característico de quem decidiu nadar contra a corrente e dar a cara à tapa pra amar e gozar com quem lhe é semelhante.
Com dramaturgia de Edyr Proença, Quando a sorte... é um espetáculo gay. Retrata em quadros os amores, os desencontros, a solidão, a culpa, a festa, os relacionamentos bem, ou mal resolvidos, os choques – com o outro, consigo –, um jeito de ser que não permite meios termos. O espetáculo também não vai te dar essa opção. Vais gostar, ou não vais gostar. Odiar? Nunca! A diversão é garantida, até alguma identificação. Dá pra pensar em um monte de coisas e até rever alguns conceitos, ou reforçá-los.
No entanto a dramaturgia é exatamente o ponto delicado do espetáculo. Uns textos têm um quê de panfletário, outros ficam nas margens daquilo que se quer dizer sem nunca ir lá no fundo. Todos precisavam dizer mais. Ou menos. E deixar a encenação resolver as coisas como faz em muitos momentos. Em Quando a Sorte... as imagens são muito mais contundentes. O espetáculo começa pra cima, convidando à festa e à dança. O público quer bater palmas (e bate mesmo!), subir no palco (eu queria!), balancê! A cena imediatamente seguinte é dessas em que basta o que se vê: incisiva, dura, um tapa que logo depois é soprado com mais luz e bandalheira. E assim vamos, pra cima e pra baixo, uma gangorra estranha, mas deliciosa. Às vezes o problema do texto nem é o texto em si, mas ser mal dito. Noutros, atores mais experimentados acabam presos numa laçada curta. Os quadros que compõem o espetáculo são criados em cima de uma linha mestra e se resolvem em si mesmos, mas por não conversarem com os demais, deixam uma sensação de incompletude, ou de excesso, como os shows de transformistas numa boate. De repente a idéia é até essa. Por que não?!
O figurino de Maurício Franco é objetivo, bonito, confortável. A luz que se esperaria excessiva, colorida, é pontual, porque ser gay é viver sempre na sombra, uma espécie de segredo guardado cuidadosamente numa Ana Maria que a gente só vê no espelho do banheiro.
Quem sair do Espaço Cuíra depois de Quando a Sorte te Solta um Cisne na Noite (cisnÊ, meus amores, não cisnEM!) vai cantarolando “Tomorrow, tomorrow, I will survive...” até em casa. Ou vai emendar, que dá vontade de esticar a noite na caça dessa ave de canto raro, que parece nunca ter uma nota sequer pra quem decidiu nadar contra a corrente e dar a cara à tapa amando e gozando com quem lhe é semelhante.

Ah! Viado só dá o cú porque é cú que tem que dar mesmo. Se desse buceta não
seria viado. Daí, que graça teria?!

SERVIÇO:
Quando a Sorte te Solta um Cisne na Noite.
Músicas e Dramaturgia: Edyr Proença
Músicas cantadas por Walter Bandeira, Marco Monteiro e Nilson Chaves
Produção executiva: Zé Charone
Direção: Wlad Lima e Karine Jansen
Elenco: Olinda Charone, Paulo Marat, André Mardock, Ronald Bergman, Roma Muniz, Fábio Tavares, Wanderley Lima, Maurício Franco, Thiago Ferradaes, Michel Amorim, Rafael Cabral, Ícaro Gaya e Lucas Gouvêa.
No Espaço Cuíra (Riachuelo com Primeiro de Março), de 17 de outubro a novembro de 2008, sextas e sábados às 21 horas, domingo às 20 horas.
Ingressos: R$ 20,00
Veja imagens no You Tube: http://br.youtube.com/watch?v=jboZZD2geVw

HUDSON ANDRADE
Belém, Pará, 18 de outubro de 2008. 10h15.

sexta-feira, setembro 19, 2008

BROCARDOS (05)

