segunda-feira, junho 14, 2010

EU 24



“Então me abraça forte e diz mais uma vez que já estamos...”
(Legião Urbana)


Era uma solidão escura e pegajosa e cheirando a detergente.
Eu caminhava entre as cadeiras ocupadas – não todas, algumas – por bonecos. Fantoches de pano recheados de palha seca. Nos rostos uma expressão construída de felicidade.
Eu sentia que havia mais alguém ali. Alguns. Sabia pelos gemidos e por um movimento furtivo. E sempre que eu me virava na direção do movimento acordava sobressaltado.
Dentro do peito uma sensação de vazio grande, feito buraco cavado sem cuidado. Doía o corpo todo, a respiração curta.
“Deus!”, eu pensava. “O que isso quer dizer?”. Há quase dois meses eu tinha o mesmo sonho. Começava cedo, acordado. A sensação de buraco no peito dava uma pontada por qualquer coisa: um casal de amigos queridos convidava pra uma visita, um amigo chegava de viagem, a mocinha da novela finalmente era beijada, “não toque essa música que eu não posso ouvir...” cantava o Odair José. Odair José?! Mesmo?! Daí pra pior. O dia se arrastava, eu tinha muita sede, a boca amargava sem que eu comesse nada num fastio de dar pena. Irritado, distante, sonolento, vazio, vazio. E conforme a noite chegava ia me dando um medo, uma coisa ruim, e era dormir, sonhava.
“Era uma solidão escura e pegajosa e cheirando a detergente...”
Então um dia eu olhei na direção do que se mexia e não acordei. Eu tinha passado pelas cadeiras e visto os fantoches, mas voltara rápido a tempo de vê-lo, não um boneco, gente, homem como eu. Voltei e olhei pra ele e ele me olhou e eu, devagar, me aproximei e perguntei se podia sentar do seu lado. “Claro!”. Ninguém falava nada e eu só ouvia os gemidos. Eu e ele olhávamos para frente e não falávamos num receio de visagem em noite sem lua. Foi quando eu me virei e precisava ter certeza e levando a mão esquerda toquei seu peito. Era quente e batia acelerado e ele me olhava tão fundo nos olhos que parecia forçar uma porta trancada aqui dentro de ferrolhos tão antigos e tão enferrujados que o trinco abriu e as folhas se escancararam par em par num som apavorante que doeu a cabeça e minha mão aquecida espalhava aquele calor pelo braço e peito, cabeça, tronco, pernas e doía e a vista escurecia e o ar não passava na garganta e eu senti que ia desmaiar e lutava contra isso porque me parecia que eu passaria do sonho à morte e eu comecei a chorar alto e pedir socorro e fui desfalecendo e então ouvi: “Abra os olhos, respira, fica conosco!”.
Abri os olhos e me vi num círculo onde todo mundo me olhava com carinho. “Ainda queres isso aí dentro?” um outro homem perguntava, a destra no meu peito. “Não!” eu respondi. “Então tira! Deixa sair!” ele me disse. Olhei o meu peito arfante que parecia avermelhado, toquei-o de leve e olhei o meu parceiro. Parceiro?! Sim, era isso o que ele parecia agora, que me disse “Vai!” com um leve acento de cabeça. Minha mão sobre o peito foi se abrindo e entre os dedos como que uma teia e eu fui puxando aquilo e com a outra mão e puxando, mais, metros, viscoso, frio e então parei. Se eu terminasse de puxar, não arrancaria também meu coração? “Não vais morrer!”, ele disse, o segundo homem. “Eu estou aqui!” me dizia o companheiro do fundo dos seus olhos castanhos.
E foi só mais um puxão. Decidido, brusco, algo calculado.

Acordei devagar, vindo do sono pra luz do dia nascendo num suspiro de corpo largado. As costas dele contra o meu peito e um cheiro bom de vinho e pimenta.
Sorri largo e quieto pra que ele não acordasse e me deixei ficar.

