quinta-feira, janeiro 08, 2009

EU 19


Aceitei o turno da noite com a gratidão de um refugiado. Chegava com o sol se pondo,quase uma hora antes do expediente e saía no azul-marinho-azul-celeste das primeiras horas. Protegido pelos óculos escuros, seguia para casa e depois de um banho frio, dormia até que o estômago reclamasse de fome.
Pelos bons serviços prestados, uma transferência para horário mais confortável. Recusei. Primeiro pensou-se em preguiça de topar com o entra-e-sai de gente na empresa, mas isso não parecia coerente. Então veio a suspeita da desonestidade. Averiguações feitas, nada de errado, exigi uma retratação do encarregado perante meus colegas de trabalho que eu não iria amargar a pecha de supeito nem de vítima. Ele se recusou. Então eu saio. Simples assim. Mas fiquei, uma vez que bons funcionários são tão difíceis de conquistar. Mas cá entre nós, segredou o diretor, por que diabos queres esse turno tão puxado? Gosto da noite. Simples assim!
Três anos e lá estava eu, o matinta-pereira, como os colegas brincavam. Só falta pedir fumo, completavam. Mas eu não fumava. Éramos eu, uma boa garrafa de café preto, forte, quente, meio amargo e o breu, o silêncio, as sombras que pregavam peças das quais eu ria bem voltando pra casa. Carnaval, Semana Santa, Círio de Nazaré, Natal, Ano Novo. Quantas vezes eu de boamente troquei minhas folgas pela diversão alheia?
No quarto e sala aos domingos, ouvindo fossas antigas, mudava o sofá-cama de lugar, arrumava as revistas na mesinha de palha-da-costa, meus santinhos na prateleira de metal e cozinhava macarrão, sempre com alguma receita nova copiada da TV de, sei lá, 15 polegadas, ou da internet do cyber da esquina.

A noite biologicamente convida ao sono e mesmo tendo dormido o dia inteiro, tinha horas em que os olhos pesavam e eu acordava já com a cabeça pra bater nos joelhos ou no tampo da mesa. Daí eu levantava, tomava café e fazia uma ronda. São tantas horas e tudo está bem, eu gritava brincando, ouvindo minha voz bater nos corredores vazios e penumbrosos.
Foi num espantar de cochilo desses que eu vi a sombra. Negra, como lhe convêm, silenciosa e esquiva como devem ser as sombras. E fugidia quando o olhar se fixa onde ela estava. Acostumado ao vazio, dei um pulo derrubando mesa, cadeira e café, a mão imediatamente no revólver. À frente, um longo corredor que ia bebendo a luz da minha sala nas suas salas vazias.
Caí numa gargalhada nervosa e me recompus, mas não dormi mais a noite toda. Fui para casa com uma sensação estranha, ainda que não sendo dado a superstições. Banho frio, sono. Desencanei.
Mas no outro dia e no seguinte e no outro ainda, lá estava novamente a sombra de pé, estática, fosse no corredor principal, no refeitório, no vestiário, atrás da minha mesa, às duas, às cinco. Não dormia mais. Passava as madrugadas vasculhando os cantos com uma lanterna, a mão ridiculamente no cabo do revólver, os ouvidos atentos para os quais quaisquer ruídos viravam passos, portas abrindo, trincos. Percebi então que a cada noite a minha negra companheira aparecia em um local cada vez mais distante da minha sala, como que tentando que eu a seguisse, até que eu cheguei ao velho depósito do qual nem eu tinha as chaves. Ao olhar pelo buraco da fechadura antiga, um vento gelado pareceu sussurar meu nome. Eriçado, corri de volta e lavei demoradamente o rosto na pia do banheiro, acendi todas as luzes, pus a arma sobre a mesa, queimei a língua com café. Pela manhã estava destruído.
Ainda assim falei com funcionários antigos, fucei anotações, fui à sede do jornal local e mesmo ao cartório: Nenhum acidente, ou vítima, ou catástrofe. O prédio fora erguido onde antes havia uma floricultura que fechou depois que os donos voltaram para Holambra.
Naquela noite eu apaguei novamente as lâmpadas, empunhei a lanterna e segui o longo corredor, o silêncio e a penumbra criando fantasias na cabeça. Em frente ao velho depósito, parei. O cadeado era antigo,mas resistente, a porta estava chaveada; as dobradiças pareciam ainda mais velhas do que a madeira do caixilho. De súbito, meti o pé na porta, arrancando-a dos seus encaixes. Entrei tateando um interruptor que não acendeu luz alguma. Com a lanterna, vasculhei o espaço. Vazio. Completamente vazio. Foi ao virar para a porta que eu a vi, desenhada contra a luz mortiça do corredor. Dei um grito, recuei dois passos e deixei cair a lanterna que apagou assim como as lâmpadas de fora.
Na completa escuridão, com o coração aos saltos e a respiração curta, tateava à procura da lanterna e da saída. Então a mão suave de alguém tocou a minha. Fiquei imóvel, mas nem pensei em reagir ao toque. A despeito da completa ausência de luz, o rosto era plenamente visível - os traços finos, lábios carnudos, olhos brilhando com uma paixão incontida. De pé frente à frente senti um ardor no peito tão forte que foi impossível não chorar. Aquela mão macia tocou meu rosto e seus lábios sorriram tudo.
E com um som de besouros as luzes do corredor se acenderam, piscando, e a lanterna iluminou meus pés. Da minha negra sombra nem sinal.
E um vazio foi tomando meu coração que até há pouco transbordava de algo bom.
Caminhei até a porta, recoloquei-a nos caixilhos como pude deixando a luz do corredor lá fora. Pensei sentir um leve roçar no meu ombro direito e com força exagerada quebrei a lanterna contra a parede.
E uma noite calma e plena me tomou inteiro.

