domingo, julho 08, 2007

EU 8

Saí do elevador e subia escadinha vertical chumbada na parede até o ponto mais alto do telhado, sentando numa marquise, a perna esquerda balançando, a direita dobrada, apoio do braço direito, o vento agitando violento meus cabelos. Gosto de me sentir um personagem numa pintura do Caravaggio, assim como gosto de andar nas ruas de madrugada cantarolando e fingindo estar num clipe da Alanis Morrisete.
Apoiei a cabeça na parede e fiquei ouvindo o zumbido do vento e o som do trânsito meio distante, abafado. Ali no alto, o sol quase posto ao fundo, não chegavam sons humanos, só rangidos, estalos, bipes.
Abri os olhos só então eu o vi. No prédio ao lado, também na última laje, o rapaz permanecia de pé, olhar duro, os cabelos negros e finos e lisos agitados com força pelo vento. Como é que eu não o percebera? Estaria ali há muito tempo? Teria me visto? Penso que não. Na verdade nós somos invisíveis uns pros outros; pra alguém mais próximo basta um sorriso bem colocado na cara e uma palavras à toa pra parecer que está tudo bem. Ninguém percebe tua dor e se percebe dá de ombros, “que eu mal consigo resolver as minhas!”
Decidi não me mexer, permanecendo assim ignorado. Fiquei bem mais tempo que de costume, descendo apenas quando o rapaz tinha ido embora. Ainda na escadinha pensei ter visto um vulto num terceiro prédio. Parei e olhei com atenção. Ninguém? Ninguém!
No dia seguinte subi ao telhado como de costume, mas coloquei-me mais à sombra, gárgula, espreitando o rapaz que desta vez, de pé, dava passos vacilantes na direção da beirada do prédio, o olhar perdido, parecendo que queria chorar e prender o choro e gritar e não dizer nada que ali não tinha ninguém e quem é que o escutaria? Também eu prendi um pedido na garganta que ele não fosse adiante; que não brincasse com altura e não desafiasse o vento, ou a boa sorte. Pedi preso na garganta que ele pensasse bem se era aquilo mesmo que ele estava pensando. Como ele eu também me sentia muito só e muito triste e queria colo e que alguém me amasse como eu o-a-os-as amaria. Fiquei imaginando respostas para as perguntas que ele me faria, se soubesse que eu estava li há poucos metros dele, ainda que separado por um abismo “de modo que os que aqui estivessem não poderiam passar para o outro lado e nem os de lá para cá poderiam vir”. Ou eu nem precisaria dar resposta alguma e ele desistiria daquele passeio fatal pelo simples fato de ter sido ouvido. Mas enquanto a minha cabeça pensava todas essas coisas eu fechei os olhos para a pessoa. E seus pés se colocaram na pequena mureta e seu olhar volteou e estava úmido e avermelhado.
Ainda corri na sua direção, gritando que parasse. Em vão. Acompanhei ainda um pouco seu vôo às avessas e depois enterrei o rosto entre os braços para não ver o desfecho daquela tragédia tão minha. E gritei! E meu berro era por demais alto. E não era só meu. De todos os prédios em volta saiam das sombras outros e outras e batiam no peito, dobravam os joelhos e olhando pros céus perguntavam por que e por que e por que?
Corri dali pra não ser o próximo.
Nessa noite eu não dormi e nem nas muitas seguintes. Não voltaria ao telhado enquanto meus ouvidos retivessem aquele grito, enquanto eu lembrasse daquele rosto desconhecido e enquanto eu soubesse quão familiar me eram todos aqueles sentimentos e ausências.
Hoje quando o sol se põe eu me protejo atrás de paredes e janelas.
Hoje, uma linda jovem clara, de cabelos encaracolados e vestido azul subiu pela escadinha vertical chumbada na parede do prédio ao lado do meu, acima da última laje.
Esmurrei a vidraça em prantos e corri porta afora, descendo as escadas quase cego de lágrimas, disposto a invadir a qualquer preço o prédio vizinho.

Belém, Pará, 29 de junho de 2007.
15h56

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