HUDSON ANDRADE
14 de junho de 2010
9h31


Nota: A referência é da canção Não Toque essa Música, de Ray Douglas. Eu não tinha como saber!

quarta-feira, junho 02, 2010

COMO É QUE SE FAZ A HISTÓRIA DE UMA VONTADE*

Texto escrito para o I SEMINÁRIO DE DRAMATURGIA AMAZÔNIDA, promovido pela Escola de Teatro e Dança da UFPA, de 24 a 26 de maio de 2010. Belém, Pará, que homenageou o dramaturgo paraense Nazareno Tourinho, autor de obras como Nó de Quatro Pernas, Fogo Cruel em Lua de Mel e Severa Romana.

Quando eu era aluno da Escola de Teatro em 98 escrevi uma peça. O tema: as drogas. Pedi que a Wlad (Lima) lesse e durante uns dias eu a rondava pelos corredores: “E aí, já leste?” até que um dia ela disse “Senta aí! Teu texto é uma merda!”. E pontuou: “Não tem conflito, tem respostas demais, ninguém gosta de levar tapa na cara.”. Daí pra concluir o curso de Teoria do Teatro, também com a Wlad, eu precisava escrever um artigo sobre a minha relação com o teatro. Na primeira revisão ela torceu a cara e fez suas observações. Então ela é que ficava pelos corredores: “Já mudaste aquele texto?”
Pela primeira vez eu rasguei alguma coisa que eu tinha escrito. Recomecei do zero, por um caminho completamente diferente, e o resultado foi satisfatório. Pelo menos é o que mostra a nota!
A grande lição que eu tirei daí é que a teoria é muito importante, as citações dos grandes pensadores, mas vale muito mais o que eu quero dizer, colocar-me na escrita.
Essa passou a ser a premissa pra minha dramaturgia e escritos em geral: o que eu quero dizer, ou o que querem que eu diga. Até aí nenhum novidade!
Pra começar a escrever eu leio muito: artigos de jornais, revistas, internet, livros, teses, quadrinhos, a Bíblia; converso com pessoas, ouço música, vejo filmes. Seleciono o que eu quero e pergunto: e eu com isso? Tem um trecho de O Glorioso Auto do Nascimento do Cristo-Rei que é uma citação de Ezequiel que eu vi no Pulp Fiction do Quentin Tarantino e que pareceu perfeita pra uma fala da Maria:

O justo tem seu caminho
De iniqüidades cercado,
Mas o que ampara o fraco
É por Deus abençoado.

Proteger os oprimidos,
E os perdidos resgatar
Aos retos caminhos do Pai
A todos encaminhar.


E no mesmo texto o monólogo de Jesus é um resumo do Evangelho de Lucas e de Mateus; O Uirapuru) – premiado pela FUNARTE em 2003 – nasceu de um levantamento de trava-línguas, citações, provérbios e parlendas, que eu fiz pra um texto que o Adriano nem escreveu.

TURISTA
...eu vi!!! Eu vi!!!
Um ninho de mafagafas com seis mafagafinhos!!!
E tinha também magafaças, maçagafas, maçafinhos, mafafagos, magaçafas, maçafagos, magafinhos. Isso além dos magafafos e dos magafafinhos.