Agora dá pra falar de Olimpíadas, já que somente no último dia 17 terminaram as competições para atletas com deficiência. Toda a pompa e circunstância ficam com os atletas “normais”, os super-humanos que têm a missão de elevar seus países à categoria de potências esportivas e servir de propaganda para a superioridade desse ou daquele povo.
Os Jogos Olímpicos de 2008 aconteceram em Pequim, na China, de 06 a 24 de agosto. As paraolimpíadas aconteceram de 06 a 17 de setembro de 2008. Naquela, grandes delegações, maiores quanto mais rico o país que as enviou. Investimentos altíssimos, alta tecnologia de tecidos a materiais antiderrapantes. Grandes cobranças. Nas paraolimpíadas é o inverso. Países mais pobres, os emergentes, mandaram delegações muito maiores do que os seus primos ricos, que reduziram suas equipes em média pela metade. Isso pode ser compreendido, segundo a Organização Mundial de Saúde, pelo grande número de pessoas com deficiência nos países em desenvolvimento, vítimas da ineficiência no combate a doenças como a poliomielite e por amputações causadas por conflitos armados. O Brasil enviou 200 atletas que competiram em 25 modalidades nestes jogos, contra 188 atletas com deficiência. Uma redução pequena frente a outros países como EUA (600 atletas nas Olimpíadas, contra 213 nas Paraolimpíadas), Japão e Austrália.
Nadando contra a corrente, os atletas paraolímpicos se destacaram em sentido inverso aos seus companheiros ditos “normais”. Primeiro lugar no quadro de medalhas olímpicas, os americanos abocanharam 110 lauréis, sendo 36 de ouro, caindo para terceiro lugar nas Paraolimpíadas, com 99 medalhas, sendo 36 de ouro. A Venezuela terminou as Olimpíadas em 82º lugar, com uma medalha de prata e outra de bronze. Setenta e quatro países sequer subiram ao pódio entre africanos, latinos e países do oriente médio. Já nas Paraolimpíadas o destaque ficou com a Tunísia, país do norte da África, 52º lugar nas Olimpíadas onde competiu com 27 atletas. Na competição para deficientes, foram 35 atletas que angariaram 21 medalhas, 09 delas douradas, ficando em 15º lugar no quadro geral.
Nosso Brasil terminou a competição olímpica em 17º lugar, com 03 medalhas de ouro, 04 de prata e 08 de bronze, logo atrás da Bielo-Rússia, também com 15 medalhas, sendo 04 de ouro. Nas paraolimpíadas foram 47 medalhas, 16 douradas, com destaque para o corredor cego Lucas Prado, que subiu ao pódio mais alto nos 100, 200 e 400 metros.
Terminamos as Olimpíadas com uma sensação de derrota muito grande. Os grandes nomes do esporte nacional com Tiago Camilo e João Derly, judocas, o ginasta Diego Hypólito, os times de vôlei masculino, vôlei de praia masculino e o futebol feminino deixaram uma grande dúvida no ar. O que acontece com nossos atletas? O presidente do Comitê Olímpico Brasileiro (COB), Carlos Arthur Nuzman disse haver necessidade de um psicólogo na delegação brasileira, função tão importante quanto fisioterapeutas, preparadores físicos e nutricionistas. Isso já acontece na equipe feminina de vôlei. A psicóloga Sâmia Hallage vem trabalhando as meninas desde o início deste ano e colheu bons frutos: a inédita medalha de ouro para o vôlei feminino do Brasil.
É claro que problemas há em todos os países, em todas as delegações, mesmo as mais ricas. Mas o que interessa falar aqui é do Brasil. Somos um povo apaixonado, torcemos de deixar a cabeça do dedo no osso, beijamos na boca pra logo em seguida, tendo frustradas as nossas expectativas, virar as costas aos nossos candidatos a heróis. E ainda temos que agüentar o Galvão Bueno dizendo aquele clichê idiota de que o que vale é ter chegado até aqui e que ir pra uma final já é uma vitória e que somos maiores do que isso. O escambau! Fora a seleção brasileira de futebol e sua milionária federação, quem tem apoio digno no esporte brazuca, guardadas as devidas proporções aos Correios e Caixa Econômica Federal? Não vou entrar nesse mérito porque serei tendencioso. Não gosto de futebol e renego o tratamento diferenciado que os jogadores desta seleção recebem. Alguém veio aqui no Bengui passar a mão na cabeça da Formiga depois que ela voltou da China? Nada! Toda a preocupação é com as eliminatórias, ou classificatórias, ou a droga que seja pra próxima Copa que eu bem queria que o Brasil não fosse pra ver o que é bom pra tosse!
No meu ver os atletas brasileiros chegam aonde chegam com a garra que nos é peculiar. Vão abrindo caminho no peito e na raça, comendo pelas beiras, caindo de cabeça, dando os pulos até chegar nas semi-finais e finais. Daí esbarram na categoria do treinamento dos países desenvolvidos que investem milhões em seus representantes. Contra a técnica, não tem garra que chegue. E técnica eles têm. A fleuma de chegar, colar um sorriso ACME na cara, fazer o que tem que fazer e aguardar, frios, o resultado que todo mundo já sabe qual é. Isso está longe de ser a nossa realidade. Como é que o Tiago Camilo vai concorrer com um Michael Phelps cuja vida é dedicada à água? E recebe investimentos pesados pra isso. Quantos exemplos temos iguais a este em nosso país. Ruim é só que o povo parece não ver esse tipo de coisa e quer a vitória sempre e nada menos do que o ouro, querendo colher onde não lançou semente alguma!
Esse estado de coisas é ainda mais contundente quando os atletas têm qualquer tipo de deficiência num país que diz não ser preconceituoso, diz não ser racista, diz não ser homofóbico.
Na raiz disso tudo está novamente o descaso com o processo educacional do brasileiro, que precisa ser integral, incluindo não só as matérias formais de estudo, mas igualmente o esporte e a arte como elementos formadores de opinião e da condição de cidadão de qualquer pessoa. De absoluta inclusão! Não se desenvolvem as habilidades do indivíduo, que poderia ser um excelente músico, um dramaturgo maravilhoso, um pintor genial, um grande atleta. Todos somos limitados a fazer contas e entrar no saturado mercado de médicos e advogados e tecnólogos e engenheiros pelo status da profissão. Lamentável!
Americanos, chineses, japoneses, europeus, todos já começaram a se preparar para Londres 2012. Crianças vão ser estimuladas, domadas, doutrinadas, torcidas e ser os novos heróis dos seus países, representando a glória dourada do ideal de superar milésimos de segundos, metros e marcas. Por aqui, vamos correr atrás de um bom tênis, de uma piscina, dividindo tudo isso com um trabalho formal que garanta o do fim do mês. No ritmo que as coisas vão, não será ainda nas próximas Olimpíadas que o Brasil será destaque no quadro de medalhas. Quem sabe na outra, ou na seguinte? Desde que comecemos agora. Desde que comecemos já!

