Texto escrito para o I SEMINÁRIO DE DRAMATURGIA AMAZÔNIDA, promovido pela Escola de Teatro e Dança da UFPA, de 24 a 26 de maio de 2010. Belém, Pará, que homenageou o dramaturgo paraense Nazareno Tourinho, autor de obras como Nó de Quatro Pernas, Fogo Cruel em Lua de Mel e Severa Romana.
Quando eu era aluno da Escola de Teatro em 98 escrevi uma peça. O tema: as drogas. Pedi que a Wlad (Lima) lesse e durante uns dias eu a rondava pelos corredores: “E aí, já leste?” até que um dia ela disse “Senta aí! Teu texto é uma merda!”. E pontuou: “Não tem conflito, tem respostas demais, ninguém gosta de levar tapa na cara.”. Daí pra concluir o curso de Teoria do Teatro, também com a Wlad, eu precisava escrever um artigo sobre a minha relação com o teatro. Na primeira revisão ela torceu a cara e fez suas observações. Então ela é que ficava pelos corredores: “Já mudaste aquele texto?”
Pela primeira vez eu rasguei alguma coisa que eu tinha escrito. Recomecei do zero, por um caminho completamente diferente, e o resultado foi satisfatório. Pelo menos é o que mostra a nota!
A grande lição que eu tirei daí é que a teoria é muito importante, as citações dos grandes pensadores, mas vale muito mais o que eu quero dizer, colocar-me na escrita.
Essa passou a ser a premissa pra minha dramaturgia e escritos em geral: o que eu quero dizer, ou o que querem que eu diga. Até aí nenhum novidade!
Pra começar a escrever eu leio muito: artigos de jornais, revistas, internet, livros, teses, quadrinhos, a Bíblia; converso com pessoas, ouço música, vejo filmes. Seleciono o que eu quero e pergunto: e eu com isso? Tem um trecho de O Glorioso Auto do Nascimento do Cristo-Rei que é uma citação de Ezequiel que eu vi no Pulp Fiction do Quentin Tarantino e que pareceu perfeita pra uma fala da Maria:
O justo tem seu caminho
De iniqüidades cercado,
Mas o que ampara o fraco
É por Deus abençoado.
Proteger os oprimidos,
E os perdidos resgatar
Aos retos caminhos do Pai
A todos encaminhar.
E no mesmo texto o monólogo de Jesus é um resumo do Evangelho de Lucas e de Mateus; O Uirapuru) – premiado pela FUNARTE em 2003 – nasceu de um levantamento de trava-línguas, citações, provérbios e parlendas, que eu fiz pra um texto que o Adriano nem escreveu.
TURISTA
...eu vi!!! Eu vi!!!
Um ninho de mafagafas com seis mafagafinhos!!!
E tinha também magafaças, maçagafas, maçafinhos, mafafagos, magaçafas, maçafagos, magafinhos. Isso além dos magafafos e dos magafafinhos.
Meu próximo trabalho, Francisco, está começando de dois pontos de vista completamente diferentes: o livro de um espírita brasileiro e outro, de um grego ateu. Essa disparidade me parece bem interessante pra nortear a palavra-chave escolhida para o que eu quero dizer.
Então eu estabeleço um título. Um professor da universidade me dizia que o título é o menor resumo de uma obra e que eu não poderia tê-lo se não tivesse o trabalho pronto. Só que eu penso diferente. O título é realmente o menor resumo da obra, mas determiná-lo estabelece o que eu quero dizer e não o que eu disse, ou diria.
Sento e escrevo e de uns tempos pra cá primeiro à mão, riscando e rasgando, pra só depois digitar. Esse negócio de computador vicia e minha caligrafia estava ficando uma droga.
Escrevo a primeira e a última cena. Sabendo como começa e como termina fica fácil escolher o recheio. Isso eu trouxe do palco. O personagem entra em cena vindo de algum lugar e indo pra algum lugar. Isso é determinante para a sua ação naquela cena: motivação. Todo o seu estado emocional, psicológico e mesmo físico depende disso. O mesmo eu aplico na minha dramaturgia.