Meu próximo trabalho, Francisco, está começando de dois pontos de vista completamente diferentes: o livro de um espírita brasileiro e outro, de um grego ateu. Essa disparidade me parece bem interessante pra nortear a palavra-chave escolhida para o que eu quero dizer.
Então eu estabeleço um título. Um professor da universidade me dizia que o título é o menor resumo de uma obra e que eu não poderia tê-lo se não tivesse o trabalho pronto. Só que eu penso diferente. O título é realmente o menor resumo da obra, mas determiná-lo estabelece o que eu quero dizer e não o que eu disse, ou diria.
Sento e escrevo e de uns tempos pra cá primeiro à mão, riscando e rasgando, pra só depois digitar. Esse negócio de computador vicia e minha caligrafia estava ficando uma droga.
Escrevo a primeira e a última cena. Sabendo como começa e como termina fica fácil escolher o recheio. Isso eu trouxe do palco. O personagem entra em cena vindo de algum lugar e indo pra algum lugar. Isso é determinante para a sua ação naquela cena: motivação. Todo o seu estado emocional, psicológico e mesmo físico depende disso. O mesmo eu aplico na minha dramaturgia.
Reviso mil vezes e chega uma hora que eu tenho que parar de revisar, ou acabo escrevendo outra peça. Eu posso odiar um texto e engavetá-lo, ou queimá-lo pra que ele não fique me fazendo visagens; reescrevo cenas, corrijo coisas. O Glorioso Auto, premiado pela FUNARTE em 2004, foi relido várias vezes pra que todos os versos das suas trovas tivessem o mesmo tamanho. Eventualmente eu peço que algumas pessoas leiam meus textos e opinem e se for o caso, acato suas idéias e opiniões porque acredito que elas também queiram dizer algo.
Pensando na palestra do Sérgio de Carvalho** admito que gosto do drama, da narrativa, do conflito interpessoal. Gosto de linearidade, alguma concisão, poesia e imagens. Escrevo criando imagens. Kojiki, uma peça ainda inédita começou por causa de uma frase de Relicário, do Nando Reis: “Milhões de vasos sem nenhuma flor.” Essa imagem disparou o texto. Divirto-me tentando imaginar como será que aquele vestido vermelho, aquela rua de asfalto esburacado, aquele porão escuro vai aparecer na cabeça de quem ler meu trabalho; e eventualmente de um diretor que queira montar aquele texto, mesmo que ele negue todas as minhas indicações visuais e rubricas. Muito tempo atrás um escultor perguntou se não podia transformar meus contos em pequenas estátuas. Claro que eu topei. Nunca deu certo! Tem outra proposta de quadrinizar O Uirapuru. Falta a grana. E um conto virou um curta da Abuso Produções – Um Dia Perfeito – que pode ser acessado pelo minha página no Orkut.
Quando eu comecei o meu blog, o Cúria d´Arte (http://curiadarte.blogspot.com/) o objetivo primeiro era – e continua sendo – treinar a minha escrita. São os contos da série Eu, opiniões pessoais sobre todas as coisas em Brocardos e crítica. Assisto a um espetáculo, um filme, uma série e posto uma crítica. Quem me provocou nisso foi um amigo com quem eu ia ao cinema e quando saíamos da sessão, conversando sobre o filme, ele me achava um chato porque eu ficava falando que o filme era bom por isso, ruim por aquilo, que o roteiro tinha furo, que o figurino era bacanérrimo, que a atriz tinha inflexões de uma dobradiça enferrujada. Ele defendia ir ao cinema, desligar o cérebro e curtir a película. Eu dizia que isso era impossível e só o fato de ele dizer gostei-não gostei já era prova disso. Escrevo essas críticas sem pretensões. São críticas porque eu estabeleço um juízo de valores, opino pelo meu conhecimento e experiência (quaisquer que sejam eles!), dou sugestões. Faço isso porque não existe uma crítica em Belém e eu gostaria de saber o que se pensa sobre o que se faz aqui, sobretudo o meu próprio trabalho. Sem um retorno a nossa vaidade pode achar que está tudo bem e cristalizar num formato equivocado, ou muito bom, mas que sempre pode evoluir.
Gostaria de destacar dois momentos muito importantes da minha dramaturgia, porque refletem a confiança que outras pessoas têm no meu trabalho: o texto de No Olho da Rua, dirigido pelo Miguel Santa Brígida para a Companhia Brasileira de Cortejos, e Deus Ex Machina, minha última peça. No Olho da Rua tem dois textos, um masculino e outro feminino e foram escritos de forma bem diversa. Para as atrizes eu pedi uma música que as tivesse marcado emocionalmente e delas pincei coisas e fiz uma colagem que se encaixasse na proposta de encenação – espetáculo para a rua, a prevalência do corpo nos trabalhos do Santa Brígida, etc:

