segunda-feira, junho 27, 2011

DEUS E O DIABO ONDE QUER QUE SEJA


“Levantei os meus olhos para ti, que habitas nos céus.
(...)
“Tem misericórdia de nós, Senhor, tem misericórdia de nós, porque estamos mui fartos de desprezo;
“Porque mui cheia está a nossa alma, sendo objeto de escárnio para os ricos e desprezo para os soberbos.”

Salmo 122 (123)


Brasileiros e brasileiras. Eu estou convencido de que nunca, nunquinha, never, ever na história desse país se viu uma mobilização tão grande quanto às contrárias ao PL122/06: o projeto de lei que criminaliza a homofobia.
Hoje por qualquer coisa de não importa que monta o povo se revolta, fecha ruas, queima pneus, grita e se enfurece. Não raro os ânimos se exaltam, furibundos, e voam paus, pedras e chuva de fogo. Outros momentos da história brasileira registraram esses levantes. Para citar apenas dois, temos a Revolta da Vacina que de 10 a 16 de novembro de 1904 sitiou a cidade do Rio de Janeiro por conta da campanha de vacinação obrigatória. No início do século XX, o então presidente Rodrigues Alves, o prefeito do Rio de Janeiro, Pereira Passos e o diretor geral de saúde pública, Dr. Oswaldo Cruz, criaram medidas para sanear a cidade e combater grandes epidemias como febre amarela, varíola e peste bubônica, dada a precariedade de infra-estrutura e saneamento básico. Na reforma conhecida como Bota Abaixo inúmeros prédios velhos foram derrubados levando milhares de pessoas despejadas à força para os morros e periferias. As Brigadas Mata Mosquitos e a polícia invadiam casas para desinfecção e extermínio de mosquitos e ratos. A gota d’ água foi a aprovação pelo congresso nacional no dia 31 de outubro de 1904 da Lei da Vacina Obrigatória, autorizando as brigadas e os policiais a entrarem nas residências e aplicar a vacina à força. Nesse cenário corria solta a boataria de supostos perigos causados pela vacina e que estas deveriam ser aplicadas nas partes íntimas do corpo. Confusa e descontente a população e os cadetes da escola militar da Praia Vermelha se insurgiram contra o governo. Lojas foram depredadas, bondes virados e incendiados, trilhos arrancados, postes quebrados. A polícia era atacada a paus, pedras e pedaços de ferro. Tiros, gritaria, trânsito engarrafado, 50 mortos, 110 feridos e centenas de presos. Com a suspensão da obrigatoriedade da vacina o governo pôde retomar o controle da situação e o processo de imunização reiniciou erradicando a varíola em pouco tempo.
Situações extremas, medidas extremas. Mas o que são situações extremas senão o fruto do descaso e da incompetência? E o que são medidas extremas que não a reação ao medo de que o mal escape dos guetos e invada os floridos campos dos mandatários?

14 de agosto de 1992. O então presidente Fernando Collor de Mello, cercado por inúmeras denúncias de corrupção, crimes de enriquecimento ilícito, evasão de divisas e tráfico de influências, faz um pronunciamento em rede nacional de televisão pedindo apoio à nação, convocando o povo a se vestir de verde e amarelo e sair às ruas no domingo seguinte, 16. Um verdadeiro tiro no pé! Milhares de jovens tomaram as ruas das capitais vestidos de preto e com os rostos pintados na mesma cor. Só no Rio de Janeiro foram 30 mil, pedindo em coro o impeachment de Collor. Essas pessoas, conhecidos como os Caras-Pintadas somavam-se a tantas outras manifestações que, apaixonadamente, lembravam os movimentos da década de 60, diferindo destes em seus objetivos. Estes queriam a mudança do regime político do país. Aqueles, apenas a queda do presidente, extinguindo-se em si mesmos após a renúncia de Fernando Collor em 29 de outubro do mesmo ano.

Atualmente o Diabo veste arco-íris. O número da Besta é 122. Sua sacerdotisa: a senadora Marta Suplicy. O boato: “Querem transformar o seu filho num gay.”, “Não vamos mais poder chamar os veado de veado!” (a tal Mordaça Gay), “A bicha quer entrar na santa madre igreja de noiva, com uma cauda enorme segura por pirilâmpicas drag-queens e jogar o buquê sob um temporal de purpurina”, “Tudo bem que o cara seja gay, mas beijar homem em público?! Cadê o respeito?!”, “E adotar um filho então? Como é que vai ficar a cabeça dessa criança?” e blá-blá-blá. O alvo: a moral ilibada de homens e mulheres tementes a Deus como prescreve o rei Salomão em Provérbios, capítulo 1, versículo 7 e capítulo 9, versículo 10.
O que se quer sanear agora é a mentalidade estagnada da relação homoafetiva como doença, desvio, perversão, imoralidade, despudor. O que se pretende demolir são os cortiços infectos de um modelo familiar cristão e digno que só existe pleno no palavreado vazio dos que temem a si mesmos em primeiro lugar e ao outro: o diferente! A vacina quer impedir a morte infame e a violência degradante contra centenas e centenas de cidadãos cujo crime está no foco do seu prazer.
E continuam as passeatas. A Marcha para Jesus realizada dia 23 de junho último aproveitou para repelir o projeto da senadora.