Reviso mil vezes e chega uma hora que eu tenho que parar de revisar, ou acabo escrevendo outra peça. Eu posso odiar um texto e engavetá-lo, ou queimá-lo pra que ele não fique me fazendo visagens; reescrevo cenas, corrijo coisas. O Glorioso Auto, premiado pela FUNARTE em 2004, foi relido várias vezes pra que todos os versos das suas trovas tivessem o mesmo tamanho. Eventualmente eu peço que algumas pessoas leiam meus textos e opinem e se for o caso, acato suas idéias e opiniões porque acredito que elas também queiram dizer algo.
Pensando na palestra do Sérgio de Carvalho** admito que gosto do drama, da narrativa, do conflito interpessoal. Gosto de linearidade, alguma concisão, poesia e imagens. Escrevo criando imagens. Kojiki, uma peça ainda inédita começou por causa de uma frase de Relicário, do Nando Reis: “Milhões de vasos sem nenhuma flor.” Essa imagem disparou o texto. Divirto-me tentando imaginar como será que aquele vestido vermelho, aquela rua de asfalto esburacado, aquele porão escuro vai aparecer na cabeça de quem ler meu trabalho; e eventualmente de um diretor que queira montar aquele texto, mesmo que ele negue todas as minhas indicações visuais e rubricas. Muito tempo atrás um escultor perguntou se não podia transformar meus contos em pequenas estátuas. Claro que eu topei. Nunca deu certo! Tem outra proposta de quadrinizar O Uirapuru. Falta a grana. E um conto virou um curta da Abuso Produções – Um Dia Perfeito – que pode ser acessado pelo minha página no Orkut.
Quando eu comecei o meu blog, o Cúria d´Arte (http://curiadarte.blogspot.com/) o objetivo primeiro era – e continua sendo – treinar a minha escrita. São os contos da série Eu, opiniões pessoais sobre todas as coisas em Brocardos e crítica. Assisto a um espetáculo, um filme, uma série e posto uma crítica. Quem me provocou nisso foi um amigo com quem eu ia ao cinema e quando saíamos da sessão, conversando sobre o filme, ele me achava um chato porque eu ficava falando que o filme era bom por isso, ruim por aquilo, que o roteiro tinha furo, que o figurino era bacanérrimo, que a atriz tinha inflexões de uma dobradiça enferrujada. Ele defendia ir ao cinema, desligar o cérebro e curtir a película. Eu dizia que isso era impossível e só o fato de ele dizer gostei-não gostei já era prova disso. Escrevo essas críticas sem pretensões. São críticas porque eu estabeleço um juízo de valores, opino pelo meu conhecimento e experiência (quaisquer que sejam eles!), dou sugestões. Faço isso porque não existe uma crítica em Belém e eu gostaria de saber o que se pensa sobre o que se faz aqui, sobretudo o meu próprio trabalho. Sem um retorno a nossa vaidade pode achar que está tudo bem e cristalizar num formato equivocado, ou muito bom, mas que sempre pode evoluir.
Gostaria de destacar dois momentos muito importantes da minha dramaturgia, porque refletem a confiança que outras pessoas têm no meu trabalho: o texto de No Olho da Rua, dirigido pelo Miguel Santa Brígida para a Companhia Brasileira de Cortejos, e Deus Ex Machina, minha última peça. No Olho da Rua tem dois textos, um masculino e outro feminino e foram escritos de forma bem diversa. Para as atrizes eu pedi uma música que as tivesse marcado emocionalmente e delas pincei coisas e fiz uma colagem que se encaixasse na proposta de encenação – espetáculo para a rua, a prevalência do corpo nos trabalhos do Santa Brígida, etc:
1.Jurei jamais prender-me por amor
2.Quem acreditou no amor, no sorriso e na flor
então sonhou, sonhou, e perdeu a paz, o amor, o sorriso e a flor
quem chorou, chorou, e tanto que o seu pranto já secou
pois a própria dor revelou o caminho do amor
e a tristeza acabou.
