sábado, julho 27, 2013

EU 33

Dies Irae. “É como acordar de um pesadelo”, escrevi. Pus a caneta em suspenso e fiquei olhando as paredes por tanto tempo que o suco (intocado) ao meu lado se diluiu e transbordou. Recolhi com vagar algumas páginas manchadas, olhei-as com detida atenção e o que eu julguei dispensável juntei à pilha de bolas e picados, provocando um pequeno desmoronamento. Segui com os olhos uma bolota amassada com tal precisão que se poderia julgá-la perfeitamente redonda. Ela correu entre seus pares, deslizou pelas lajotas e foi bater na porta trancada. Pela fresta rente ao chão uma luz se acendeu de súbito. Ato contínuo, apaguei o abajur, prendendo a respiração, e só quando o fôlego me faltou e a vista já divisava os vultos dos poucos móveis do quarto é que tornei a acendê-lo. Rex tremendae. Fui ao banheiro e fiz um varal com as outras páginas. As que supus importantes. Algumas seriam reescritas antes de serem tomadas pelas formigas. Algumas folhas exibiam círculos cinzentos com bordas esverdeadas. Outras, bordas marrons e outras ainda avermelhadas. Estas se espalhavam como rachaduras entre a minha caligrafia. Aqueloutras eram como mórulas. As primeiras eram como um bosque visto do alto. Era preciso se abaixar e desviar para chegar do outro lado do cômodo, alcançar a pia e deixar a água fria escorrer pelo ralo, entre os dedos, pela barba enorme, de novo pelo ralo até, por fim, recolher-se novamente cano adentro. O cheiro amargava a boca. Empertiguei o corpo e contemplei o espaço como um suserano abastado... generoso... compassivo... misericordioso... Confutatis. Alguém chamou meu nome? Alguém entrou no quarto? Alguém leu o que eu tinha escrito? Haveria alguém ali do outro lado da parede decorada com delicados lírios? Haveria alguém no corredor, na escada, na sala de estar, na calçada em frente, no bairro ao lado, na cidade próxima, além do oceano...? Haveria alguém neste mundo? Haveria alguém no Outro? Havia eu? Pus a cabeça fora do banheiro. Lacrimosa. Nada. Pela fresta da porta, rente ao chão, não entrava mais nenhuma luz. Sentei à mesa, tomei da caneta, outra folha de papel. “É como acordar de um pesadelo”, escrevi. Amassei a folha com tamanha precisão que se poderia julgá-la perfeitamente redonda. Lancei-a entre seus pares provocando um pequeno desmoronamento. Mais uma folha de papel. Fiz uma tira, enrolei. Comi. Mais uma. Outra. Outras. E outras e não parei mesmo quando o fôlego me faltou e a vista mal divisava os vultos dos poucos móveis do quarto. Era como acordar num pesadelo. HUDSON ANDRADE 27 de julho de 2013 AD 10h10 CRÉDITO DA IMAGEM: http://www.google.com.br/url?sa=i&rct=j&q=&esrc=s&frm=1&source=images&cd=&cad=rja&docid=M5-zXBwvVDDJ3M&tbnid=Nzb5guUsKvIAaM:&ved=0CAUQjRw&url=http%3A%2F%2Fluizmeira.com%2Ffungos.htm&ei=mc_zUbv9I4nO8QScrYGoBQ&bvm=bv.49784469,d.eWU&psig=AFQjCNGfrEfD5hVPZwx6eCzQbETNUpHH_A&ust=1375019222517463