segunda-feira, março 18, 2013

TUDO É AMOR

Dias atrás após assistir Argo eu me propus a mais um exercício de crítica onde eu falaria do que tinha visto até então. Não muito, mas foi mais nesses um ou dois meses do que em todo um ano. A ideia era falar de linguagens e coisa e tal. O tempo foi passando e isso ficou meio esquecido. Agora eu assisti Amor e me deu vontade de vencer a preguiça e escrever algo. Nada das firulas que eu pretendia para a postagem anterior. Sei lá. Falar de amor talvez seja o caminho. Simples assim. Amor a Deus e amor à ciência em As Aventuras de Pi (Life of Pi, EUA, 2012); amor a um ideal, à liberdade em Os Miseráveis (Les Misérables, Reino Unido, 2013); Argo e o amor ao trabalho e ao cinema, afinal o diretor usa o cinema pra fazer cinema (EUA, 2012). Em Outros Mundos (Cirque du Soleil: Words Away, EUA, 2013) uma jovem vive um amor-de-repente por um trapezista e em Amor (Amour, França/Alemanha/Áustria, 2012) um casal de aposentados vive um amor de uma vida inteira. Suraj Sharma vive Piscine Pavel, um jovem inteligente e sentimental que se vê na insólita situação de dividir um barco à deriva com um tigre feroz. Anos mais tarde, durante uma entrevista, ele conta sua aventura a um homem que diz esperar que ele o faça acreditar em Deus. O filme é calcado em tecnologia e ele simplesmente não existe sem aqueles oclinhos 3D. Nesses tempos em que heróis da Carochinha são revisitados, recheados de violência gratuita e recobertos de efeitos especiais que tentam (sem sucesso) esconder a falta de qualidade artística dos filmes, assistir uma produção feita num computador é, para mim, praticamente impensável. Mas do outro lado da câmera está Ang Lee, um contador de histórias. E um contador sensível e humano que me fez – como pede na legenda do filme – acreditar no extraordinário. No final da entrevista somos confrontados com a questão: o que se quer: a verdade nua, crua e humana de um boletim policial, ou a força imagética e humana do mito? Assim também é Deus. Entendeu? Tom Hooper é o diretor britânico que concorreu a 12 Oscares pelo excelente O Discurso do Rei. Agora ele traz para as telas o famoso musical da Brodway nascido da obra de Victor Hugo. E tudo em Os Miseráveis é como tem que ser um musical: grandioso, eloquente, visceral, mas é nos detalhes que brilha a força desse que deveria ser premiado o melhor filme de 2012. Lute, canta sem grandes dotes vocais Russell Crowe, mostrando toda a inflexibilidade de Javert. Sonhe, cantam os enamorados Cosette (Amanda Seyfried) e Marius (Eddie Redmayne) junto aos jovens revolucionários na Paris do século XIX. Espere: é a voz de Hugh Jackman que abriu mão dos palatáveis heróis juvenis para viver Jean Valjean, prisioneiro para além de qualquer corrente. Ame: a Fantine da oscarizada atriz Anne Hathaway é o ponto alto da emoção intercalando canto, choro, desespero e esperança em I Dreamed a Dream. Uma joia rara. Arte na sua melhor expressão. Andrew Adamson também conta histórias. Fábulas. É dele Shrek e os dois primeiros episódios de As Crônicas de Nárnia. Esse diretor neozelandês juntou-se a James Cameron que veio fazer o que ele mais sabe fazer: dinheiro. Ouvi uns bochichos de que a empresa de Guy Laliberté e Daniel Gauthier estaria mal das pernas, e isso me pareceu justificar fazer uma colcha de retalhos de diversos espetáculos do Cirque du Soleil costurados por uma historinha simplória e açucarada. Assisti Outros Mundos sem esperar mais do que ele poderia me oferecer e por ter chegado muito cedo ao shopping. Não me arrependi. Adoro o Cirque du Soleil e seus números matematicamente cirúrgicos camuflado em luz, figurinos e maquiagem oníricos. Cinema, pipoca e Coca Cola... sem pipoca que eu não gosto. Ao fim das duas horas de exibição de Argo eu (e creio que todos) saí do cinema com a sensação de que tudo durou não mais do que meia hora. Isso porque Ben Affleck decidiu contar sua história em linha reta: em 1979 um agente da CIA, Tony Mendez (o próprio diretor), deve resgatar seis funcionário da embaixada americana num Irã radicalmente anti-estadunidense sob o governo do aiatolá Khomeini. É isso. Sem reviravoltas mirabolantes, sem um tiro sequer. Mendez cumpre sua missão num projeto tão estapafúrdio que tinha tudo para dar errado. Deu certo. Na vida real e nas telas. E Argo é o melhor filme de 2012 para a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Uma decisão política, mas nada injusta. Direção, roteiro, elenco, edição, tudo afinadíssimo para deixar a plateia em permanente estado de tensão que só se quebra fora do espaço aéreo iraniano, quando personagens e público respiram juntos, aliviados; um sorriso de eu-já-sabia no canto esquerdo da boca. O filme de Michael Haneke é para ser visto em silêncio. Talvez não só como eu estava – ainda que tivesse ao meu lado duas grandes almas e grandes atrizes, Adriana Cruz e Valéria Andrade –, mas em silêncio. Um calar interior para perceber o desenrolar da vida de Georges (Jean-Louis Trintignant) e Anne (Emmanuelle Riva) que apesar dos filhos, do apartamento (para mim) confortável, do piano e dos quatro álbuns de fotografia onde a velha senhora reconhece ser linda e feliz uma longa vida apenas para – outra vez – insinuar que ela já pode ter seu desfecho, só tem um ao outro, num regime de simplicidade e felicidade quase burocrática. Quietude para reconhecer que a rotina mais aguerrida pode ser quebrada por um acontecimento inesperado. Paciência para acompanhar os passos cada vez mais arrastados de George. Em tempo, Riva foi indicada ao Oscar, mas Trintignant a acompanha passo a passo. Amorosidade para ver que um tapa pode não ser um ato de violência, mas um pedido desesperado de socorro. Essa cena, aliás, quebra o tal silêncio. Entre o casal e na audiência que ouviu um “oh!” percorrer as filas de cadeiras para logo sumir, envergonhado. Auteridade para buscar compreender um separar-se sem despedidas, de supetão; um ritual de arrumar, dispor flores, lacrar portas e esperar que lhe venham resgatar da insuportável solidão. Amor, para descobrir o real sentido de compartilhar. Ao final ficar um pouco no fundo da poltrona pensando em si ou naquele amor que está ao lado e do qual não cuidamos. Ou levantar de pronto, na pressa de ir atrás de si em si mesmo ou em outrem. Cinematograficamente (para manter uma linha de pensamento feita acima) Amor é bijuteria, mas é a peça mais querida da caixinha. Aquele coração metálico que se abre com dificuldade para revelar duas pequenas imagens: felicidade congelada no moto perpétuo do tempo. HUDSON ANDRADE 18 de março de 2013 AD 01h27