HUDSON ANDRADE
19 de setembro de 2008
16h23

quinta-feira, setembro 04, 2008

EU 16

Uma sala repleta de homens vazios, diria Drummond. No entanto eu permanecia no chat há quanto tempo? Quatro, cinco horas?! Sempre desistindo, sempre me predispondo a ficar. Os papos de sempre de idade, de onde, querendo o quê, certos álbuns de fotos reveladoras, muitas propostas indecentes, nenhum Robert Redford.
Então lancei o ataque final: Alguém aí do meu bairro? A resposta: Eu! Nesse deserto de almas (dessa vez é Caio F.) uma igualmente estiolada é capaz de reconhecer a outra. Daí foram conversas, convites para o MSN, web can, números de celular. E promessas!
Duas, mais ou menos três semanas foram de muitos contatos, mas por uma série de contratempos, nenhum encontro, até que num dia desses ele confessou já estar aborrecido com aquela situação. Morávamos tão perto um do outro. Por que nunca nos encontrávamos? Respondi que se eu acreditasse em destino, certamente ele estaria conspirando contra nós. Ele propôs que mudássemos aquilo e marcamos já tarde da noite, quando ambos se tinham desvencilhado de seus compromissos, num ônibus que servisse aos dois para o retorno pra casa. Aguardei no ponto até que ele ligasse, dizendo estar no ônibus tal, número tal, camisa verde, calças jeans. Em quinze minutos eu sentava ao lado dele. Informal: E aí? Fala! Senta aí! Valeu!! E entre muitos silêncios, nenhum olhar direto, um rápido aperto de mão, as pernas que se encontravam nas curvas das ruas, trocamos impressões, informações, bocejos e talvez uns suspiros. Descemos numa rua larga e deserta pelo início do dia seguinte, caminhando lado a lado bem no meio da avenida, uma como que eletricidade entre a gente, até a pergunta: E então? Atendi tuas expectativas? Respondi que não tinha feito nenhuma. Às vezes a gente espera demais e se decepciona. Noutras espera de menos e se surpreende. Prefiro deixar rolar. Ele concordou. No meio do caminho entre as duas casas, novo aperto de mão, dessa vez mais forte, algo demorado e quente, um boa noite e nos separamos.
Depois dessa noite mais nenhum telefone, ou e-mail, ou mensagem. Eu bem que tentei. Será que ele tentou? O fato é que ninguém se falou e eu fiquei pensando em tudo o que nos dissemos sem nunca termos nos visto, na vontade de estar juntos e quando isso finamente aconteceu, qualquer coisa deixou tudo morno e sem graça e uma contrária cuíra de estar perto de novo, de se tocar, de qualquer lance.
Então decidi esperar o mesmo ônibus daquela noite. O mesmo horário, o mesmo número, o mesmo motorista que passou a me cumprimentar. Nada! Cheguei a pensar que algo tinha acontecido, ou que tudo não tivesse passado de um truque e agradeci a Deus por não ter lhe dito onde morava, tão perto de onde nos separamos. Depois de muitas tentativas, já quase desistindo, mas sempre me predispondo a tentar novamente, eu o vi em outro ônibus que cruzou com o meu, ora a minha frente, ora atrás. E foi me dando uma aflição, uma vontade de descer e não ser visto, de pedir explicações, de simplesmente dizer boa noite! Ele desceu. Eu desci. Chamei-o pelo nome. Ele parou, acendeu um cigarro, estendeu a mão. Toquei meu chip, perdi o contato, mas estamos aí e o novo número é facinho de decorar. Anota aí! Lembrou de coisas que eu tinha dito, mostrou-se gentil, mas daquelas gentilezas de vendedor de loja, de corretor de imóveis. Quando nos separamos no mesmo ponto da outra noite eu lhe pedi que esperasse, que eu tinha que lhe falar que eu sentira muita vontade de vê-lo de novo, que... Ele sorriu e disse: Legal, aí! Como eu tava te dizendo, tô pensando uns novos trabalhos aí e aí quando eles estiverem prontos aí eu te chamo pra pedir uma opinião aí! Depois deu um soquinho macho no meu peito e já de costas disse que a gente se falava.
Parado no meio da rua pensei nas pessoas por trás das paredes, das cortinas, vendo TV, lendo, comendo, trepando, dormindo, insones. Alguns mais vazios, outros menos, vários outros satisfeitos.
Minha alma ressequida voltou pra casa, meu corpo foi pra cama, minha mente tratou de apagar mais uma lembrança.

HUDSON ANDRADE
04 de setembro de 2008.
8h48

sexta-feira, agosto 29, 2008

BROCARDOS (04)

Hoje é o Dia Nacional de Combate ao Fumo. Venhamos e convenhamos, como combater algo tão enraizado na cultura das gentes, tão economicamente rentável e cuja dependência química nem é vista como vício? Das chamadas drogas lícitas é a mais combatida sem nunca ser realmente combalida. Filmes como O Informante (The Insider, Michael Mann, EUA, 1999)demonstram o poderio da indústria do tabaco que não se altera com os pequenos reveses que recebe.
Não é preciso repetir toda a bomba química que o cigarro é nem os malefícios que ele provoca. Todo mundo sabe disso! O que precisa ser discutido numa data dessas são os direitos dos não-fumantes.
Logo eu, contrário a toda forma de intolerância, vou cometer e incentivar uma: toda sanção contra os fumantes é pouca!
Todo tabagista tem um discurso pronto de liberdade e direitos, um sentimento discriminatório por permanecerem “enjaulados” em salinhas de aeroporto, “escorraçados” de lojas e restaurantes (os sérios, claro!) e ainda ter que andar em círculos nas ruas para que a fumaça não se concentre e incomode outrem. Ainda assim as partículas dispersas no ar permanecem no ambiente e o que já é danoso passando pelo filtro do cigarro se torna avassalador para os ditos fumantes passivos.
Pergunto: E o meu direito de não ter minhas roupas e cabelos empestados de fumaça, minha comida e bebida amargados, minha rinite potencializada e meus olhos avermelhados? A única pessoa que o fumante respeita é outro fumante, de vez que um ser humano diverso é sumariamente desconsiderado, esteja ele intra-uterinamente, seja um sexagenário.
Fumar é uma dessas muletas que nós, pessoas, usamos para camuflar nossas dores e dificuldades, tanto quanto o álcool, a comida, fofoca, sexo. Como tudo que vira um vício, lesivo, não importa quanto prazer (sempre momentâneo) ele produza.
No Dia Nacional de Combate ao Fumo o que fica tácito é a falta é educação e respeito, o individualismo de quem quer gozar a despeito da intranqüilidade alheia.
Nessa data eu só peço uma coisa aos fumantes: Vão fumar com o sete peles que é imortal!!!

