segunda-feira, março 26, 2012

RABISCOS



Dois deuses regem a minha vida.
Dois deuses contraditórios, como eu próprio sou contraditório.
O primeiro deus é Deus, assim chamado – diz Victor Hugo – por não haver designação maior que nomeá-lo.
O outro é Dionísio, o caprichoso deus que ensinou os homens como tirar da uva o sêmen do delírio.
O primeiro me criou. O segundo me suporta.
Um me fez imortal. O outro me recria por efêmero.
Deus me vivifica. Dionísio me alucina.
Aquele é a razão, este, a ação.
Ambos estão em toda parte. Deus onde quer que eu esteja. Dionísio onde quer que Moliere soe suas três bastonadas.
Num me encontro, no outro me esqueço, nos dois me confio.
Para ambos, velas. Para ambos, incensos. Para os dois eu canto. Com os dois eu danço. A Deus, misericórdia. A Dionísio, sacrifício.

Neste dia coberto de cinzas meus dois deuses me fizeram luz. Deus na prece que o Evangelho conduziu, Dionísio na oração de Santiago Serrano rezada por Juliana Porto e Leoci Medeiros. A fé de um, o drama do outro.
Se a quem me lê pareço confuso, pense que ninguém sabe quem levará nossas preces aos Céus, assim como o dramaturgo, o diretor, aqueles em cena não sabem o que a plateia vai acolher de nossa messe.
Cheguei à Casa da Atriz com o corpo e o coração alquebrados. Orei a Deus e depois de um silêncio reconfortante, entreguei-me a liturgia do Teatro.
Juliana tem razão: Deus está aqui.
Evoé!

HUDSON ANDRADE
27 de janeiro de 2012 AD
22h08
No ônibus, já feliz, indo para casa.

sábado, março 24, 2012

ALGUÉM MORREU MAS NÃO SEI QUEM FUI!


Para ler ao som de Noel Rosa: Quando eu morrer, não quero choro nem vela...


