quarta-feira, novembro 15, 2006

TU FALAS DE AMOR...

O Cordel do Fogo Encantado canta Ai Se Sêsse, poema de Zé da Luz. Dizque os versos foram feitos porque afirmaram ao poeta que para se falar de amor era necessário um português correto. Santo Deus! Imagina o naipe de quem faz uma declaração dessas!
Vejamos: falam de amor os clássicos de William Shakespeare, as obras de Machado de Assis e os furores de Caio Fernando Abreu. Mostram o amor o chaterrímo Dr. Jivago, passando pelas películas viscerais de Almodóvar até as produções americanas que empesteiam a Sessão da Tarde, tão ao gosto popular. Cantam o amor as peças de Beethoven, as canções deliciosas de Vinícius e Toquinho e mesmo o batidão pestilento dos bailes funk. A única vantagem em cobrar erudição pra se falar de amor seria uma drástica redução da produção cultural e ... artística... mundial, além de diminuir o mercadejar vulgarizado desse tão nobre sentimento. Shakespeare não investiu em um ensino acadêmico, mas tinha a seu favor viver num tempo em que não se pedia a retirada dos acentos para “facilitar” o aprendizado da língua. Tudo o que para ele era natural dizer, pra nós é culto (e olha que ele tem uns trabalhos chaaaatoooosss!!!) Imagina então o bom Machado de Assis vendendo cocada na rua e sem maiores recursos para estudar. Para quantos (como eu) que acreditam em reencarnação, fica fácil entender sua facilidade com as letras; para todos os que aceitam a unicidade da vida vira genialidade, no sentido sobrenatural da palavra.
Reproduzo abaixo Ai Se Sêsse, porque sua escrita me emocionou muito, sobretudo pelo sotaque carregado e mesmo irritante dos pernambucanos do Cordel. Vou me quedar tranqüilo por saber que não há criatura que possa dizer o que é o amor. Que ele seja dito pelos que conjugam corretamente os verbos na segunda pessoa do singular, pelos aborígines ciclotímicos do Burkina Faso, pelas candidatas a atriz da novela das seis. E que seja sentido por todos!

Ai Se Sêsse

Se um dia nois se gostasse
Se um dia nois se queresse
Se nois dois se empareasse
Se juntim nois dois vivesse
Se juntim nois dois morasse
Se juntim nois dois drumisse
Se juntim nois dois morresse
Se pro céu nois assubisse
Mas porém acontecesse de São Pedro não abrisse
a porta do céu e fosse te dizer qualquer tolice
E se eu me arriminasse
E tu cum eu insistisse
pra que eu me arresolvesse
E a minha faca puxasse
E o bucho do céu furasse
Da vês que nois dois ficasse
Da vês que nois dois caisse
E o céu furado arriasse
e as virgi toda fugisse

Um comentário:

Yúdice Andrade disse...

Irmão querido, sabes bem como sou enjoadíssimo com escorreição vernacular. Nenhuma vírgula pode estar fora do lugar. Mas isso é para a linguagem oficial. A arte de oficial não tem nada - muito menos patrocínio! Então se pode dar vazão a tudo que o sentimento manda.
Já tinha escutado algumas das toadas do Cordel que temos em casa, mas não essa. Já tinha visto o nome e achado engraçado. Somente agora li a letra e achei simplesmente maravilhosa. Emocionante, mesmo. Fico pensando na beleza que o sofrido nordestino comum traz dentro de si. Coisas que as superproduções, os artistas de ocasião e os sucessos fabricados jamais poderão ter.
Viva o amor verdadeiro, na língua que for!
Quando veremos o Cordel ao vivo? O Antônio Nóbrega veio aqui, não foi?