sábado, abril 10, 2010

...E TAMBÉM COM O TEU ESPÍRITO...



“Que padeceu por nós, morreu por nosso amor.”


Todo mundo que trabalha com teatro já ouviu a expressão “teatro de igreja”. Normalmente isso é dito num contexto pejorativo, indicando algo extremamente amador, simplório e conteudista. Amador, sim, afinal quem o pratica não tem como foco salário, sistematização e/ou regulamentação da atividade, foco em artes cênicas. Simplório não significa necessariamente piegas, ou mal feito, ou de mau gosto. Conteudista, talvez. Esta é uma relação séria na relação arte e sociedade: a arte só ser arte se for pura, o que é impossível porque arte e artista estão enraizados num contexto histórico-cultural-social. Por outro lado a chamada “arte engajada” quer tornar o artista a consciência crítica do povo oprimido, sacrificando o trabalho artístico pela “mensagem”. Há que se encontrar um meio termo entre formalismo e conteudismo, de vez que toda arte comunica e toda mensagem precisa de uma embalagem adequada.
Outro ponto são as relações entre religião e arte, aqui especificamente o teatro. Há quem veja esse relacionamento como promissor, outros com desconfiada tolerância, alguns com algum desgosto e mesmo total desprezo. Não dá pra desvincular o que tem origens tão íntimas – dos cultos tribais aos ritos religiosos, passando por Téspis na antiga Grécia, a proibição e a excomunhão pela igreja católica coibindo os despautérios do teatro romano até que essa mesma igreja o resgatasse dos mercados para seus átrios, catequizando através de Mistérios e Paixões.
Vi uma dessas paixões, O Canto da Paixão, de autoria do padre Reginaldo Veloso, encenada na Igreja de Jesus Ressuscitado, com direção do seu pároco, ninguém menos que Cláudio Barradas. O texto extremamente bem escrito, em versos, cantado ao vivo pelo próprio Barradas, narra da entrada de Jesus na Cidade Santa até sua ressurreição. É dividido em quatro blocos que mostram o Jesus histórico, encerrando cada período com uma reflexão da paixão crística em nossa realidade atual. Não há falas para os atores, apenas algumas interferências. O elenco, notadamente jovem, interpreta coro e vários personagens, exceto aquele que faz o Cristo, único a permanecer apenas com um personagem. A encenação é simples, ilustrando os acontecimentos apresentados um a um. O figurino, básico – calças de tactel preto, camisetas brancas, pés descalços, sem maquiagem, faixas de tecido roxo que se alternam em mantos, cintas, chicotes, correntes, romanos, judeus. Exceção novamente ao Cristo, numa túnica branca e manto vermelho sobre um trançado de tecido branco que lhe cobre abaixo da cintura. Nenhum adereço, nem mesmo a própria cruz, representada também por um ator.
Assisti tudo atento e realmente comovido. Ciente de uma cronologia e de seu elenco, Barradas interrompeu duas vezes a encenação, reiniciando e inserindo uma cena esquecida. O que no teatro, digamos, formal, não acontece, com o ator devendo resolver sua cena e dando prosseguimento a trama, aqui atende aos objetivos catequéticos da apresentação; observei que a dramaturgia, em tudo coerente com a doutrina que expressa, não é meramente jornalística e não descamba no pieguismo, sobretudo ao conectar o sofrimento de Jesus ao povo no cenário opressor, corrupto, preconceituoso e intolerante em que vivemos. O tom monocórdico de ladainha, quebrado ao final de cada bloco parecendo querer nos despertar para uma realidade esquecida, ou propositalmente relegada às periferias. O elenco, decididamente, precisa de um corpo de ator. Geralmente frouxo (ou tenso quando e onde não deveria) daria muito mais clareza e força às cenas se os gestos fossem mais limpos, decodificados e precisos, mas isso faz parte daquela sistematização supra-citada e que ainda não está na sua realidade.
Pensei por um momento na Paixão de Cristo, lá em Nova Jerusalém. Ela teria trocado a mensagem, ou a idéia na sua concepção pelo show? Ou tudo sempre fora pensado assim e só aos poucos ganhou a estrutura atual, pirotécnica, com seus atores globais? E quem assiste quer ver seus ídolos, ou relembrar Jesus nessa passagem ímpar da história humana? Ou as duas coisas? De quantas trocas de roupa, cenários e efeitos de luz e som eu preciso para emocionar e comunicar? Uma faixa de malha roxa e um gesto no ar não chegam ao mesmo fim? Aquele é Teatro e esse “teatro de igreja”, no seu conceito pejorativo dito por alguém cheio de empáfia? Muitas outras perguntas poderiam surgir daqui, debates, que passariam mesmo ao largo da equipe da paróquia de Jesus Ressuscitado cujas mãos experientes de um dos maiores artistas desse estado, Cláudio Barradas, criou um espetáculo de uma beleza tão singela quanto marcante. Na sua paixão, tanto o ator era o foco – limpo, trocando personagens e agindo diante da platéia, ciente de suas próprias limitações –, quanto o Evangelho de Jesus, sua morte e ressurreição. É a arte – habilidade, instrumento, agilidade, ofício – ordenando a vida humana por regras e símbolos, contando e emocionando. Adaptando Djavan: arte é assim: invade. E fim!

Participam de O Canto da Paixão: Marcelo Rocha, Pedro, Kátia, Fabrício, Meire, Jhony, Isabel, Cristiano, Radarani, Raimundo, Laiana, Alan, Iranildes, Adriano e Franklin.

HUDSON ANDRADE
29 de março de 2010.
10h19

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