Agora se pretende descartar o PL 122/06 para que uma nova proposta seja apresentada, mais de acordo com a bancada evangélica – os maiores críticos da proposta. Onde, por exemplo, lia-se ser crime “praticar, induzir, ou incitar a discriminação ou preconceito contra gays, lésbicas e transexuais” permanece apenas o termo induzir, menos abrangente, mas um “meio termo” como chamou Suplicy, a mesma que sugeriu relaxar e gozar nos momentos de grande provação. Tudo voltaria à estaca zero, o projeto teria que tramitar por todas as comissões e voltar a ser votado na Câmara dos Deputados onde já foi aprovado em 2006!!! Isso evitaria, dizque, se rejeitado, que um novo projeto com o mesmo conteúdo só pudesse ser apresentado em 2015. A senadora alega que o número do projeto foi demonizado por religiosos. Se isso foi dito de forma figurada, um trocadilho, a estratégia se resume a maquiar – permitam-se também o chiste – o tal projeto pra que ele passe despercebido e vaselinado (antigo isso!) pelas frestas do poder. Se há algo de presumidamente sério nessa afirmação, o que eu me recuso a aceitar vivendo numa sociedade tecnicista e materialista como a nossa, vamos combinar: que qualquer coacervato percebe a manipulação política como tantas outras que têm sido feitas nesses anos todos em que o assunto é discutido.
Vamos patinar no molho béarnaise. Que mal pode haver no número 122?! Segundo a numerologia, os números 1 e 2 – princípios universais – estão entre aqueles que representam estágios pelos quais conceitos devem passar antes de se tornar realidade. 1 é o primeiro dos números, o início, único e absoluto. Está ligado à energia criativa, originalidade, poder, masculinidade e objetividade. O 2 é a dualidade, a polaridade, a necessidade de ser complementado, o convívio em harmonia com os demais. Logo, 122 representaria o início de um novo estado de coisas, ímpar, integral – e íntegro – onde os opostos se complementariam na busca da unidade plena e justa. Isso não valeria só para os homossexuais, não, mas igualmente para todo e qualquer marginalizado, incluindo heterossexuais que só querem viver o curso natural dos seus princípios.
Dia desses um amigo comentava: “Eu não gostaria de ser gay. Seria só mais um problema na minha vida.”, disse temendo (mais uma) discriminação. Ele não é o único. Quantos pais não rejeitam os filhos e filhas temendo o julgamento social? Quantos jovens não se violentam – vivendo seus prazeres e amores clandestina e perigosamente – e reprimem enveredando pela psicose e depressão, causas de tantos isolamentos, desatinos e suicídios, porque crêem não atender as expectativas de Deus, dos pais, do mundo, de si mesmos; porque não entendem como podem ser aquilo que, dizem, não devem ser e olha que não foi nenhum vídeo que os incitou a isso, mas a própria natureza.
Jesus não condenou a mulher adúltera, comeu na casa de um coletor de impostos, pediu água a uma samaritana, curou o servo de um funcionário romano. Sempre fiel aos seus valores, nunca conivente com a iniqüidade, sempre justo, íntegro e, acima de tudo, amoroso. E como o anjo perguntou a Francisco de Assis: “Quem é maior? O amo, ou o servo?”, ao que respondeu o jovem aspirante a cavaleiro “O amo, Senhor!”. “Então.”, redargüiu o anjo, “Por que queres servir ao servo?”.

Em tempo. O uso de figuras de santos durante a parada gay de São Paulo foi sim um descompasso. Impossível não crer numa retaliação, ou deboche, como chamou o bispo da cidade, quando se utilizam imagens que na consciência católica têm significado sagrado. Foi uma ofensa ao caráter dogmático dessas figuras. Respeito acima de tudo, em todos os momentos, sobretudo num em que conseguimos tão pouco e temos tanto a perder.

