terça-feira, outubro 19, 2010

ALÉM DO HORIZONTE DEVE TER


O burburinho que se formou entre os adeptos da Doutrina Espírita e curiosos foi grande. Vem aí filme Nosso Lar! Umas das mais conhecidas e comentadas obras psicografadas por Chico Xavier iria para as telas dos cinemas depois do sucesso da cinebiografia do médium mineiro e com vários programas de TV de cunho espiritualista. O diz-que-me-diz-que foi grande. Fotos, sites, notas, traileres eram divulgados pela internet. Cartazes eram afixados nos Centros (pelo menos no meu!). Tudo empolgava e, claro, dava alguma apreensão. 03 de setembro de 2010 virou uma espécie de Dia D para o Espiritismo brasileiro.
Não, não vou comentar e-mails dizendo de atendimentos espirituais durante as sessões de exibição do filme. Qualquer mínimo bom senso se opõe a isso!
Assisti Nosso Lar dia 05 de setembro e novamente no dia 08 (acho!). a cena inicial, André Luiz (Renato Pietro) diante dos muros fechados da cidade espiritual, o céu azul cortado por um íbis, a música emocionante de Philip Glass, senti um aperto no peito. Então descemos ao Umbral (uma espécie de purgatório?! Como assim?) e o filme entra num ritmo tal e único que não se altera até o seu final. Sem conflitos, sem falha trágica. André Luiz é só alguém confuso se aclimatando com certa facilidade a uma nova realidade. Todos os demais personagens são escadas para a plenificação do médico sanitarista falecido no Rio de Janeiro, onde exercia a profissão, no início do século XX. A personagem Eloísa (Rosanne Mulholland), sobrinha de Lísias (Fernando Alves Pinto), que deveria ser o contraponto de André não passa de uma garotinha mimada e chata em quem uns bons cascudos resolveriam as tolices.
Pietro não é capaz de dar ânima ao personagem. Sua interpretação é rasa e burocrática, um certo jeito empolado de falar, uma falta de carisma.
Bons atores no elenco como o já citado Fernando Alves Pinto, Othon Bastos (o Governador da colônia), Ana Rosa (Laura, mãe de Lísias), Werner Schünemamm (Emmanuel), Paulo Goulart (ministro Genésio), entre outros, talvez por conta da direção, mantiveram-se didáticos, monocórdios e unidimensionais.
O roteiro do próprio Assis, que até consegue sintetizar bem uma obra tão vasta e detalhista quanto Nosso Lar, não consegue centrar em André Luiz e não dá a real dimensão de um personagem confrontado com suas crenças e verdades; não dá a outros temas como reencarnação, vida após a morte, mediunidade, colônias em planos extra-físicos da existência, qualquer aprofundamento além de explicações acadêmicas tais verbetes de enciclopédia.
Os efeitos realmente incomuns em produções brasileiras são tecnicamente bons, mas não podem existir por si só. Temos vários exemplos de filmes cujo visual e excelência técnica não conseguem esconder os despropósitos, ou incompetências de um roteiro mal escrito, e/ou mal dirigido.

Se você, espírita (kardecista é o censo) quiser tornar o filme de Wagner de Assis na pedra filosofal do Doutrina Espírita no Brasil, vá em frente. Ver minha mãe, que não é espírita, dar conselhos baseada em questões que viu no filme mostra que enquanto divulgador de uma mensagem a produção cumpriu o seu papel – lembrando apenas que mensagem sem estudo, reflexão e aprofundamento é meramente máxima de almanaque. Devidamente utilizado, embasado e discutido, pode ser um excelente ponto de reflexão em nossas Casas e mesmo fora dos círculos espiritualistas. Para os não espiritistas o filme é mais uma obra de ficção com pretensões de realidade. Enquanto obra de arte é fraco, inconsistente e sem brilho e só se mantêm em cartaz pela necessidade de ver que esse nosso mundo não é o único e nem o melhor. Nossos anseios de superação e imortalidade nos atraem para esses personagens, seja André Luiz, o Superman, o coronel Nascimento, ou a mocinha lacrimejante da novela das seis.
Que as próximas produções nesse filão observem cuidadosamente o seu trabalho buscando universalizar a mensagem sem moralidades maniqueístas através de um apurado e tecnicamente correto veículo, única garantia de imortalidade de uma obra de arte.