1.Jurei jamais prender-me por amor
2.Quem acreditou no amor, no sorriso e na flor
então sonhou, sonhou, e perdeu a paz, o amor, o sorriso e a flor
quem chorou, chorou, e tanto que o seu pranto já secou
pois a própria dor revelou o caminho do amor
e a tristeza acabou.
3. Como te contar que esse amor foi tanto
e no entanto... eu só sei dizer
vem, nem que seja só pra dizer adeus.
4. De repente em minha vida
estes festejos, essa emoção
tanto azul, tanta luz
é demais pro meu coração.


O masculino eu entrevistei homens os mais diversos e perguntava: O que um homem gosta? O que um homem quer? O que um homem é? Pá-pum. Sem pensar muito. Pergunta e resposta. Disso surgiu:

1 – Todo homem é...
2 – Seu!
3 – A viga da casa...
1 – Areia das dunas...
2 – Seu!
3 – A carta de despedida...
1 – O começo, o meio...
2 – e o termo...
3 – de toda vida!
2 – Meu!
1 – As monções, as ressacas.
3 – A doença, a injeção.
1 – A secura do agreste.
2 – Ipê, aroeira, jacarandá.
3 – A fechadura das portas...
1 – Os passos nas horas mortas...
2 – O pai, o avô, o irmão...
3 – Filho da puta!!!
2 – Seu!
1 – Pra toda hora.
2 – Pau!
3 – Pra toda obra.
2 – Seu!


A idéia para ambos os textos era: quem os escutar precisa se reconhecer, por isso o texto feminino é tão descaradamente copiado e colado. A criatura tinha que dizer: eu sei o que é isso (porque ela também já teve uma música preferida por causa de alguém. Quem não teve, ou tem?). Deus ex Machina é a segunda ação do projeto A Casa da Atriz, um monólogo para duas pessoas que surgiu de duas semanas de conversas com os atores Bill Aguiar e Aílson Braga, com o diretor Adriano Barroso e com a leitura de milhares de coisas tão disparatadas quanto Artaud e Cecília Meireles. A idéia é brincar com o ofício do ator e eu retomei a colagem, utilizando citações e conceitos cênicos pra criar um homem que mistura a sua vida em cena com a vida real. É importante citar o Millôr Fernandes e dizer que quando se faz uma colagem isso só pode dar certo se o autor tiver segurança do que ele quer. Não pode simplesmente ficar pegando frases e misturando. Tem que fazer sentido e tem que ter identidade própria. Sua obra O Homem do Princípio ao Fim, é, segundo ele, 80 por cento autoral. Deus ex Machina é, digamos. 60 por certo.

Se alguém me perguntar qual é minha profissão eu não titubeio: Ator. Sou apenas um homem de teatro. Sempre fui e sempre serei um homem de teatro. Flávio Rangel e Millôr Fernandes dizem isso em Liberdade, Liberdade, citando Louis Jouvet e eu os cito em Deus ex Machina. Esse é o meu ofício. Mas escrever tem uma magia toda especial, porque vai além do que eu posso fazer no palco. Uma mesma peça de teatro pode ser uma tragédia, um musical, kabuki; pode ser representada por atores, bailarinos, clowns. Essa imensidão de possibilidades é absolutamente fascinante e exige ao mesmo tempo um desprendimento humilde e respeitoso para ver uma cria sua tornada outra coisa e, quem sabe – por que não? – até melhor que o original. Não vou deixar de subir aos palcos, mas vou cada vez mais me enfiando por trás dele. Sempre vão precisar de um autor. Mesmo os que negam o texto formal jamais podem prescindir de um roteiro e a palavra vai estar ali, de algum jeito.
Termino com as palavras da Lygia Bojunga em A Troca e a Tarefa. Escrever é como ressuscitar e eu vou continuar escrevendo, se essa é a minha paz!

