quarta-feira, junho 02, 2010

WE ARE FAMILY


Alguns dias após alunos da faculdade de farmácia da USP trocarem ingressos de festa por agressões a homossexuais, de outros alunos da mesma instituição promoverem um beijaço de protesto, da revista Veja estampar na capa matéria sobre homossexualidade entre adolescentes (que eu não cheguei a ler, mas que um amigo militante gay disse ser pavorosa!), da lei que criminaliza a homofobia ser votada, dois programas da Rede Globo têm a homossexualidade como pauta: A Vida Alheia e Profissão Repórter. Claro que eu lamentei profundamente o ato dos alunos daquela academia; claro que o beijaço é daquele tipo de protesto que vem e passe sem conseqüências e uma parte dos que protestam o fazem por bandalha. Claro que não precisaríamos de leis contra homofobia, pedofilia, discriminação racial e violência contra a mulher se o Brasil e as famílias privilegiassem a educação e, moralmente, o respeito fosse presença nas relações humanas. Mas tudo bem. O que não se aprende pelo amor, se aprende pela dor.
A Vida Alheia faz parte da nova programação da emissora. Simpático, assim como Separação e o ótimo Globo Mar – muito além de água e peixe! – e o esteriotipado, barulhento e irritante S. O. S. Emergência: humorístico típico. No programa encabeçado por Marília Pera e Cláudia Jimenez, claramente inspirado no caso Ronaldo Fenômeno, um jogador é flagrado com um travesti num motel e parece estar se divertindo muito. Matéria de capa, o feitiço vira contra o feiticeiro e o que deveria ser um escândalo avassalador se torna mote para protestos contra a imprensa ruim e a homofobia, obrigando a revista a uma reviravolta. Cara limpa, o jogador vai à público e argumentando maioridade, responsabilidade, a consciência e boa execução de seus deveres, afirma satisfazer seus desejos sem que isso prejudique ninguém. “Todos deveriam satisfazer seus desejos”, ele afirma. Na vida real, nesse Brasil preconceituoso e machista esse rapaz nunca, jamais, em tempo algum iria declarar tais termos em cadeia nacional, sem perder a vaga, contrato e carreira. Talvez ele posasse para uma revista gay, talvez ele fosse entrevistado numa tarde dessas, mas depois exílio social e ostracismo. Com o jargão “O que eu faço também é amor” A Vida Alheia abraçou a causa gay de forma algo romântica, asséptica e rasa, como convém à Globo.
Profissão Repórter estreou no ano passado e foi gratamente mantido na grade de programação, assim como as novas temporadas de A Grande Família e Força Tarefa, além do Casseta e Planeta Urgente, o que demonstra que não é qualidade e bom gosto que norteiam essas decisões.
A proposta de Caco Barcelos é usar o dinamismo e o entusiasmo de repórteres em início de carreira para mostrar os bastidores da notícia, dividido-os em diferentes focos de um mesmo tema, entremeando com suas considerações experientes: aula de jornalismo desses programas muito bons que são muito curtos e exibidos muito tarde, muito cedo, ou todas essas coisas.
Na edição de 10 de maio, a homossexualidade entre os jovens. Conflitos, medos, anseios, grandes vitórias e esparsas alegrias. Num programa emocionante destaco o jovem que, nas sombras, fala que se pudesse escolher, não seria gay. “É sofrimento demais!” e emendou que não tinha contado aos pais e pensava jamais contaria. “Pra onde eu iria?”, ele pergunta, temendo represálias. Em outra entrevista a mãe que participa de um grupo de apoio a pais com filhos homossexuais indica seu grande dilema: “Meu filho tem excelentes qualidade, mas é gay!” (negrito nosso). É a mulher que se divide entre o amor de mãe que alguém disse precisar ser irrestrito e as expectativas que são dela e da sociedade, mas não do filho. “Amas oposto a mim. Por conseguinte chamas amor aquilo que eu não chamo”, diz o poeta Augusto dos Anjos. Se nós e os outros não nos exigíssemos tanto, esta mulher perceberia que a felicidade do filho (de todo mundo) atende protocolos íntimos, que ela ajudou a formar; que o amor entre pessoas do mesmo sexo – enquanto relacionamento afetivo – pode ser moralmente questionável, mas isso depende de com que valores tal fato é confrontado e que ele faz parte de um aprendizado mais amplo do que é amorosidade para comigo e para com o outro; e que ela pode amar o filho, sim, mas que também pode se decepcionar, entristecer, duvidar. O sofrimento vem do fato de que ela se vê preconceituosa, mas o alvo é o próprio sangue. Ok. Respire isso. Confronte seus preconceitos e lute contra eles por intoleráveis, mas um passo de cada vez e persistentemente. Sem culpa!
Mas o que me emocionou mesmo foi o jovem que aos 16 anos declara sua homossexualidade. “Não dava mais!”, ele afirmou. Criou-se entre ele e a família um abismo. O pai disse que seu comportamento era asqueroso. O irmão mais velho agrediu o namorado e a mãe, passivamente, não conseguia administrar a situação. Num desses dias de almoço de família o rapaz levou o parceiro até a porta de casa e pediu pra entrar. “Não quero ficar sem ele, mas também não posso ficar sem vocês!”. O pai, maior empecilho, permitiu que eles entrassem e desde então se iniciou uma convivência cheia de cuidados, difícil de conquistar – os pais do jovem também fazem parte daquele grupo de terapia –, mas que caminha a passos largos.
“É meu filho!”, “É minha filha!”, “... e eu o amo...”. Essas a frases mais recorrentes.
Necessário observar que devemos sim amar e amar incondicionalmente, mas é preciso estar bem consigo para estar bem com o outro. Esse processo começa conosco, por nos aceitarmos e para nos aceitarmos é preciso que nos conheçamos e para nos isso muitas vezes enfrentaremos nossos monstros internos. Identificando-os é preciso mudá-los. Para tanto é preciso arriscar, o que exige coragem de sairmos de nossas zonas de conforto e vontade de aprender. Isso pode ser muito duro, mas não é impossível e os resultados pagam juros pra vida toda, em todos os seus aspectos.

Meu amigo militante disse que o programa esqueceu todos os que levaram pedrada pra que chegássemos a esse mínimo de consciência; que as duas mulheres da reportagem não podem registrar seus filhos gêmeos como filhos biológicos e etc. ponderamos – eu e outros amigos, inclusive héteros – da importância de também veicularmos o que é positivo num mundo viciado no personalismo e no negativismo; que os fatos devem ser encarados sem romantismos, mas coerentemente e de peito aberto pra que a sociedade sinta que tais fatos existem e que para elem de fatos há pessoas. Gado a gente marca, mas com gente é diferente, não é assim que canta o Zé Ramalho? Não cabemos num rótulo. Temos necessidade de acolhimento, afeto, compreensão. Devemos ser íntegros.
Independente de ser homossexual defendo o programa do Barcelos não com um libelo à homossexualidade, mas por nos instigar sobre o assunto; não tomar partido, mas criar consciência; não se violentar e engolir o que parece insólito, mas desenvolver a tolerância e o respeito. Não amas porque se deve amar, mas amar porque amor é da vida e sem amor, nós, eles, todos, não temos sentido enquanto humanos, não temos paz e, simplesmente, desaparecemos.


HUDSON ANDRADE
14.05.2010
12h00

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