HUDSON ANDRADE
27 de junho de 2011 AD
17h07

sexta-feira, junho 03, 2011

PÉS DE BARRO, SOL NOS CABELOS

Numa semana miraculosamente de folga fiz o que, como ator, faço para me divertir: fui ao teatro. Assisti Aldeotas – Lugar de Memórias e Paixão Fosca e sobre eles agora discorro um pouco.


Aldeotas – Lugar de Memórias é o espetáculo que marca o retorno à cena do Grupo Gruta de Teatro e aos palcos dos atores Adriano Barroso e Aílson Braga. Aldeotas vai beber nas lembranças: o amizade de Levi (Barroso) por Elias (Braga), as delícias da infância, o prazer da poesia, o aprendizado das escolhas feitas – algumas dolorosas. O texto do ator e dramaturgo Gero Camilo é extremamente rico – de imagens, de sensações, de emoções – e tem na sua bela escrita e singeleza de uma broa de milho que abre as portas do reino no centro da Terra onde meninos com olhos de diamante cantam, dançam e silenciam num só tempo.
A dramaturgia de Henrique da Paz, decididamente um dos melhores diretores do Pará minimaliza cenários e adereços para privilegiar a interpretação, enquanto a luz de Sônia Lopes cria apontamentos cênicos e acentua as emoções dos personagens. O resultado é que está nas mãos de Adriano e Aílson o prender a platéia pelos quase 90 minutos de espetáculo, voando em cajueiros, mergulhando em cacimbas, saltando de abismos, descobrindo o amor e a sexualidade; dramas contemporâneos que devoram sonhos e lugares de conforto onde a falta de coragem fala mais que o afeto – que não é pouco, só é criança.
E esse dizer incomoda. Soa professoral, quase discursivo. Talvez opção do diretor, talvez para contrapor os momentos em que ele rasga a alma e grita e chora, abraça e beija, para retornar a uma fala rebuscada de Rs e Ss. Assim também o corpo, que não é da cena, mas cotidiano. Presente, mas não inteiro. Seguro, mas não proposto. Pés de barro nesse colosso cuja cabeça está adornada de ouro.


Paixão Fosca é para quem gosta de folhetins. A mocinha transgressora aprisionada em sua torre, o cavalheiro honrado que é amante e protetor, um médico misterioso (Marinaldo Silva) e seu comandante, (Harles Oliveira), uma mulher dúbia – leviana e dissimulada, ou fervorosamente apaixonada na sua solidão? A doença como arma de chantagem, ou molde torto para uma alma iluminada?
A partir do texto Fosca de Iginio Ugo Tarchetti o ator, diretor e dramaturgo Guál Didimo apresenta Giorgio (Rafael Feitosa), cuja paixão se movimenta lenta e tropegamente da doce Clara (Paula Diocesano) para a sofrida Fosca (Rosilene Cordeiro .Brilhante), uma mulher de personalidade marcante que assusta e encanta, cuja resistência está na espera de um grande amor que coroe a sua vida.
Com uma cenografia simples e de múltiplas possibilidade, brilham os figurinos excepcionais de Ézia Neves (responsável por ambos) e a luz de Sônia Lopes, não à toa, uma das iluminadoras mais requisitadas pelos grupos de Belém, pela certeza de um trabalho participativo e entregue que começa nos ensaios, seguindo com o grupo, propondo, construindo, até o resultado sempre competente e belo. Na sessão que eu assisti havia falhas de operação que prejudicaram algumas cenas, assim como o uso indevido da luz por alguns atores, que insistiam em falar e andar nas sombras.
Paixão Fosca é um espetáculo classudo, à italiana, naturalista, romântico, desses que pedem vermelhos e dourados e trilhas sonoras clássicas. Nenhum demérito nisso. Como encenador eu tomaria outras decisões: planos de ação diferenciados, menos ou nenhuma saída de cena dos atores, excetuando talvez Fosca, cuja ausência física não apaga o seu rastro e sua presença é marcante mesmo antes que a vejamos pela primeira vez.
Ao contrário do espetáculo do Gruta onde não há onde e com o que se camuflar, os recursos disponibilizados por Dídimo deixam alguns intérpretes bem acomodados esquecendo de fincar seus pés na rocha sólida do seu trabalho como ator.
Há que se aureolar frontes, mas sem desmerecer com o que se pisa.

SERVIÇO
Aldeotas – Lugar de Memórias todas as quartas de junho no Teatro Cuíra
21 horas.
Ingressos: R$ 20,00 (vinte reais) na bilheteria.

Enquanto Paixão Fosca não volta aos palcos, leia mais sobre o espetáculo em http://www.paixaofosca.com.br/.

HUDSON ANDRADE
03 de junho de 2011 AD
10h37