Hudson Andrade
29 de agosto de 2008.
12h41

quarta-feira, agosto 27, 2008

E ECOA NOITE E DIA. E É ENSURDECEDOR...

As vozes negras...

O riso das crianças...

As cirandas...

A rua se abre para deixar passar quem dela fez palco e vida.

A Companhia Brasileira de Cortejos inaugura suas atividades com o espetáculo No Olho da Rua. Miguel Santa Brígida, que também dirige a Companhia Atores Contemporâneos e está na rua desde 1986 com o Auto do Círio, entre outros, conhece bem o que é estar junto ao povo e interferir nos seus caminhos.

O afro, a quadrilha, o carnaval, a religiosidade não são novidades, assim como a música alta, estranha e estrangeira; o começo nu onde se vão aplicando elementos coloridos que explodem em brilhos e fitas também está lá, marcas tão profundas quanto os movimentos dos intérpretes. A novidade nãoé só o nome, ma sobretudo o acolhimento que os moradores da Rua Dr. Malcher, na Cidade Velha e a administração do colégio D. Mário deram ao grupo, recebendo-os e acompanhando-os atentos, cantarolando os versos repetidos tantas noites. Novidade é o Miguel ir na contramão e abdicar de qualquer incentivo oficial pela tranqüilidade e liberdade de trabalhar, ainda que ao custo próprio,contando sempre com valorosos apoios conquistados pelo seu talento e dedicação à arte, e ainda oferecer tudo isso de graça a um público desacostumado de ver teatro como ofício. Novidade não é fazer da rua o palco, mas o sentido do espetáculo, sua inspiração e razão.

No Olho da Rua é uma colcha de sentimentos. Belo nas suas fitas, pedras falsas, seus sonhos de valsa, ou seus cortes de cetim. É preciso estar atento às tantas sensações de carinho, amor, separação, ódio, solidão, paixão, erotismo, sempre tendo a via pública como a cama, o ponto de partida, ou o caminho de volta.

O cortejo vem pela rua, confirmando sua vocação. Originalmente ele saia de uma garagem, mas um contratempo alterou o ensaio e o resultado alterou a encenação. Entendo o novo sentido dado, mas penso que sair para a rua é mais significativo dentro da história desses atores e seu diretor.

Os intérpretes igualmente oriundos da Companhia Atores Contemporâneos têm novos desafios. Acostumados a dar ao movimento o status de rei,precisam agora integrá-lo à palavra. Os textos de Hudson Andrade e os poemas de Mário Quintana e Drummond carecem de nuances e precisão que, peso, serão garantidos com o curso da temporada e os próximos trabalhos.

Atentem para o belíssimo figurino de Guilherme Repilla e Miguel Santa Brígida, as máscaras de Bruce Macedo, a impressionante interpretação de Canto das Três Raças (Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte, 1974, consagrada na voz de Clara Nunes) pela Sônia Santos. Onde se esperaria o som imenso dos tambores só a voz pungente contra o silêncio da platéia.

Esse canto brasileiro é realmente ensurdecedor e só por descaso, ou hipocrisia é que não se pode escutá-lo!

quinta-feira, julho 31, 2008

DAS TREVAS VÊM OS CAVALEIROS.

Batman, personagem criados pelos americanos Bob Kane (1915 – 1998) e Bill Finger (1914 – 1974), deve ser muito respeitado. Perto das outras adaptações dos quadrinhos, o Paladino de Gothan tem muita sorte. O Homem-Aranha 3 e Superman são peças típicas do mau cinema americano: imperialistas, rasos, medíocres. Homem de Ferro e Hulk 2 eu não vi e não posso opinar. Daí que é correto dizer que Batman veio das trevas. As trevas das adaptações ruins dos heróis dos quadrinhos, da palhaçada em que terminou a série dirigida por Tim Burton e Joel Schumacher. Trevas que nas mãos de Christopher Nolan promoveram o (re)começo do Homem Morcego. Batman Begins (EUA, 2005) e o recente O Cavaleiro das Trevas devolveram ao herói o seu verdadeiro trono: as sombras de Gothan City.

Batman é meu herói preferido dos tempos em que, encarnado por Adam West dava Socs!, Pans! Tuns!, em vilões com figurino duvidosos. Só fui retomar, ou incorporar, o gosto quando Burton lançou Batman, em 1989. Então foi uma enxurrada de revistas, séries, botons, camisetas, figurinhas, tudo, trancafiados depois de Batman e Robim (EUA, 1997) e porque esse negócio de coleção gasta uma boa grana. Hoje os meus olhos de fã compartilham a imagem do Homem Morcego com uma visão crítica e pretensiosa do cinema e da arte em geral.

Batman: O Cavaleiro das Trevas (Batman – The Dark Knight, EUA, 2008) é um ótimo filme. Suas quase três horas de duração mostram que Nolan queria algo além do comercial. O diretor construiu seu filme com calma, desfiou pontas, desfez nós, abriu brechas e amarrou uma história que grita por uma continuação, mas pode viver perfeitamente sem ela. O grande barato do filme é que Batman é o protagonista oficial e quando voltamos a atenção para ele nos desviamos dos personagens secundários. Enquanto expressão artística é a chance de dar aos outros atores uma real função na trama, alicerçando o enredo em vários pilares seguros; enquanto mitologia mostra o Batman (Christian Bale) como a infantaria que abre caminho para o verdadeiro exército: a honestidade de Jim Gordon (Gary Oldman), a sensatez de Alfred (Michael Caine), a obstinação de Harvey Dent (Aaron Eckhart), a nobreza de Rachel Dawes (Maggie Gyllenhaal) e, claro, a loucura do Coringa (Heath Ledger), o contrapeso, o caos e, apesar de representar o mal, a luz sobre quem realmente é o justiceiro que vigia a cidade de dentro da noite.

