quinta-feira, maio 26, 2011

VOCÊ TEM MEDO DE QUÊ?! - 2# ROUND



Ainda a pouco me chegou às mãos um documento intitulado Movimento pela Preservação da Família e Contra a Heterofobia. Nele, alguns cidadãos abaixo assinados pediam providências ao senado da república quanto ao que eles chamavam de garantia do direito constitucional de livre expressão e defesa de declaração de dogmas religioso contra o que eles classificam como heretofobia. Frente às últimas decisões do senado brasileiro quanto aos direitos e deveres do cidadão homossexual, um turbilhão de gentes passou a se manifestar, desagradadas. Esses homens (sobretudo) e mulheres de bem, que no seu dia a dia violam bem mais do que um dos antigos sete pecados capitais (aqueles que mandam direto para o fogo do Inferno), exigem o seu direito de continuar a ofender e achincalhar: Fresco filho da puta! Viado de merda! Bicha escrota! Baitola nojento! Maricona! aos berros, do alto da sua dignidade. Querem garantir impunidade e imunidade por defesa justa da honra a todos os que enfiam pimentas, estacas de madeira e outros tantos objetos pelo reto adentro de uns; que desferem múltiplas facadas, golpes de lâmpadas fluorescentes e tiros em outros. Que extorquem, chantageiam, invadem e matam muitas vezes após intrincados jogos de sedução onde, não raro, cabem mais do que simples carícias, subtraídas por conta da posição ativa de um sujeito que explora a carência de quem, muitas vezes, só quer o seu quinhão de amor na vida, mas só pode vivenciá-los nos guetos, nas praças escuras, nos matagais, nos clubes, boates e bares marginais e/ou marginalizados, já que o mundo exterior, o sol, os passeios, a proteção legislativamente garantida pertencem aos normais.

Estas pessoas citam a Bíblia para embasar seu protesto: “E criou Deus o homem à sua imagem: fê-lo à imagem de Deus e criou-os macho e fêmea”. (Gen 1, 27). Pensam unicamente na vida como se esta fosse apenas uma sucessão de práticas sexuais procriatórias quando eles mesmos não se eximem do sexo livre do compromisso de manutenção da espécie. Sexo é mais do que isso. É troca de afetos, repositor de energias, força criativa que extrapola a carne para a inventividade, a arte, a pesquisa, a construção de engenhos cada vez mais maravilhosos. Sexo não é amor. Amor não é sexo. E embora os dois nem sempre estejam juntos na mesma equação, um com o outro é o supra-sumo do prazer. Sexo exige consenso, respeito e dignidade. E isso não é privilégio de heterossexuais, que por sua vez amam seus pares: a amiga de infância, o irmão de sangue, a prima mais velha que lhe dá conselhos, o craque de futebol, a parceira de rezas, o colega de escritório. Ou vão me dizer agora que amor tem boceta, pau, ou cu?! Ou vão dizer como um amigo meu: “Eles – leia-se, os... gays – podem até namorar e tal, mas... em público, num restaurante, têm de manter o respeito!”. Esse meu amigo – muito querido por sinal – é como aquela educadora baiana que deu suspensão de dois dias a um aluno de 9 (ou 13? Não lembro!) anos porque ele acariciou a cabeça de um colega. Na carta aos pais dizia: comportamento imoral e indisciplinado. Criou um estigma tão forte que a criança não quer voltar às aulas porque sabe que vai ser discriminado e fica repetindo, envergonhado: Eu não sou assim! “Assim". Algo tão terrível que não merece nem ser mencionado.
Jesus, que estes costumam lembrar apenas nos momentos de precisão, já falava deles: “... sois semelhantes aos sepulcros branqueados, que parecem por fora formosos aos homens, e por dentro estão cheios de ossos de mortos e de toda a asquerosidade. Assim vós (...) por dentro estais cheios de hipocrisia e iniqüidade. (Mt 23, 27-28). Serpentes, raça de víboras, como escapareis vós de serdes condenados aos inferno?” (Mt 23, 33).