Uma das principais características da comédia é o engano. Frequentemente, o cômico está baseado no fato de uma ou mais personagens serem enganadas ao longo de toda a peça. À medida que a personagem vai sendo enganada e que o equívoco vai aumentando, o público (que sabe de tudo) vai rindo cada vez mais.
A trama de Perfídia Quase Perfeita se desenrola dentro de uma radionovela dos anos 1950. No último capítulo o casal Cezinha (Geraldo Machado) e Dagmar (Viviane Bernard) precisa desvendar um mistério. O marido acorda atordoado no chão da sala e a mulher conta para o perplexo e desmemoriado Cezinha que houve uma traição conjugal e o desentendimento resultou num disparo de revólver. Há um caixão no meio da sala. Um deles está morto e o outro está alucinando. Toda a história é narrada e comentada por um locutor (Cláudio Marinho), que originalmente só existia em off, mas que no desenrolar da montagem acabou por se tornar uma personalidade da trama. Numa lembrança da infância quando ouvia as novelas acompanhadas pela mãe, Correia presta com sua dramaturgia uma homenagem aos antigos programas de rádio. Na trama os personagens não são os únicos enganados. Ou que estão se enganando. Toda a plateia vive uma mistificação embalada por jingles e argumentos humorísticos sutis que nos deixam também em constante dúvida até o desfecho surpreendente e deliciosamente engraçado. Aliás, essa é uma característica muito positiva desta comédia: sua deliciosa graça. Sempre apreciei as piadas que contadas, fazem com que aquele que a escute interrompa a gargalhada pra perguntar “isso foi uma piada, não foi?... Não?!... Foi sim...” e retoma o riso solto. À parte os pastelões e non-senses, abjuro radicalmente o humor gratuito da humilhação do grotesco, da exposição infamante de quaisquer grupos sociais, do excessivo apreço pela sexualidade aviltante.
Aristóteles (Filósofo grego. Estagira, 384 aC – Atenas, 322 aC) diferenciava a tragédia da comédia por aquela tratar dos homens superiores e esta, das pessoas comuns. E são nas situações cotidianas que a dramaturgia vai buscar sua lírica risada: no casal comum, na sua “suburbana e conturbada residência”, na hilária comparação entre mães e tuperwares, no nosso medo constante da morte e, penso eu, muito maior medo da solidão, que faz com que um dos pares prefira o fim a ficar sem sua metade. O brincar com canções conhecidas e torná-las falas dos personagens, recurso muito interessante que cria imediata identificação com o público e faz com que nos aliemos aos personagens porque nós também em nossos momentos de amor, paixão, raiva, tristeza, solitude, mágoa, separação, também recorremos às canções para fechar os buracos abertos em nosso peito.
E quando você pensa que acabou... mais uma cena, mais uma curva. E tudo é novo de novo. E você quer ver novamente, pra ter certeza de que não perdeu nenhum detalhe.
O diretor Cláudio Marinho, paraense, talvez por sua experiência como jornalista, emprestou a encenação um ritmo vibrante, ágil, que é seguido fielmente pelos atores, constantemente ligados entre si, à trama e ao público. Em alguns períodos nos é dada oportunidade de respirar e piscar para logo no momento seguinte descermos outra vez essa montanha russa de emoções. É no mínimo inusitado ver nossa linguagem de “tus” (na fala do autor, nosso DNA nortista) no sotaque cantado dos atores. Viviane, um verdadeiro furacão em cena, contrastando com a moça quieta quando o espetáculo termina. Geraldo não fica atrás, preenchendo cada espaço vazio do palco com uma energizante presença cênica.
Ainda privilegiando a prata da casa, Sônia Lopes assina a iluminação. E é de aplaudir já que tudo foi afinado na mesma tarde de estreia, dado o cronograma da Companhia Fé Cênica, pela primeira vez em Belém e em tão curta temporada. Vitoriosos, já que vieram por sua própria conta e risco, como, aliás, é a realidade do teatro em particular e da arte como um todo no Brasil.
A Fé Cênica existe há cinco anos e Perfídia Quase Perfeita estreou em 2010, na mostra paralela do Festival de Teatro de Curitiba. Marinho privilegia a dramaturgia paraense em seus trabalhos no sudeste, tendo encenado ainda Fogo Cruel em Lua de Mel, de Nazareno Tourinho (2007 a 2009), As Ruminantes, de Saulo Sisnando (2009), A Fábula das Águas (2011), seu primeiro infantil com texto também de Carlos Correia Santos, de quem ainda é a nova proposta da companhia: uma possível montagem de O Assassinato de Machado de Assis, já encenada em Belém.
A importância da comédia é a possibilidade democrática de satirizar todo e qualquer tipo de idéia e toda e qualquer pessoa, seja ela real ou não, divina ou terrena. É possível que daí resulte tantos desmandos e tantos equívocos. Felizmente ainda há boas comédias que nos façam rir sem constrangimento, felizes por não nos levarmos e à vida tão a sério assim.
Ao final, no riso dos atores, fica uma dúvida no ar: somos nós que os assistimos, ou são eles, esses seres encantados, que se divertem conosco?

SERVIÇO:
Texto: pan style="font-weight:bold;">Carlos Correia Santos
Direção: Claudio Marinho
Elenco: Viviane Bernard, Geraldo Machado e Claudio Marinho
Iluminação: Sônia Lopes
Trilha sonora original: Cláudio Hodnik
Operação de som: Roger Magno Nunes
Cenário e figurinos: Geraldo Machado e Viviane Bernard
Fotos: Lenise Pinheiro
Design gráfico: Reinaldo Elias
Produção local: Sue Pavão
Direção de produção: Geraldo Machado e Claudio Marinho
Local: Centro Cultural SESC Boulevard (Boulevard Castilho França, 522/523, em frente à Estação das Docas)
Sessões nos dias 23, 24 e 25 de março, às 20h.
Classificação etária: 14 anos
Duração: 50 minutos.
Informações: (91) 3224-5305 ou 3224-5654.

HUDSON ANDRADE
24 de março de 2012 AD
10h14