3. Como te contar que esse amor foi tanto
e no entanto... eu só sei dizer
vem, nem que seja só pra dizer adeus.
4. De repente em minha vida
estes festejos, essa emoção
tanto azul, tanta luz
é demais pro meu coração.
O masculino eu entrevistei homens os mais diversos e perguntava: O que um homem gosta? O que um homem quer? O que um homem é? Pá-pum. Sem pensar muito. Pergunta e resposta. Disso surgiu:
1 – Todo homem é...
2 – Seu!
3 – A viga da casa...
1 – Areia das dunas...
2 – Seu!
3 – A carta de despedida...
1 – O começo, o meio...
2 – e o termo...
3 – de toda vida!
2 – Meu!
1 – As monções, as ressacas.
3 – A doença, a injeção.
1 – A secura do agreste.
2 – Ipê, aroeira, jacarandá.
3 – A fechadura das portas...
1 – Os passos nas horas mortas...
2 – O pai, o avô, o irmão...
3 – Filho da puta!!!
2 – Seu!
1 – Pra toda hora.
2 – Pau!
3 – Pra toda obra.
2 – Seu!
A idéia para ambos os textos era: quem os escutar precisa se reconhecer, por isso o texto feminino é tão descaradamente copiado e colado. A criatura tinha que dizer: eu sei o que é isso (porque ela também já teve uma música preferida por causa de alguém. Quem não teve, ou tem?). Deus ex Machina é a segunda ação do projeto A Casa da Atriz, um monólogo para duas pessoas que surgiu de duas semanas de conversas com os atores Bill Aguiar e Aílson Braga, com o diretor Adriano Barroso e com a leitura de milhares de coisas tão disparatadas quanto Artaud e Cecília Meireles. A idéia é brincar com o ofício do ator e eu retomei a colagem, utilizando citações e conceitos cênicos pra criar um homem que mistura a sua vida em cena com a vida real. É importante citar o Millôr Fernandes e dizer que quando se faz uma colagem isso só pode dar certo se o autor tiver segurança do que ele quer. Não pode simplesmente ficar pegando frases e misturando. Tem que fazer sentido e tem que ter identidade própria. Sua obra O Homem do Princípio ao Fim, é, segundo ele, 80 por cento autoral. Deus ex Machina é, digamos. 60 por certo.
Se alguém me perguntar qual é minha profissão eu não titubeio: Ator. Sou apenas um homem de teatro. Sempre fui e sempre serei um homem de teatro. Flávio Rangel e Millôr Fernandes dizem isso em Liberdade, Liberdade, citando Louis Jouvet e eu os cito em Deus ex Machina. Esse é o meu ofício. Mas escrever tem uma magia toda especial, porque vai além do que eu posso fazer no palco. Uma mesma peça de teatro pode ser uma tragédia, um musical, kabuki; pode ser representada por atores, bailarinos, clowns. Essa imensidão de possibilidades é absolutamente fascinante e exige ao mesmo tempo um desprendimento humilde e respeitoso para ver uma cria sua tornada outra coisa e, quem sabe – por que não? – até melhor que o original. Não vou deixar de subir aos palcos, mas vou cada vez mais me enfiando por trás dele. Sempre vão precisar de um autor. Mesmo os que negam o texto formal jamais podem prescindir de um roteiro e a palavra vai estar ali, de algum jeito.
Termino com as palavras da Lygia Bojunga em A Troca e a Tarefa. Escrever é como ressuscitar e eu vou continuar escrevendo, se essa é a minha paz!
(*) Referência ao texto A Troca e a Tarefa, de Lygia Bojunga, sobre a vida de uma escritora.
(**) Em 24 de maio de 2010, na abertura do seminário.
HUDSON ANDRADE
25.05.2010 AD
16H17
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