segunda-feira, setembro 13, 2010

EU 27



“Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim”
(Pedaço de mim. Chico Buarque)


Meu peito guarda um coração. Um só. Circulatório. Átrios, ventrículos, encharcados de sangue arterial que alimenta de oxigênio as células do meu corpo inteiro.
Meu peito guarda um só coração, sede das minhas emoções, meio-guia das minhas decisões, sobretudo as mais difíceis; véu nos momentos em que eu devo ver mais claramente. Enorme pra tanta gente, mas ínfimo pra tanto amor.
Dia desses perguntei a ele, meu coração: “Tu me amas?”, mas ele fez ouvidos de mercador. Por toda a semana insisti entre rogativas, exigências e questionamentos, alguns dissimulados. Nada. “Tu me amas?”. Latidos de cães e motores de carros.
Noutra noite, ensurdecido daquele silêncio eu comprimi o indicador e o médio da mão esquerda contra o peito e fui devagarzinho abrindo caminho. Enfiei então o anelar, retirei tudo e juntando a ponta de todos os dedos fui buscar com a mão aquele rebelde. “Quando eras mais moço”, eu ia dizendo, “ias aonde desejavas, mas agora...”, falei, já sentindo sua musculatura rígida pulsando acelerada – teria medo? –, “...outro é o que te cinge e te leva aonde não queiras.”, e trazendo-o para fora, afastei retratos e coisinhas e o coloquei sobre o criado-mudo, ajoelhando-me em frente e, olhos fixos, tornei a perguntar: “Tu me amas?”
Meu coração tremeu todo, tentando dizer algo. Um lado seu dizia “sim”. O outro lado também. Um era o lado do nascimento, da manutenção, da necessidade, do direito. Disciplina e autoridade. O outro era o lado do encontro, da companhia, da necessidade, do direito. Descoberta e respeito. Havia no meu coração um jogo intrincado de forças. Um lado não poderia ser maior que o outro. Um lado não poderia assumir mais espaço, anular, subtrair, desejar-me maios que o outro e mesmo sendo meu aquele coração eu não tinha mais direito sobre ele (?!). E por não se reconhecerem, cada lado respondia do lugar que lhe era próprio, com sinceridade, mas seu burburinho assim, misturado, confundia minha cabeça e eu nada ouvia onde, na verdade, havia acalanto, conforto e conselhos. E por mais que eu pedisse nenhum dos lados me escutava. Pela janela, latidos de cães e motores de carros.
Corri pra noite e tão logo tinha posto os pés no batente da janela ouvi “Amo!”. Claro, claro. E numa inflexão que eu jamais ouvira antes: “Amamos!”
A noite, lá fora, com seus cães e carros não me interessa mais. Dentro do meu peito meu coração dorme comigo a sono solto.

HUDSON ANDRADE
13 de setembro de 2010.
10h30

(*) Referência ao Evangelho de João 21, 17 – 18.


Crédito da imagem: http://flyingtime28.files.wordpress.com/2010/05/coracao_blog1.jpg