(*) Referência ao texto A Troca e a Tarefa, de Lygia Bojunga, sobre a vida de uma escritora.
(**) Em 24 de maio de 2010, na abertura do seminário.


HUDSON ANDRADE
25.05.2010 AD
16H17

WE ARE FAMILY


Alguns dias após alunos da faculdade de farmácia da USP trocarem ingressos de festa por agressões a homossexuais, de outros alunos da mesma instituição promoverem um beijaço de protesto, da revista Veja estampar na capa matéria sobre homossexualidade entre adolescentes (que eu não cheguei a ler, mas que um amigo militante gay disse ser pavorosa!), da lei que criminaliza a homofobia ser votada, dois programas da Rede Globo têm a homossexualidade como pauta: A Vida Alheia e Profissão Repórter. Claro que eu lamentei profundamente o ato dos alunos daquela academia; claro que o beijaço é daquele tipo de protesto que vem e passe sem conseqüências e uma parte dos que protestam o fazem por bandalha. Claro que não precisaríamos de leis contra homofobia, pedofilia, discriminação racial e violência contra a mulher se o Brasil e as famílias privilegiassem a educação e, moralmente, o respeito fosse presença nas relações humanas. Mas tudo bem. O que não se aprende pelo amor, se aprende pela dor.
A Vida Alheia faz parte da nova programação da emissora. Simpático, assim como Separação e o ótimo Globo Mar – muito além de água e peixe! – e o esteriotipado, barulhento e irritante S. O. S. Emergência: humorístico típico. No programa encabeçado por Marília Pera e Cláudia Jimenez, claramente inspirado no caso Ronaldo Fenômeno, um jogador é flagrado com um travesti num motel e parece estar se divertindo muito. Matéria de capa, o feitiço vira contra o feiticeiro e o que deveria ser um escândalo avassalador se torna mote para protestos contra a imprensa ruim e a homofobia, obrigando a revista a uma reviravolta. Cara limpa, o jogador vai à público e argumentando maioridade, responsabilidade, a consciência e boa execução de seus deveres, afirma satisfazer seus desejos sem que isso prejudique ninguém. “Todos deveriam satisfazer seus desejos”, ele afirma. Na vida real, nesse Brasil preconceituoso e machista esse rapaz nunca, jamais, em tempo algum iria declarar tais termos em cadeia nacional, sem perder a vaga, contrato e carreira. Talvez ele posasse para uma revista gay, talvez ele fosse entrevistado numa tarde dessas, mas depois exílio social e ostracismo. Com o jargão “O que eu faço também é amor” A Vida Alheia abraçou a causa gay de forma algo romântica, asséptica e rasa, como convém à Globo.
Profissão Repórter estreou no ano passado e foi gratamente mantido na grade de programação, assim como as novas temporadas de A Grande Família e Força Tarefa, além do Casseta e Planeta Urgente, o que demonstra que não é qualidade e bom gosto que norteiam essas decisões.
A proposta de Caco Barcelos é usar o dinamismo e o entusiasmo de repórteres em início de carreira para mostrar os bastidores da notícia, dividido-os em diferentes focos de um mesmo tema, entremeando com suas considerações experientes: aula de jornalismo desses programas muito bons que são muito curtos e exibidos muito tarde, muito cedo, ou todas essas coisas.
Na edição de 10 de maio, a homossexualidade entre os jovens. Conflitos, medos, anseios, grandes vitórias e esparsas alegrias. Num programa emocionante destaco o jovem que, nas sombras, fala que se pudesse escolher, não seria gay. “É sofrimento demais!” e emendou que não tinha contado aos pais e pensava jamais contaria. “Pra onde eu iria?”, ele pergunta, temendo represálias. Em outra entrevista a mãe que participa de um grupo de apoio a pais com filhos homossexuais indica seu grande dilema: “Meu filho tem excelentes qualidade, mas é gay!” (negrito nosso). É a mulher que se divide entre o amor de mãe que alguém disse precisar ser irrestrito e as expectativas que são dela e da sociedade, mas não do filho. “Amas oposto a mim. Por conseguinte chamas amor aquilo que eu não chamo”, diz o poeta Augusto dos Anjos. Se nós e os outros não nos exigíssemos tanto, esta mulher perceberia que a felicidade do filho (de todo mundo) atende protocolos íntimos, que ela ajudou a formar; que o amor entre pessoas do mesmo sexo – enquanto relacionamento afetivo – pode ser moralmente questionável, mas isso depende de com que valores tal fato é confrontado e que ele faz parte de um aprendizado mais amplo do que é amorosidade para comigo e para com o outro; e que ela pode amar o filho, sim, mas que também pode se decepcionar, entristecer, duvidar. O sofrimento vem do fato de que ela se vê preconceituosa, mas o alvo é o próprio sangue. Ok. Respire isso. Confronte seus preconceitos e lute contra eles por intoleráveis, mas um passo de cada vez e persistentemente. Sem culpa!
Mas o que me emocionou mesmo foi o jovem que aos 16 anos declara sua homossexualidade. “Não dava mais!”, ele afirmou. Criou-se entre ele e a família um abismo. O pai disse que seu comportamento era asqueroso. O irmão mais velho agrediu o namorado e a mãe, passivamente, não conseguia administrar a situação. Num desses dias de almoço de família o rapaz levou o parceiro até a porta de casa e pediu pra entrar. “Não quero ficar sem ele, mas também não posso ficar sem vocês!”. O pai, maior empecilho, permitiu que eles entrassem e desde então se iniciou uma convivência cheia de cuidados, difícil de conquistar – os pais do jovem também fazem parte daquele grupo de terapia –, mas que caminha a passos largos.
“É meu filho!”, “É minha filha!”, “... e eu o amo...”. Essas a frases mais recorrentes.
Necessário observar que devemos sim amar e amar incondicionalmente, mas é preciso estar bem consigo para estar bem com o outro. Esse processo começa conosco, por nos aceitarmos e para nos aceitarmos é preciso que nos conheçamos e para nos isso muitas vezes enfrentaremos nossos monstros internos. Identificando-os é preciso mudá-los. Para tanto é preciso arriscar, o que exige coragem de sairmos de nossas zonas de conforto e vontade de aprender. Isso pode ser muito duro, mas não é impossível e os resultados pagam juros pra vida toda, em todos os seus aspectos.

Meu amigo militante disse que o programa esqueceu todos os que levaram pedrada pra que chegássemos a esse mínimo de consciência; que as duas mulheres da reportagem não podem registrar seus filhos gêmeos como filhos biológicos e etc. ponderamos – eu e outros amigos, inclusive héteros – da importância de também veicularmos o que é positivo num mundo viciado no personalismo e no negativismo; que os fatos devem ser encarados sem romantismos, mas coerentemente e de peito aberto pra que a sociedade sinta que tais fatos existem e que para elem de fatos há pessoas. Gado a gente marca, mas com gente é diferente, não é assim que canta o Zé Ramalho? Não cabemos num rótulo. Temos necessidade de acolhimento, afeto, compreensão. Devemos ser íntegros.
Independente de ser homossexual defendo o programa do Barcelos não com um libelo à homossexualidade, mas por nos instigar sobre o assunto; não tomar partido, mas criar consciência; não se violentar e engolir o que parece insólito, mas desenvolver a tolerância e o respeito. Não amas porque se deve amar, mas amar porque amor é da vida e sem amor, nós, eles, todos, não temos sentido enquanto humanos, não temos paz e, simplesmente, desaparecemos.


HUDSON ANDRADE
14.05.2010
12h00