Hudson Andrade
19 de outubro de 2010 AD
16h31

segunda-feira, outubro 18, 2010

JÁ TENS ÁGUA DEMAIS




Num mundo de homens o feminino se afoga em flores, fronhas, promessas...
Todos os dias tantas mulheres se calam feridas naquilo que lhes é tão caro: sua dignidade.
Texto original escrito por Hudson Andrade com referências a Hamlet, de William Shakespeare e Que Será, bolero de Marino Pinto e Mário Rossi, apresentado durante o Curta a Cena III, nA Casa da Atriz, nos dias 15 a 17 de outubro de 2010.


Uma desgraça sempre vem nos calcanhares da outra, tão depressa se sucede uma à outra.
Ofélia se afogou.
Afogou-se?...

Acordava todos os dias às quatro e meia da manhã, acendia a vela que (ele) insistia em apagar debochando da sua crença em Deus e nos homens. Fazia café. Lavava um tanque de roupas cantando pra dentro uns sambinhas antigos e uns boleros desses de chorar. Gostava de dançar bolero. Dançara muito quando era mais jovem e saia (com ele) pro clube do bairro de onde só voltavam bem depois da hora marcada pelo pai. Afinal (ele) estava se divertindo. Valia a pena o puxão de orelha. Gostava de teatro também. Vira só uma vez, não entendera muito, mas achara lindo e até decorara umas frases inteiras que o filho mais velho copiara de um livro da biblioteca.
Casara por causa de barriga, ficara por causa de barriga, voltara por causa de barriga e a cada vez pensara que desta vez seria diferente. (Ele) dizia.
Ouviu passos dentro de casa. Estremeceu. Entrando ou saindo? Olhou o tanque cheio. Iria se atrasar de novo pro serviço. Fazer o quê? Ainda tinha que passar o vestido de uma amiga (dele) que viera manchado de cerveja e levar os meninos no colégio. Outros passos. Tampas de panela. A porta da geladeira velha batida com força. Abaixou-se pra pegar a bacia e sentiu uma pontada no lado esquerdo. Levantou a blusa. A mancha ainda iria demorar a sumir. Sempre demorava demais. Como gesso, que acabava se desfazendo no tanque de lavar roupa.
Mais passos. Mais perto. Prendeu a respiração. Fechou os olhos. Num segundo estava correndo, os pés descalços subindo a escadinha da caixa d´agua do prédio no fim da rua. Parada diante da água morninha se viu novamente no teatro chorando sem saber por quê.

Inclinado nas margens de um arroio, levanta-se um salgueiro que reflete as prateadas folhas na corrente cristalina. Para lá se dirigiu, adornada com estranhas grinaldas de botões de ouro, urtigas, margaridas e com aquelas largas flores púrpuras às quais nossos licenciosos pastores dão um nome grosseiro, que, porém, nossas castas donzelas chamam de dedos de defunto. Ali trepou pelas ramagens pendentes para colher sua coroa silvestre, quando um traiçoeiro ramo se desprendeu e, junto com seus agrestes troféus, foi cair no soluçante arroio. Suas roupas, a princípio, se espalharam e a sustentaram durante alguns instantes, como se ela fosse uma sereia. Enquanto isso cantava estrofes de antigas árias, como se estivesse inconsciente da própria desgraça, “Que será da minha vida sem o teu amor?... Mas aquilo não poderia durar muito e os vestidos embebidos tornaram-se mais pesados e arrastaram a desgraçada para uma morte lamacenta, em meio de seus melodiosos cantos. “Eu errei, mas se me ouvires vais me dar razão...”
Afogou-se! Afogou-se!
Já tens água demais, pobre Ofélia! Eis porque contenho minhas lágrimas. Ainda assim, é uma necessidade humana: nossa natureza as reclama, embora a vergonha não cesse de protestar. Quando este pranto cessar, tudo o que em mim houver de feminino terá acabado.