Hudson Andrade
07 de janeiro de 2009 AD
17h30

11 comentários:

Yúdice Andrade disse...

Muito bom. Parabéns.

Hudson Andrade disse...

Vindo de quem vem (sobretudo por ser, de novo, um quase fantasma - desculpa, mais forte do que eu!!! -é um imenso elogio e uma honra!
Beijos!!!

Deusa Gaia disse...

Escreves muito bem e creio que muitas pessoas já tenham te dito isso...entrei no clima da história isso é muito legal!

Marcelo Marat disse...

Quase um conto de horror, com estilo demais pra ser só isso.

Anônimo disse...

Acordei com uma mensagem em meu celular "eu 19 é uma postagem p a qual eu peço tua leitura...", não resisti. Tomei café imeditamente e vim lêr, por que vindo do Hudson, imaginei que fosse algo mui belo! E não me equivoquei, parabéns. Consegui me transportar para este lugar de sombras alucinogénias.
obrigada!

Anônimo disse...

Engraçado, ao mesmo tempo em que o conto me soou completamente desconhecido, também tive estranhamente a sensção que já o conhecia. Paradoxalmente, senti ao mesmo tempo uma intensa curiosidade de continuar lendo-o e um taciturno desinteresse em parar a leitura. Adoro esses sentimentos antônimos convergindo... Obrigado pela descarga emocional de presente! Beijos!!

Unknown disse...

Adorei. Prende a atenção até o final, que é surpreendente! Me detive também no personagem que, a meu ver, foge das coisas iluminadas, visíveis....e se compraz nas incertezas das sombras. O bom é que no final encontra conforto onde menos esperava. E esse local de difícil acesso, um depósito, talvez um porão, com cadeados e dobradiças velhas, demonstrando que a muito não era visitado...!! Me fez lembrar o que existe dentro de cada um de nós, bem lá no fundo. Um local pouco visitado e que às vezes é preciso meter o pé na porta pra entrar, arrombar mesmo! E só lá podemos encontrar o conforto que tanto precisamos e merecemos.......Beijos mano

Saulo Sisnando disse...

Eu sou um apaixonado por contos de terror... Seu conto me lembra muito os contos do Poe (dããã, que profundo Saulo Sisnando), mas, sobretudo, The Tell-tale heart (o coração revelador, ou delator, ou que denuncia... alguma coisa assim), no qual um assassino mata um velho motivado por um "olho" demoniaco. A maneira de contar é bem parecida... acho que, pelo conto, você ja deve conhecer bem a obra do Poe.
O seu conto é belo, economico e clássico! Nos envolve mais pelo não visto do que pelo visto.
No entanto, o climax, pela economia de todo o texto, me pareceu rápido. Acho também que você poderia ter nos dado mais alguns elementos que nos explicitassem a duvida sobre a loucura do personagem. Ele é louco ou viu alguma coisa? Lendo a historia, fica claro (para mim) que ele efetivamente viu um fantasma... mas pela maneira como você conta, eu acho que ele é meio pancada da cabeça. Acho maravilhosa essa dúvida, que esta no conto, mas acho que podia ter dado um nano passo a mais.
Apesar dos comentarios que fiz (eu não sou critico literario nem nada do gênero), é inegável o dom com as palavras, o dominio lexical e tensao da história.
parabéns!
saulo sisnando

Saulo Sisnando disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Márcio Moreira disse...

Por um momento senti que os lábios desse mistério no armário do prédio sobre uma floricultura seriam meus, tudo me foi familiar, até o medo de descobrir minha própria sombra no fim do corredor...Obrigado pela breve viagem a que me convidaste!!!
Beijos!!!
Márcio Moreira

Anônimo disse...

Ok... gostei, é claro! Adoro teus textos, mas sempre acreditei que isso tu já soubesse de há muito. Mas tua afinetada em teu irmão revela o quanto é importante à tua alma um posicionamento explicito. Qto ao texto, não sou critico literario, nem tenho pretenções (devido minha pobreza cultural), mas gostei da suavidade, da intimidade, da cumplicidade, da impetuosidade com orgulho, do medo verdadeiro, da descoberta de si... bem a tua cara, meu caro!

Ps: teu irmão também poderia nos brindar com mais um conto, afinal tb este um tem seus dotes e encantos literários (coisa de DNA e convivencia, não necessariamente nessa ordem).