No filme de Nolan o Coringa é imenso! Em parte pelo proclamado processo de construção do personagem, pela impressionante entrega de Ledger, mas também porque o roteiro põe em seus atos e falas o destino de um mito e de toda Gothan. Sozinho, ele instaura a desordem na já conturbada vida da cidade, enreda todos numa teia intrincada e, não sem a devida e inteligente resistência, vai ganhando terreno até chegar ao seu real objetivo: Batman. Não para detê-lo, mas para justificá-lo, porque só assim sua existência é viável. No entanto, Heath Ledger não merece o Oscar, pelo menos não até sabermos quem concorreria com ele. Há grandes méritos no trabalho do australiano nascido 29 anos atrás e morto no último 22 de janeiro por overdose acidental de medicamentos. Sua propalada indicação ao prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood é motivada claramente pela comoção em torno do trágico incidente e pela propaganda gratuita (?) para a Warner que, ao negar os efeitos devastadores de interpretar o Palhaço do Crime sobre a morte de Ledger, só reforça a lenda de um personagem maior do que o seu intérprete.

O Coringa nasceu das mãos de Jerry Robinson* em parceria com os criadores do Batman, em 1940. Robinson afirma que originalmente ele era um palhaço metido a gênio do crime e sua caracterização remetia a traquinagem. O Coringa psicopata e maldito foi ganhando corpo e crescendo posteriormente. Ainda assim o cartunista não acredita que interpretá-lo perturbe os atores, como afirmou Jack Nicholson que viveu o algoz do Batman no longa de Burton. Para Robinson, César Romero (1907 – 1994) que interpretou o vilão na série de TV dos anos 1960 é quem fisicamente mais se aproxima da sua criatura, mas faz coro com os amigos de set e o diretor Terry Gilliam – para quem o ator trabalhou em The Imaginarium of Doctor Parnassus, que ficou incompleto – de que Heath Ledger era um grande ator. Exatamente por isso,diz, ele não se deixaria “contaminar” pelo personagem. Afirmam ainda que a criação de Ledger para o Coringa é definitiva, o que certamente impedirá, ou dificultará Nolan de substituir o ator ao usar o personagem na possibilidade de um terceiro filme.

A loucura salta aos olhos em O Cavaleiro das Trevas. Se o Coringa a cospe na nossa cara, é no cidadão comum que ela realmente vive, ora gritando por socorro para logo em seguida condenar, num senso de justiça que é distorcido pela dor, nos dois pesos e duas medidas em que se pesa a vida humana, na corrupção. E como falamos em humanos, é preciso também dizer da retidão ainda que ao preço da própria vida.

Ao mergulhar nas sombras, Batman nos dá a verdadeira dimensão da palavra herói.

HUDSON ANDRADE

Belém, Pará, 30 de julho de 2008 AD. 12h50

(*) Conforme artigo de Rodrigo Fonseca, publicado em O Diário do Pará, caderno D, página 4, em 15 de julho de 2008.

NOTA: Alguns links remetem a informações em inglês. Desculpem os que não dominam o idioma. Tentei dar ao texto um conteúdo maior e exatamente a busca de um conteúdo mais completo e/ou mais confiável é que direcionaram a escolha dos links. Meu texto, contudo, pode ser lido sem a necessidade de acesso às referidas informações.

BROCARDOS. (2)

Em entrevista durante as comemorações dos 80 anos da Policia Rodoviária Federal, em Brasília, seu coordenador social, inspetor Alexandre Castilho disse que um motorista não pode se recusar a fazer o teste do bafômetro como preceitua a Lei Seca em vigor no país. Segundo Castilho, todo cidadão temo direito de ir e vir, mas não de dirigir. Esta seria uma concessão do Estado. Ao solicitar permissão para dirigir o cidadão aceita os critérios para tal e se não se submete a elas torna-se passível de ter seus direitos caçados.

Já para Percival Menon Maricato, diretor jurídico da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes, ir e vir é um direito constitucional e dirigir um veículo está implicitamente relacionado a esse direito. Logo, o Estado tem obrigação de conceder carteira de motorista já que exige esse documento para a condução de automóveis. Se não fosse assim estaria indo de encontro a sua própria constituição. Maricato conseguiu junto ao Tribunal de Justiça de São Paulo habeas corpus para não ser punido por recusar se submeter ao teste do bafômetro. O documento se baseia no artigo 8º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969, da qual o Brasil é signatário e que diz ser direito de cada pessoa não depor contra si mesma.

Muito se discutiu desde que a lei que prevê penas graves àqueles pegos dirigindo após o consumo de bebidas alcoólicas foi instituída. E muito ainda se discutirá. E muitos ainda morrerão no trânsito vitimados não pelo álcool em si, mas pela irresponsabilidade de alguns motoristas com a vida alheia. Se eu defendo a Lei Seca? Claro! Seus benefícios são inegáveis e os prejuízos mínimos. Nenhum bar vai fechar as portas, não haverá desemprego em massa de garçons e condutores, as indústrias de bebidas não vão falir e os taxistas agradecem. O povo já deu o seu jeitinho de garantir sua ração de álcool: aluguel de vans, táxis, ônibus, rodízio de quem bebe e quem dirige, a troca por bebidas não alcoólicas (o que, pasmem, não diminuiu a diversão!!!) e por aí vai.