Hamlet, Ato 4º, cena VII (falas da rainha Gertrudes e Laertes), W. Shakespeare.
Tradução: Pietro Nassett
Editora Martin Claret, São Paulo, 2001.
Texto original de Hudson Andrade* com referências a canção “Que Será” de Marino Pinto e Mário Rossi.


(*) 02 de outubro de 2010 AD 10h53.

CRÉDITO DA IMAGEM: http://www.stickel.com.br/atc/uploads/agua.jpg

sábado, outubro 16, 2010

EU 28



Para ler ao som de Poema, do Cazuza: “Eu procurei no escuro alguém com o seu carinho e lembrei de um tempo...”


Eu tinha uns 8 anos, acho. Como meu pai tinha ido embora, minha mãe precisou trabalhar e eu ficava em casa com o meu irmão mais novo.
À tarde eu sentava na janela da frente da casa e ficava encostado contra a grade de ferro espiando o movimento da rua, os moleques correndo, a chuva que caía e evaporava da calçada provocando aquele vapor sufocante e aquele cheiro de coisa molhada: terra, grama, bom de sentir; asfalto, reboco, coisa estranha. De vez em quando meu irmão me olhava perguntando com os olhos se já estava na hora do pão com suco de pozinho. Não. Ainda não, eu respondia virando o rosto pra rua. Eu bem que queria, mas devia esperar mais um pouco, até o sol ir ficando mais vermelho e antes das cigarras começarem a cantar. Meu irmão brincava com um cachorro de plástico que tinha perdido o rabo. Dia desses eu achei um guarda-chuva velho e usando o cabo substituí a cauda perdida. Meu irmão achou engraçado. Realmente não ficou lá muito diferente. Ele levantou os olhos de novo. Não. Ainda não.
Quando eu via minha mãe chegando eu corria pra buscar a chave que ficava num lugar secreto e tirava a tranca. Assim que ela pisava na soleira eu abria a porta. Ela entrava com um oi meus filhos e passava direto pra cozinha. Depois do jantar queria ver nossos cadernos e nos mandava pra cama. Meu irmão dizia que seu cachorro rabo de guarda-chuva estava chamando por ela, mas minha mãe respondia um agora não, meu filho entre os pratos e talheres e eu o pegava e levava pra escovar os dentes e mudar de roupa. Até hoje é assim! Teu almoço tá na mesa, tem toalha limpa em cima da tua cama, essas calças estão sujas? E quando eu fico olhando pra ela, apenas responde agora não, meu filho.
Já de pijama tomávamos a benção e ela nos mandava dormir. Às vezes eu não ia e ficava olhando pra ela e quando perguntava que foi eu sentava no chão, colocava a cabeça no seu colo e ela fazia um cafunezinho que logo parava e quando eu olhava, ela estava dormindo. Eu levantava devagar e desligava o televisor, mas minha mãe resmungava deixa que eu tô vendo a novela. Vai dormir. Eu sempre ia.
Um dia minha mãe chegou e antes de ir pra cozinha me entregou um pacote. Abre. Vê se gosta, ela disse. Esse é pro teu irmão, pra vocês não brigarem. Os pacotes eram idênticos. O conteúdo também: um caminhãozinho de plástico de um palmo mais, ou menos. Na carroceria, três boizinhos desses de plástico fino e oco. O presente em si não tinha a menor importância, mas quando ela o entregou disse lembrei de você. Virou de costas e foi providenciar o jantar. Aquele caminhãozinho e seus bois viraram o meu brinquedo favorito e eu o levava aonde fosse. Um dia ele se perdeu. Como quase tudo na vida. Isso também não tinha importância porque pra mim ficou muito mais forte aquele lembrei de você dito tão poucas vezes.
Hoje em dia quando minha mãe vem em casa (e é bem pouco) e ela que desliga o televisor e me tocando o braço diz pra eu ir pra cama que eu tô cansado e amanhã tem trabalho e que ela fica mais um dia pra poder preparar aquela carne que eu gosto tanto e se está tudo trancado, se eu paguei o telefone e pra eu não acender a luz do quarto nem fazer barulho que os netinhos dela tão dormindo com o pai.
Vai dormir. Eu sempre vou.

HUDSON ANDRADE
16 de outubro de 2010 AD
10h22