“Deixa que o teu bom senso te oriente. Que a ação responda à palavra e a palavra à ação, pondo especial cuidado em não exceder os limites da simplicidade da natureza, porque tudo o que a ela se opõe, afasta-se igualmente da própria finalidade da arte dramática, que é, tanto em sua origem quanto nos tempos que correm, a de apresentar, por assim dizer, um espelho à vida.”
(Hamlet. William Shakespeare)
Não é à toa que o capítulo 9 da série Som & Fúria se chama “Monstros Raros”. Nessa semana aparecem alguns tipos que, infelizmente, não são assim tão raros: o diretor Oswald Thomas (Antonio Fragoso), que já esteve em cena antes quando da montagem de Hamlet, o ator Henrique (Daniel Dantas), chamado para viver Macbeth e o publicitário Sanjay, representado por Rodrigo Santoro. Cada um a seu jeito vive em um mundo muito particular em torno do qual devem gravitar todos os demais. Senhores de si, tentam senhorear os outros e há, acreditem, quem se proponha à coleira.
Sanjay é, na minha opinião, um aproveitador. Se seus caminhos são honestos, ou não, ainda não deu pra saber. Há quem o apóie e existe quem o detrate, mas isso há em qualquer lugar, em qualquer profissão, pra qualquer pessoa. Com uma estrutura organizadíssima e uma lábia totalmente fundamentada ele leva seus clientes pra onde quer. Se vai dar certo, é preciso pagar pra ver!
Thomas é um desses diretores herméticos, cheio de certezas, de um conhecimento processado pelas suas próprias experiências e, por que não, impávia, contra o qual não há contradição. A cada questionamento uma enxurrada de colocações feitas como que num dialético alienígena que pretendem fazer os atores parecerem os grandes idiotas que ele, claro, acha que são. E quantos encenadores não há assim, que devendo dividir e orientar fazem dos espetáculos a sua cozinha, ou a sua privada? Trabalhei com alguns profissionais e cada um tem um jeito muito particular de conduzir a encenação. Felizmente nenhum foi um Thomas na minha vida, ainda que em muitos momentos eu tenha ficado (ou me sentido) num escuro frio e pegajoso, sem saber o que fazer, o que dizer, pra onde ir, me sentindo sim, um idiota. Mas isso são meus processos: cerebrais diria Adriano Barroso, disciplinados na visão de Aníbal Pacha, (...) na não-fala de Wlad Lima. Em todos ao menos um ponto em comum, uma exasperação que nasce sei lá de onde aliada a um paternalismo (com a peça, consigo, ou conosco eu não sei!) que beira um precipício do qual alguém sempre acaba se jogando. Talvez seja exatamente isso o necessário: jogar-se. É importante dizer que é mister se sentir seguro com a direção. Entender que ela sabe os caminhos para os quais a encenação está caminhando; que haja respostas – nenhuma de mão beijada – e que o ator possa se sentir um artífice, nunca um marionete.
Atores. O que é o Henrique? Logo de cara ele pede pra se apresentar com um dos monólogos de Macbeth, pavão misterioso. “Já fiz essa peça três vezes”, repete incessantemente e pára o ensaio pra dizer que ele pensa que seria melhor se ele estivesse em tal lugar no momento de tal fala. “Claro!”, retruca o fantasma de Oliveira, “Ele não pode ficar quatro segundos de costas para a platéia!”. Daí me reporto ao texto do Shakespeare no topo da minha escrita. Henrique é o que chamamos de canastrão, mas adorado. Sua atuação empolada agrada apenas a pseudo-conhecedores-apreciadores da arte dramática. Houve um tempo de monstros sagrados, isolados no centro-frente do palco, em plano mais alto, iluminados profusamente, intocáveis. Enquanto estética isso foi se quebrando e ficando ultrapassado. Enquanto vaidade permanece até hoje e permanecerá sempre porque a vaidade parece ser atributo inerente dos (maus) atores. Ainda somos vistos como animais exóticos, capazes de mimetizar sentimentos, fingir e mentir de tal forma que ninguém saiba se o que falamos, seja no palco ou fora dele, é ou não real. Cria-se uma aura de desconfiança, mas também de admiração. Precavida, mas admiração. Parecemos viver num mundo à parte, doidivanas, contrários todos as leis honradas dos homens e de Deus*. Poucos fora do metier nos vêem como trabalhadores. Vêem apenas as gaitadas, a libertinagem, a tal fama e a tal fortuna que, quando não aparece, é recibo de incompetência e norte pra outros caminhos. É preciso entender e respeitar nossas longas horas de ensaios, nossa detalhada observação das pessoas e da vida, nossa entrega; os suores, as lágrimas, as noites em claro, alguns sacrifícios, uma necessidade quase patológica de ler, estudar, pesquisar, repetir, refazer, retomar, mandar deus e o mundo às favas e se agarrar a tudo como uma tábua de naufrágio. Não ter certezas. Não se sentir enorme. Não ter dúvidas. Nunca se sentir pequeno. Ser. E ser pra si e ser pro palco.
Isso, claro, para os que são atores e atrizes. Quem desconhece essa rotina, ou faz disso o seu cartão de visitas, não merece esse substantivo. Ou seria adjetivo? E sejam todos bem vindos ao Fantástico Mundo de Henrique!
HUDSON ANDRADE
23 de julho de 2009 AD
9h50
REFERÊNCIAS
1. Shakespeare, William. Hamlet. Tradução Pietro Nassetti – São Paulo: Martim Claret, 2001
2. (*) Pecado, Carlos Balk e Pontier y Francini
3. Imagem: Sérgio Britto em foto de Guga Melgar
3 comentários:
De fato, explendoroso! Engraçado, ler este teu artigo, me reportou, a uma certa 5ª Cultural, acho q no ano de 2003 (ou será 2004), no 15° andar do Banco da Amazônia, em Belém do Pará, quando eu pude ver o Ator - em maiúscula mesmo - Hudson Andrade.
Hoje, moro no Rio de Janeiro, e na busca incessante pela prática do ser ator, aqui, sempre recordo dos brilhantes atores q vi no palco, ai, em Belém, e claro, tu és um destes atores, ou melhor, Atores - com maiúscula.
Fica bem!
Queridão,
obrigado pela visita e pelos comentários.
Juro que vou me esforçar dobrado pra corresponder às tuas observações.
Merda por aí, garoto!
Hudson...
Dei uma passada em teu blog e gostei bastante!
Parabens!
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