segunda-feira, maio 21, 2007

EU 4

O ônibus dobrou à esquerda e naquela rua o sol recém parido subia forte. Pego de surpresa, fechei os olhos, mas a luz que avançava pelas frestas das minhas pálpebras criava para mim um mundo laranja levemente sanguíneo. Enterrei a cabeça entre os braços, contra o encosto do banco da frente. Pouca melhora. A luz me invadia por todos os lados.
Sempre disse que não queria viver longe da minha terra e se preciso fosse um afastamento, queria tornar a ela antes de morrer e aqui terminar os meus dias, como os velhos elefantes, ou os peixes piracema acima. E por mais contraditório que isso possa parecer, o que mais eu sentiria falta do berço seria a luz. Uma luminosidade quente, branca, que dá às mangueiras um tom esmeralda, fazendo brilhar as Marias dos poucos azulejos sobreviventes, tornando o asfalto um rio barrento e duro. Uma luz que esquentava brotando poças nos sovacos, costas, nas barrigas proeminentes, escorrendo pelas pernas com um certo nojo salgado.
Ontem, na escuridão da minha noite insone, o que me iluminava era a tela pela qual conversávamos; desde há muito, a única forma de contato, nosso único elo. Eu poderia encarar isso como uma fuga do momento em que diríamos o que era evidente? Que não mais me querias, ou que nunca me quiseste, que eu te deixei faltar algo, ou que exagerei nos cuidados? Que ele te fazia mais feliz que eu... que o deixaste, encantado pelas minhas palavras melífluas, vazias, o que só tardiamente descobriste. Ou talvez o vazio fosse teu, pois te jogaste com um furor apaixonado, típico da juventude, bebendo direto na veia, deixando a mim, minha cama e meu dia exaustos quando partias com essa luz azul-dourada do nascer do sol.
Ontem eu não dormi. Encerrar a conexão fora um presságio, minhas fundas olheiras e os pequenos vasos nos olhos aumentando minha fotofobia mesmo debaixo dos óculos escuros.
Ontem tu dormiste? Se ao te encontrar estiveres bem disposto, os olhos castanhos ainda mais claros pela luz branco-quente da minha cidade natal; se te sentares sorridente, mastigando salgadinhos, saberei que acabou.
Desço do ônibus desejando te encontrar mortificado, um boné escondendo os cabelos despenteados, a camisa – a primeira que encontraste – meio amassada e um pouco torta no corpo. Ao mesmo tempo entro numa lanchonete, lavo cuidadosamente o rosto, arrumo meticuloso os cabelos e as roupas. Examino meu andar, o hálito, o pulso. Ensaio sorrisos e cumprimentos másculos.
Depois de longos minutos e por causa do chuvisco, vou embora.
Na caixa de entrada, o recado: “Desculpa, não deu. Dormi demais!”
Pela janela os astros vaticinavam mais uma noite em claro.

Belém, Pará, 18 de maio de 2007 AD
11h01

Um comentário:

Anônimo disse...

poxa adorei o texto... teve partes que me arrepie todinha sse realismo meio pético cm nossa cidade sempre me emociona....
eu escrevo também ms naum tenho talento pra livros crônicas e textos assim td que escrevo sai em prosa oou poesia..