segunda-feira, agosto 23, 2010

ALMA FEITA DE ÁGUA



“Foi meu amor que me disse assim...”
(Adaptado da canção Alecrim, de Rodolfo C. Ortiz)


Aqui no norte do Brasil é comum nossa vida ser regida pela água. A água da chuva da tarde que agora só no imaginário determina nossos compromissos – particularmente eu acho lindo que tenha havido um tempo em que os horários dos nossos compromissos fossem pautados por outra coisa além das nossas “necessidades”! – e sobretudo as marés, as águas grandes, que mobilizam e imobilizam comunidades inteiras, ensimesmando gentes que só podem esperar, ganhando fama inglória e injusta de preguiçosos. Tem uma água dentro também, que inunda, mas disso eu falo depois.
A água também governa Eutanázio e o Princípio do Mundo, espetáculo da Usina Contemporânea de Teatro em cartaz no Instituto de Artes do Pará. Inspirado no romance Chove nos campos de Cachoeira, do paraense Dalcídio Jurandir (http://www.dalcidiojurandir.com.br) (cuja escrita ainda me é desconhecida, mas do que eu já percebi, tem o jeito, o ritmo, os termos que eu gosto de usar e ler.), o espetáculo fala de Eutanázio que, doente, relembra a vida enquanto espera a morte. Sua história é contada por três mulheres: a desencantada Raquel (Valéria Andrade. Maravilhosa!), Irene (Vandiléia Foro), que na rudeza de modos esconde a menina que – como nós – só quer ser amada e ser feliz, e Felícia, empobrecida, abandonada, violentada e solitária como os campos do Marajó e o peito da gente. Paralelamente temos a vida de Alfredo, irmão mais novo de Eutanázio que deseja estudar em Belém. O ator Milton Aires mistura sua própria vida a de Alfredo criando um pequeno Hamlet vivendo num reino podre que afoga repetidamente seus sonhos. Com dramaturgia do paraense Paulo Faria, que atualmente vive e trabalha em São Paulo, Eutanázio e o Princípio do Mundo começou doze anos atrás, da vontade de encenar Jurandir, até a premiação pela FUNARTE através do Prêmio Myriam Muniz 2008, liberação de recursos e sua estréia nesse 21 de agosto de 2010.
O maior desafio, segundo o diretor Alberto Silva Neto, foi extrair o que dizer e como dizer da riquíssima obra do Dalcídio e seu primeiro livro publicado originalmente m 1941 e que também rendeu Solo de Marajó (VER A Menina. O moço. Ritinha. A ama de leite. http://curiadarte.blogspot.com/2010/03/menina-o-moco-ritinha-ama-de-leite.html), o excelente solo de Cláudio Barros que teve uma infelizmente curta temporada em Belém. Depois foi deixar-se encher, encher como os campos marajoaras e quando a água baixou, por mãos à obra. Paciência e dedicação de quem vive nestas bandas e faz teatro num Estado e num país alheio a formação cultural do seu povo!
A mais de hora de espetáculo vai exigir do público não acostumado a teatro alguma calma. Tudo é lento: movimentos, falas, olhares, respiração; então a vida daquelas quatro pessoas te joga um laço e se pegar – porque também pode não pegar! – é mergulhar junto e remexer naquelas águas de dentro que eu falei no começo e o coração se enche de saudades e quereres e solidão e lembranças boas e tudo isso é bom e também machuca e também comove e também faz crie uma casca onde a gente não mexe, mas se não mexer não vê o fundo.
Eutanázio e o Princípio do Mundo exige atenção: o elemento cênico que destoa, o ângulo do qual se quer ver essa história, a voz afinada da Nani, os solos brechtianos de Milton Aires, o tempo para primeiro conhecer aquelas criaturas para só então se envolver com elas, tomar partido, quem sabe, e até mesmo assistir, aplaudir, retirar-se que se este não se pretende um espetáculo arrogante e intelectualizado – no sentido pávulo do termo – também não é folhetim gratuito e simplório.
Eutanázio e o Princípio do Mundo é como os campos alagados desse norte do país onde o meu eu-búfalo pasta tranqüilo e pacífico inconsciente de sua força. Ou exatamente pelo saber dela.

HUDSON ANDRADE
23 de agosto de 2010 AD
9h34

SERVIÇO
Eutanázio e o Princípio do Mundo
Inspirado no romance Chove nos Campos de Cachoeira de Dalcídio Jurandir, com dramaturgia de Paulo Faria.
Direção: Alberto Silva Neto
Elenco: Milton Aires, Nani Tavares, Valéria Andrade e Vandiléia Foro.
Cenografia e figurinos: Nando Lima
Iluminação: Sônia lopes
Operação de luz: Frank Costa
Desenho de som: Cláudio Melo (com registro de sons do Marajó de Léo Bitar)
Operação de som: Lucas Cunha

De 21 de agosto a 26 de setembro
IAP – Instituto de Artes do Pará (Nazaré, ao lado da Basílica)
Sábados e domingo – 20 horas
Entrada franca.

EU 26



Eu sou. Eu fui. Eu quero. Eu posso. Eu faço. Eu amo. Eu odeio. Eu luto. Eu pretendo. Eu.
Eu que esperei por quase quarenta anos e por pouco mais de dois meses. Eu que faço planos e teço idéias. Eu que grito e silencio e me debato e choro e corro às gargalhadas cheias de abraços e beijos que muitas vezes morrem no meio do caminho.
Eu que tenho o colo materno, o peito do namorado, a mão aberta dos amigos, os ouvidos complacentes.
Eu que tenho o ódio dos infelizes, a rejeição dos mal-amados, o soco dos violentos, a intolerância.
Eu que mal dou conta dos meus limites e luto pra manter minhas vitórias.
Eu, de quem exigem que eu seja o que não sou.
Eu que dei o que de mim eu posso e fiz bem a alguém e fiz e não me oponho a dizê-lo. E devo dizê-lo porque também é falsa modéstia não olhar aquilo que de nós já é fruto e multiplica.
Eu, eu, eu, meu Deus. Eu que sou Tua cria e Teu sentido. Eu que estou no meio do Teu Santo Nome. Eu que de Ti tanto recebo. Eu que oro e tanto peço e agradeço e peço muito mais do que agradeço porque assim é que é o eu.
Eu que fiquei sozinho tanto tempo e me acostumei a ser sozinho sem querer sê-lo e apavorado disso com um temor de morte e sendo injusto só em dizê-lo que em verdade nunca se está sozinho, mas tantas vezes parece que sim e não há tristeza maior no mundo!
Eu que por ser eu por tanto tempo ainda erro ao tentar equilibrar o vós e o nós.
Eu cujo eu só tem razão no tu.
Eu que ao teu lado projeto e durmo à solta.
Eu que de ti careço e a ti ofereço.
Eu que te amo. Muito!!!
Eu: pronome demonstrativo, segunda pessoa, infinito, aditivo. Teu objeto direto. Teu complemento nominal.

HUDSON ANDRADE
11 de agosto de 2010 AD
9h07