É verdade que do lado de cá há excessos de todo tipo, comportamentos equivocados, deboches desnecessários, um cabo de guerra tenso que só pode terminar em violência porque com violência é fomentado. Há sim uma heterofobia no gay que exige a aceitação plena de quem não quer aceitá-lo, não pode compreendê-lo, teme o que desconhece. Ninguém é obrigado a aceitar nada que não queira aceitar e estes podem até fechar os olhos e fingir que não podem mudar, ou aprender com o outro por considerá-lo inferior, doente, degenerado, inculto, ignorante. Isso vale para os dois lados: “Porque do interior do coração do homem é que saem os maus pensamentos, os adultérios, as fornicações, os homicídios, os furtos, as avarezas, as malícias, as fraudes, as desonestidades, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura. Todos estes males vêm de dentro e são os que contaminam o homem.” (Mc 7, 21-23)
Mas é da Lei o amor ao próximo porque somos todos irmãos. E se não quiserem entrar nessa seara religiosa, somos todos cidadãos do mesmo estado e sobre nós reza uma lei – a mesma lei que lá no início eu disse ser citada pelos meus concidadãos moralistas – que garante a todos direito à vida, à liberdade e ao bem-estar físico, social e moral.
O que o senado federal fez – e ainda falta muito a fazer! – foi por no papel o que deveria estar no coração. Enquanto a forma não prevalecer, que a letra se imponha!

E encerremos ainda com o Evangelho, pedindo Paz e Bem a todos os homens e mulheres: “Concerta-te sem demora com o teu adversário enquanto estás posto a caminho com ele (Mt 5, 25); Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos têm ódio e orai pelos que vos perseguem e caluniam: para serdes filhos do vosso Pai que está nos Céus, o qual faz nascer o sol sobre bons e maus e vir a chuva sobre justos e injustos. Porque se vós não amais senão os que vos amam, que recompensa haveis de ter? (...) E se vós saudardes apenas os vossos irmãos, que fazeis nisso de especial? (...) Sede vós logo perfeitos, como também vosso Pai Celestial é perfeito.” (Mt 5, 43-48)

HUDSON ANDRADE
Belém, Pará – 25 de maio de 2011 AD
15h50

segunda-feira, maio 23, 2011

EU 31



Eu e o cinema sempre tivemos uma relação muito próxima e ele sempre influenciou muito da minha escrita. Adoro imagens. Dessa vez A Origem, de Christopher Nolan e A Ilha do Medo, de Martin Scorcese foram a inspiração.
Para ler ao som de Calor, de Adriana Calcanhoto.

Enquanto tudo derrete.
Enquanto tudo derrete.
Enquanto tudo parece
Derreter.


A rua parecia interminável. Larga. Sem curvas. Muitas transversais. Limpa e silenciosa se estendendo até onde a vista alcançava, coberta por um céu turquesa sem qualquer nuvem.
Nas calçadas igualmente largas, enormes mangueiras cujas copas não chegavam a se fechar em túnel, carregadas de frutas que despencavam com um burburinho de folhas e galhos estalando; bombas amarelas que a terra engolia assim que tocavam o chão, alimentando os canteiros de flores coloridas. No ar, um perfume de jasmim.
O calor de quarenta graus era amenizado por uma lufada de vento que de tempos em tempos atravessava a via principal e suas várias travessas.
A avenida era ladeada de cinemas, um seguido do outro, exibindo todos os tipos de filmes, clássicos, antigos, comédias, P&B, 3D, aventuras. Bem a minha direita o Palácio exibia Branca de Neve e os Sete Anões e à esquerda o Olímpia mostrava Jornada nas Estrelas. Ao longe se ouvia o estalar das pipocas e a brisa trazia um leve cheiro de manteiga.

Teria sentido um leve tremor?

Subi num ônibus e percorri a avenida e foi numa quadra mais distante que eu o vi caminhando pela rua, o rosto fechado. Dei sinal para que o veículo parasse e me precipitei porta afora alcançando-o quase numa esquina. Chamei-o pelo nome. Ele se virou, a testa franzida, me viu e disse um oi seco e completou com um “que é que aconteceu?” seguido também pelo meu nome. Não consegui dizer nada. Ele deu as costas e dobrou a rua, sumindo.

Novamente aquela sensação de que o chão tremia e um som de queda ao longe.

Subi num ônibus e percorri calmamente a avenida e foi numa quadra mais distante que eu o vi caminhando pela rua, o rosto fechado e sério. Dei sinal para que o veículo parasse e me precipitei porta afora o alcançando quase numa esquina. Chamei-o pelo nome. Ele se virou e sorriu o sorriso mais lindo do mundo e me disse oi com um beijo. Não consegui dizer nada. Pra quê?

Agora eu tinha certeza que o chão tremia.

Subi num ônibus e percorri ansioso a avenida e foi...

Uma imensa árvore caiu arrastando a fiação elétrica, deixando tudo às escuras. Desci do ônibus e caminhei pela rua cada vez mais rápido até começar a correr desembestado. Dobrei na esquina e entre o hospital e a sorveteria a casa de dois andares estava abandonada. Os vitrais opacos, cadavéricos, as paredes pichadas de azul. Eu mesmo pichara, num aceso ridículo de fúria. A parede frontal fendida de alto a baixo e das suas bases as rachaduras iam se abrindo e aprofundando e espalhando para o resto da cidade.

Gritei por ele. Ninguém respondeu. Teria ouvido um latido? Sempre havia cães por perto, mas eu nunca os via. Sabia deles pelas muitas vasilhas com ração que ele colocava pela casa toda, pelas calçadas, na vizinhança, por toda a parte. Eu não reclamava. Apesar de vir aqui todos os dias eu sabia que passava muito tempo fora e que ele se sentia sozinho. E preso e triste e angustiado e indeciso e sufocado. Apaixonado? Sim! Quanto? Que tipo de pergunta é essa?
Chamei de novo. Ganidos de filhotes reclamando o leite materno.
Corri dali pra rua principal e até o final onde um cinema escuro exibia filmes escuros. Por que aqui? Ele nunca vinha aqui!
Mas lá estava ele. Caminhei devagar até a fila em que ele estava e sentei ao seu lado. Levei a mão sobre a sua coxa e apertei. Seu olhar afundou no meu. Eu sentia febre, suava, tremia. O toque dele corria por mim como eletricidade. O coração aos saltos sentindo seu cheiro misturado ao meu. Levantei sem camisa e tirei a dele. Nossos peitos se encontraram batucando. Meu fôlego ficou curto, meu corpo teso, todo ele. Nos abraçamos com tanta força que nosso beijo doeu. A poeira caia abundante do teto que balançava, os azulejos soltavam das paredes. O filme interrompia e voltava. Puxei seu pau contra o meu e então ouvi a música. A orquestra subindo e a voz firme de Piaf.
Ele me olhou e sorriu. Os olhos brilharam em brasa, os lábios, e um fogo rubro o consumiu de dentro pra fora, deixando nos meus braços uma casca negra que se desfez.
A música ficou mais forte e a luz da saída de emergência piscou. Corri pelo corredor para a porta quando a parede lateral ruiu revelando um mundo que se desmanchava. Parei antes da cortina de veludo azul. Piaf parecia pedir que eu me apressasse, mas não me mexi.
Sentei em frente à tela branca. A luz de emergência apagou totalmente.
Silêncio.

HUDSON ANDRADE
26 de março de 2011.
10h07

Crédito da foto: imagem do filme A Origem, coletada do site omelete.com