Mas a alegria ainda está longe de ser total. As estatísticas indicam um número menor de acidentes e vítimas no trânsito porque um dos elementos responsáveis por esses eventos foi atenuado. No entanto, o desrespeito à vida continua. Muitos, amparados pela impossibilidade das autoridades em fiscalizar devidamente o cumprimento das leis, na sensação de impunidade que é contundente neste Brasil de Murietas e Dantas, na despersonalização do outro enquanto indivíduo, concidadão e irmão, na sensação egoísta de superioridade num claro desvio de valores, bebem e dirigem, trafegam em alta velocidade, avançam sinais, pilotam de forma arriscada, exibem-se despropositalmente, tratam veículos menores e pedestres como obstáculos ao seu livre trânsito, ignoram sinalizações, corrompem agentes de trânsito e tratam a via pública numa deturpada idéia de coisa própria. Para esta questão não há lei – ainda que de leis precisem os homens –, mas educação, uma que extrapole o significado de símbolos e cores, uma educação moral e ética, onde liberdade e direitos andem a braços com ordem e deveres.

HUDSON ANDRADE

24 de julho de 2008 AD. 11h31


sábado, julho 12, 2008

EU 15

Entrei numa de ficas triste. Essas tristezas injustificadas que só fazem bem a ninguém; dessas em que só a gente pensa que a gente é coitadinho. O fato é que eu dei pra ficar triste, calado, cenho franzido, pelos cantos. Nenhum convite era bom, nenhuma comida gostosa, o barulho incomodava, o silêncio incomodava. Tudo, enfim, incomodava.

A festa tinha um quê de tradição. Minha casa, meus vizinhos, nossos parentes e amigos, todos vinham, comida à vontade, bebida no balde, música. Eu olhando aquilo de longe que ainda estava triste. Enchi uma caneca com leite e saí pra rua como estava: chinelo, bermuda, peito nu. Andei na calçada, fui olhar a pracinha, vi os carros chegando, o povo chegando. Um amigo passou por mim, cerveja na mão, e seguiu reto. Não me viu, ou fez que não me viu. Também, eu tava um saco mesmo. Deixa ele! Só que fiquei mais triste. Queria atenção, que ele falasse comigo. Mas ele ria de alguma piada idiota e entornava cerveja. Que se dane! Dei de ombros e entrei em casa. Joguei o leite na pia, abri a torneira até que a água passasse de leitosa à cristalina.

Quando comecei a lavar a caneca ele entrou na cozinha, o copo novamente cheio, o mesmo sorriso aberto. Que tinha me visto – que foi falar com um amigo – que quando olhou eu tinha sumido – que disseram que eu tava ali. Falava tanto e tão rápido, sempre rindo, intercalando com cerveja, que eu não tinha tempo pra responder. Daí ele começou a dizer que entendia como eu me sentia (?!) e que voltava depois pra gente colocar o papo em dia. E como eu ainda estivesse na pia, caneca cheia de sabão, me abraçou colando o peito às minhas costas. Afastou o copo de cerveja e enlaçou com o braço direito minha barriga. Disse que a gente se falava e eu disse que sim, obrigado.

Permanecemos onde estávamos, sem uma palavra, ou ruído, só nossas respirações e uma vontade de ficar juntos que era a primeira vez que a gente tinha que sempre fomos amigos e nada daquilo tinha sequer passado pelas nossas cabeças. E fomos ficando, uns movimentos leves, uns suspiros e sem mais nada subimos correndo as escadas.

Ele entrou, tirou a camisa, abriu um botão e deitou na cama.

Eu entrei, tranquei a porta e fiquei (penso) longos minutos com a testa na madeira e a mão na chave.

Quando ele me perguntou o que é que a gente fazia agora eu pedi silêncio. Falar pra quê? Melhor não.

Ele acordou bem tarde. Eu nem tinha dormido, mas me deixei ficar ali quieto, deitado, olhando seu sono que era satisfação e álcool e algum cansaço. Continuamos calados ouvindo a música abafada de uma festa sem hora pra acabar. Perguntou se eu queria descer, eu disse que não; se ele podia voltar, respondi que sem problemas... se ele quisesse... que sim, claro!

A gente se fala, ele disse.

Sim. Obrigado!

Belém, Pará

11 de julho de 2008.

19h00 (revisado)

quarta-feira, maio 21, 2008

BROCARDOS. (2)

Através do Decreto Nº 6.325, de 27 de dezembro de 2007, a ANCINE – Agência Nacional do Cinema estabelece cotas para a exibição de filmes nacionais de longa metragem. Dia desses num jornal, li que algumas empresas preferiam pagar a multa aplicada em caso de não cumprimento do referido decreto do que ocupar suas salas com filmes ruins (no caso citado, Os Poralokinhas – pelo título, já se vê tudo!). Quem pode culpá-los? Distribuidores e exibidoras são, antes de mais nada, empresas. Prestam um serviço e esperam retorno financeiro.

Outras tentativas já aconteceram. Quando do lançamento do filme Dias Melhores Virão (Brasil, 1989), a aposta era na simultaneidade cinema e televisão. Então, numa segunda-feira, a Tela Quente da Globo exibia o filme de Cacá Diegues, uma forma de incentivar as pessoas a vê-lo na tela grande. Alguém aí conhece alguém que foi ao cinema? Alguém aí pelo menos sabia da existência desse filme?

A chamada Cota de Tela lembra muito as outras Cotas do Brasil. A tentativa é louvável: garantir a exibição da produção cinematográfica nacional, mas como toda ação compulsória, esbarra no desconforto e na arbitrariedade. O que deveria garantir a exibição de filmes, qualquer que seja a sua nacionalidade, é sua qualidade. Ninguém pode negar a existência de filmes de extremo bom gosto e refinado senso estético em nossa produção brazuca, desde os feitos pelos glamourizados Walter Salles e Fernando Meireles, passando por pequenas jóias de outros e talentosos diretores e diretoras. Todos têm impresso a alma brasileira e nossos costumes. Existe como uma assinatura auriverde que nem sempre agrada ao público comum. Quantos comentários já não foram feitos sobre “mais um filme sobre a ditadura”? E, no entanto, (quase) ninguém se furta a ver “mais um filme sobre o Vietnã”. Desnecessário dizer que temos muita, mas muita porcaria, filmes de apelo fácil e de humor duvidoso em nada diferentes das imundícies americanas com tortas, pânicos, bichos, bebês e outras sandices envolvendo minorias e sexo. A diferença é que eles têm dinheiro pra gastar e nós não. Além do mais, se percebem que o filme será um fiasco, mandam direto para as locadoras e não ocupam as concorridas salas de projeção com algo sabidamente inviável. Este um exemplo que pode ser seguido!

