quinta-feira, maio 07, 2009

ANTES DO TEMPO


Severa Romana foi escrita em 1968 pelo também escritor e jornalista Nazareno Tourinho e encenada pelaprimeira vez em 1969. Quarenta anos depois a história da moça grávida assassinada quando defendia sua honra volta à cena pela Companhia de Artes Cênicas Fato em Ato. O caso, real, aconteceu em Belém do Pará em 1900. Severa Romana, então com 19 anos, casada com Pedro, militar, era constantemente assediada pelo Cabo Ferreira, transferido do Ceará para nossa capital e que, tendo suas investidas recusadas, mata Severa. O crime comoveu a população e a jovem é até hoje venerada como uma de nossas santas populares. “Os seios de uma mulher são jóia rara”, diz a personagem Joana apresentando bem o ideal de honestidade da sociedade de então e dando testemunho, como em outros momentos, da retidão de caráter de Severa. Talvez essa postura ferrenha e altiva da jovem – mais do que a própria honra – seja o que motiva tantas pessoas a ir à quadra 28 do Cemitério de Santa Izabel pedir-lhe graças.
Antes desses tempos de Lei Maria da Penha – demonstração tardia, mas importantíssima de que a sociedade rejeita agressão tão covarde – o texto de Tourinho já apresentava esse problema hoje tão banal. Não sei se o dramaturgo queria discutir violência contra a mulher, ou apresentar um fato histórico, mas a postura da Fato em Ato de trazer o assunto à baila é de suma importância. Na peça cita-se também o caso de Maria Bárbara, em tudo semelhante ao de Severa, e que o poeta Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha, em suas Obras Literárias (1850), descreve em belíssimo soneto*:

Se acaso aqui topares, caminhante,
Meu frio corpo já cadáver feito,
Leva piedoso com sentido aspeito
Esta nova ao esposo aflicto, errante.

Diz-lhe como de ferro penetrante
Me viste por fiel cravado o peito
Lacerado, insepulto, e já sujeito
O tronco fêo ao corvo altivolante:

Que d'um monstro inhumano, lhe declara,
A mão cruel me trata desta sorte;
Porém que alívio busque à dor amara,

Lembrando-se que teve uma consorte
Que, por honra da fé que lhe jurara,
A mancha conjugal prefere a morte.


O espetáculo Severa Romana parece prematuro. Apesar do tempo de trabalho (mais de um ano) algo nele ainda não está pronto para o palco. É fato que sua encenação e relevância podem lhe garantir – e deve – vida longa e próspera e que o tempo há de se encarregar de deitar azeite em suas juntas, mas por ora lhe falta vigor. Os personagens são estereotipados – no texto e na representação – e apesar de cerca de hora e meia de espetáculo nãos e tem uma curva ascendente que garanta um clímax na platéia. O final da história todo mundo sabe e isso é um grande trunfo. Tornar a platéia cúmplice do vilão, sofrer pela mocinha, agonizar-se, pensar em fazer isso e aquilo. Mas Severa Romana não nos permite isso e alguém à saída do teatro comentava com sua acompanhante que o final deixava a desejar. Deixa! Pior e que pode dar o tom de apenas mais um caso que toda a equipe quer exatamente afirmar-se contra. Os personagens Pedro e Vizinha são dessas caricaturas tão fortes que se tornam risíveis e não se tem por eles qualquer empatia; o cabo Ferreira é a encarnação do Demo. Cínico, debochado, rufião,não dá margem a que se sinta nada por ele além de repulsa e o texto não lhe confere nuances tornando-o tão arrogante que só reforça um Pedro fraco, ridículo e egoísta em sua covardia. Severa deve ser mais do que uma heroína de folhetim. É preciso que sintamos que suas atitudes não são só fruto de criação, ou dos costumes da época – e sua postura sempre assustadiça diz isso –, mas a expressão de seu real caráter. Palmas para Joana, desses personagens tão presentes em Shakespeare e Moliere que dizem e fazem de tudo, tudo vêem, tudo questionam e suas palavras acabam sendo a demonstração da verdade. Palmas sobretudo para a atriz Luíza de Abreu que faz uma Joana absolutamente tranqüila em cena, falando com desenvoltura e gesticulado na medida certa. É maravilhoso e infelizmente cada vez mais raro ver atores e atrizes maduros no palco, dando o fôlego de sua experiência para nós, meros iniciantes.
O figurino de Mestre Nato é belíssimo, mas romântico demais e parece – e efetivamente está – muito novo, limpo e cheirando à alfazema em cena; a cenografia de David Matos, que também assina a direção, é moderna, objetiva e clara; a luz de Sônia Lopes, sempre precisa, ainda que eu ache que aconteçam Black-outs demais.
Colhido antes do tempo, Severa Romana agora vai amadurecer a pulso e não ficará tão doce, ainda que nos alimente. E que sejam muitos e muitos banquetes.

FICHA TÉCNICA: Severa Romana. Texto: Nazareno Tourinho. Com: Mônica Alves (Severa Romana), Luíza de Abreu (Joana), Eliana Hazeu (vizinha), Marcelo Pinto (Cabo Ferreira) e Márcio Mourão (Pedro). Partitura corporal: Rutiel Felipe, Figurino: Mestre Nato, Iluminação: Sônia Lopes, Sonoplastia: Armando Hesketh, Fotografia: Simone Machado, Assistente de produção: Aline Chaves, Produção: José Clemente, Assistente de direção: Suely Brito, Cenografia e direção: David Matos.Teatro Margarida Schivazappa, 02 e 03 de maio de 2009, 20h00.

HUDSON ANDRADE
04 de maio de 2009 AD
11h15

(*) Disponível em http://blogflanar.blogspot.com/2007/10/o-brasil-tem-uma-nova-beata.html

Nenhum comentário: