sábado, outubro 16, 2010

EU 28



Para ler ao som de Poema, do Cazuza: “Eu procurei no escuro alguém com o seu carinho e lembrei de um tempo...”


Eu tinha uns 8 anos, acho. Como meu pai tinha ido embora, minha mãe precisou trabalhar e eu ficava em casa com o meu irmão mais novo.
À tarde eu sentava na janela da frente da casa e ficava encostado contra a grade de ferro espiando o movimento da rua, os moleques correndo, a chuva que caía e evaporava da calçada provocando aquele vapor sufocante e aquele cheiro de coisa molhada: terra, grama, bom de sentir; asfalto, reboco, coisa estranha. De vez em quando meu irmão me olhava perguntando com os olhos se já estava na hora do pão com suco de pozinho. Não. Ainda não, eu respondia virando o rosto pra rua. Eu bem que queria, mas devia esperar mais um pouco, até o sol ir ficando mais vermelho e antes das cigarras começarem a cantar. Meu irmão brincava com um cachorro de plástico que tinha perdido o rabo. Dia desses eu achei um guarda-chuva velho e usando o cabo substituí a cauda perdida. Meu irmão achou engraçado. Realmente não ficou lá muito diferente. Ele levantou os olhos de novo. Não. Ainda não.
Quando eu via minha mãe chegando eu corria pra buscar a chave que ficava num lugar secreto e tirava a tranca. Assim que ela pisava na soleira eu abria a porta. Ela entrava com um oi meus filhos e passava direto pra cozinha. Depois do jantar queria ver nossos cadernos e nos mandava pra cama. Meu irmão dizia que seu cachorro rabo de guarda-chuva estava chamando por ela, mas minha mãe respondia um agora não, meu filho entre os pratos e talheres e eu o pegava e levava pra escovar os dentes e mudar de roupa. Até hoje é assim! Teu almoço tá na mesa, tem toalha limpa em cima da tua cama, essas calças estão sujas? E quando eu fico olhando pra ela, apenas responde agora não, meu filho.
Já de pijama tomávamos a benção e ela nos mandava dormir. Às vezes eu não ia e ficava olhando pra ela e quando perguntava que foi eu sentava no chão, colocava a cabeça no seu colo e ela fazia um cafunezinho que logo parava e quando eu olhava, ela estava dormindo. Eu levantava devagar e desligava o televisor, mas minha mãe resmungava deixa que eu tô vendo a novela. Vai dormir. Eu sempre ia.
Um dia minha mãe chegou e antes de ir pra cozinha me entregou um pacote. Abre. Vê se gosta, ela disse. Esse é pro teu irmão, pra vocês não brigarem. Os pacotes eram idênticos. O conteúdo também: um caminhãozinho de plástico de um palmo mais, ou menos. Na carroceria, três boizinhos desses de plástico fino e oco. O presente em si não tinha a menor importância, mas quando ela o entregou disse lembrei de você. Virou de costas e foi providenciar o jantar. Aquele caminhãozinho e seus bois viraram o meu brinquedo favorito e eu o levava aonde fosse. Um dia ele se perdeu. Como quase tudo na vida. Isso também não tinha importância porque pra mim ficou muito mais forte aquele lembrei de você dito tão poucas vezes.
Hoje em dia quando minha mãe vem em casa (e é bem pouco) e ela que desliga o televisor e me tocando o braço diz pra eu ir pra cama que eu tô cansado e amanhã tem trabalho e que ela fica mais um dia pra poder preparar aquela carne que eu gosto tanto e se está tudo trancado, se eu paguei o telefone e pra eu não acender a luz do quarto nem fazer barulho que os netinhos dela tão dormindo com o pai.
Vai dormir. Eu sempre vou.

HUDSON ANDRADE
16 de outubro de 2010 AD
10h22

Um comentário:

Yúdice Andrade disse...

Um texto muito bonito. Até gostaria que ele estivesse mais próximo da realidade.