A defesa que Rodrigo Santoro fez da filmografia brasileira nesta edição do Festival de Cannes é justa, tanto quanto citar produções menores como A Festa da Menina Morta (2008), estréia na direção do talentosíssimo Matheus Nachtergaele, louvando-lhe a qualidade. Pronto, voltamos a ela!

Os investimentos em áudio-visual no país ainda são modestos (estou sendo educado!) – ainda que muito superiores aos investimentos em teatro. Uma vergonha que eu comento depois! –. Não existem empresas (os chamados estúdios) cuja ação seja a de produzir filmes; essa dependência estatal é ridícula e me faz pensar que ainda não saíamos de todo dos regimes opressores de governo. Como esperar alguma coisa que possamos realmente chamar de produção nacional? Daí a criar cotas como paliativo é abusar da minha inteligência. Vá pagar na cabeça de outro!!!

(Só pra constar. Ainda não vi o filme de Nachtegaele. Não sei dizer nada dele além do que li e isso não é muita base para avaliações. Apenas confio no seu trabalho.)

Hudson Andrade

Belém, Pará, 21 de maio de 2008 AD

12h25

quinta-feira, maio 08, 2008

BROCARDOS. (1)

Eu não entendo de leis. Meu irmão, sim. Restrinjo-me, vagamente a dizer o que acho certo e errado; bom, ou mau, justo, incoerente, ilegal, ou moral, por isso não vou tentar argumentar em seara desconhecida. Falo movido pela indignação!

Segundo esse mesmo meu irmão, Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá devem aguardar o julgamento em liberdade. Pela lei é assim. A promotoria, no entanto, corre contra o tempo para que eles sejam submetidos a júri popular, onde as chances de condenação são maiores. Para isso é preciso aproveitar o rumor dos fatos, as capas de revista, as primeiras páginas dos jornais, as chamadas nos telejornais, que já estão rareando, ou ficando em segundo, terceiro, quarto plano, preocupados “que estamos” com Ronaldo Fenômeno e seus travestis.

Outro caso tipicamente movido pela homofobia e preconceito da nossa liberal sociedade brasileira. Fossem mulheres e não haveria razão pra tanto rebuliço, afinal, todo macho que se preza tem o direito de sair “pá pega umas puta!”

E o que sobra em homofobia falta em visibilidade num caso bem mais próximo de nós: o assassinado de Benedito Rodrigues Neto, simplesmente Neto para nós que vivíamos mais ou menos próximos dele. Professor universitário, ator, diretor de teatro, estudioso das artes cênicas. Nenhum desses predicados é capaz de motivar uma investigação decente. Tudo se resume a mais um caso em que a bichinha abriu a porta pra Morte. Nada que valha um esforço policial, capa de revista, primeira página de jornal. Todos nós abrimos nossas portas a quem conhecemos e confiamos. Nenhum de nós, no entanto, merece ser julgado, condenado e punido pelas orientações que tomamos na vida.

Na minha opinião o casal Nardoni e Jatobá são responsáveis pela morte da Isabela, mas não devem se tornar os bodes expiatórios de uma sociedade desestruturada e deseducada. O grande mote dessa condenação é dar uma satisfação ao povo que clama desesperado por justiça. Tão desesperado que se pudesse, a tomaria nas próprias mãos, como não tão eventualmente assim acontece. Puni-los exemplarmente nos dará chance de respirarmos mais aliviados até a Copa de 2010, quando ninguém mais se lembrará de Isabelas, Pedrinhos, Otas e outros tantos anônimos.

A meu ver, o cardápio do Sr. Ronaldo Nazário e suas variações pouco se me dão. Os travestis vão aproveitar o momento fugaz para dar um close a mais e aumentar seus cachês, mas logo, logo voltarão à pasmaceira. Quando muito haverá uma marchinha sobre isso no próximo carnaval, se é que alguém ainda faz marchinhas de carnaval.

O Neto, Genú, Melo e sabe-se lá mais quantos vão continuar avermelhando as páginas dos jornais e as faces dos cidadãos de bem de nossa provinciana cidade. Núbia Goiano e dezenas de outros cidadãos vão se tornar estatística e seus números vão se confundir aos outros, velhos e futuros.

Nós – não tantos – vamos nos indignar (não tanto).

O Sr. Raifran Neves, de coração tão grande e bom, poderia também assumir essas responsabilidades. Se permitiu que um homem honesto voltasse ao seio da sua família, pode perfeitamente permitir que um casal tão emocionalmente abalado retome sua vida e cuidados com os filhos pequenos, dessa vez numa casa térrea e confortável. Se gritar que odeia esse bando de viados, permitirá que suspiremos aliviados por não sermos os únicos, dando calma ao nosso coração. Cada um de nós saberá recompensá-lo no que for de direito!

Bons tempos o da Inquisição, em que bastava atear fogo a uma tora de madeira pra que as portas do Paraíso se abrissem aos bons e aos justos.

HUDSON ANDRADE

07 de maio de 2008 AD

9h10

terça-feira, abril 22, 2008

ELIZABETH: A ERA DE OURO

Domingo, 20 de abril, assisti Elizabeth: A Era de Ouro (Elizabeth: The Golden Age, Inglaterra / França, 2007). Saí de casa naquele impulso básico de fazer algo decente num domingo fim-de-tarde-feriadão chuvoso e porque era meu interesse ver como funcionava a corte na qual William Shakespeare – atual objeto do meu trabalho, em A Comédia dos Erros – prosperou. Isso o diretor Shekar Khapur ficou devendo. Na verdade o subtítulo é um equívoco. Da tal Era de Ouro vemos apenas uma referência enquanto a câmera gira em torno de Elizabeth I (Cate Blanchett) num brilhante vestido branco, coroada como a Estátua da Liberdade (a referência e o desagrado são meus. O filme nem americano é!). A história é um recorte da disputa entre a protestante Rainha Virgem e Felipe II (Jordi Mollá), rei da Espanha, fundamentalista, testa de ferro da igreja católica e que por artimanhas políticas consegue apoio do Vaticano e da Inquisição para atacar o reino inglês.
Parece um retalho muito pequeno, mas a direção consegue fazê-lo render nas conspirações internas entre os dois reinos, jogos de espionagem e dissimulação, atos de traição, covardia e bravura. Na visão de Khapur a decapitação de Mary Stuart (Samantha Morton), rainha dos escoceses e pretendente ao trono inglês, aprisionada por Elizabeth no castelo de Fotheringhay e estopim para a guerra santa de Felipe II, é responsabilidade indireta e dolorosa da rainha inglesa, enredada na conspiração espanhola que não mede esforços, dinheiro e amoralidade para alcançar seu intento. A cobertura do bolo, atrativo para o público habitual das vesperais é o amor proibido entre Elizabeth e o aventureiro Sir Walter Raleigh (Clive Owen). O filme todo é pródigo em referências às responsabilidades, limites e castrações que o poder traz, seja dos súditos, “mortais, mas com a possibilidade de amar”, nas palavras de Raleigh, sobretudo na realeza, no choro sufocado da rainha entre suntuosos vestidos, palácios e pretendentes tão prisioneiros quanto ela. Mesmo a morte de Stuart é imposta pela sua condição de regente. Ante a relutância de Elizabeth, seu conselheiro Sir Francis Walsingham (o excelente Geoffrey Rush) lembra que a misericórdia real custará a paz de todo o povo.
Com uma cenografia e direção de arte econômicas, mas belas, iluminação eficiente, que dá um ar dramático às cenas, locações suntuosas, figurino arrebatador vencedor do Oscar 2008, e uma trilha sonora coerente que age nos momentos certos criando devidamente os climas das cenas – vide a narrativa das viagens de Raleigh à monarca e suas aias, Elizabeth: A Era de Ouro é um filme que vale a pena assistir sem ser inesquecível. Não é histórico o bastante, nem totalmente romântico, ou cheio de batalhas. Tem o bom e velho discurso da rainha ante seus minguados soldados prestes a oferecer o pescoço ao evidentemente maior poderio inimigo e fatos quase miraculosos que favorecem os poucos e bons ingleses contra os numerosos e malvados espanhóis e seus aliados. Aliás, mais de uma vez a luz incide sobre Blanchett dando à rainha ares de criatura divina que do alto dos rochedos comanda os ventos e tempestades, iniciando uma nova e próspera era que se eu quiser conhecer melhor, terei de buscar nos livros de história.

HUDSON ANDRADE
Belém, Pará, 22 de abril de 2008 AD
10h05

segunda-feira, abril 14, 2008

FRIO POR DENTRO E POR FORA

Depois de um longo e tenebroso inverno eis que voltamos. Mas o frio persiste.
Nos últimos dias 06 e 13 de abril estive no Teatro Margarida Schiwazzappa, no CENTUR. No primeiro dia assisti Homem de Barro, da Companhia de Intérpretes Independentes (AM), dirigida pelo paraense Ricardo Risuenho, radicado em Manaus. Ontem foi a vez de Amor e Loucura, do grupo baiano A Roda, que utiliza a linguagem de formas animadas.
Homem de Barro surge de um trabalho interdisciplinar de profissionais das áreas de humanas e biológicas. Enquanto estudo está perfeitamente embasado na teoria e experimentação que Risuenho propôs. Como espetáculo, é frio e distanciado como uma aula expositiva; tão burocrático e formal quanto o capítulo sobre doenças da pele lido em cena pelo coreógrafo e diretor. Em cerca de 40 minutos de coreografias simples e recursos áudio-visuais, o espetáculo se arrasta confuso e ao final sem que a campa toque, o público (pelo menos os não iniciados) sai sem ter compreendido bem a matéria.
Amor e Loucura utiliza elementos mitológicos para falar de dois sentimentos humanos que parecem andar lado a lado. Na seqüência final o Amor – Cupido cego – montado na Loucura, dispara continuamente suas setas a esmo. Apesar de bela a significativa, a imagem não me emocionou. Na verdade o espetáculo não emociona. Amor e Loucura é a prova de que teatro só funciona pelo encadeamento total dos elementos que o constituem. O texto, suntuoso, mas um tanto obscuro, entra em off numa voz feminina e monocórdia que em poucos dos quase 90 minutos de espetáculo provoca uma sonolência quase tão irresistível quanto as flechas envenenada do Amor. A luz não delineia bem as cenas que em alguns momentos ficam na penumbra, mal definidas se fazem parte do espetáculo, ou se são transições de uma cena para outra. Os belíssimos bonecos e elementos em madeira e ferro, detalhados, articulados, criam imagens que se seguem a imagens sem, no entanto, deixarem de ser apenas isso: imagens. Essa falta de conexão cria aquelas situações constrangedoras de se dizer, “o espetáculo?... bonito o cenário, não?!”
Saí para a rua numa Belém vazia e chuvosa sem que tivesse conseguido aquecer meus sentidos e coração.
O que será que me aguarda daqui sete dias?

Ah! Vou procurar ser mais presente.

Belém, Pará, 14 de abril de 2008.
11h30