segunda-feira, abril 19, 2010

NASCE UM CAPIM



Chico Xavier (Brasil, 2010), o filme dirigido por Daniel Filho a partir do roteiro de Marcel Souto Maior tornou-se um recordista de bilheteria do cinema nacional em sua primeira semana de exibição. Isso não é difícil de entender num país sem religião predominante, ou oficial, mas extremamente religioso e, portanto, espiritualizado; num país que adora reis, rainhas e mitos – e Chico Xavier é um mito desde antes de sua morte; para um povo que adora uma polêmica – e o fenômeno mediúnico dá pano pra manga nesse quesito. Num Brasil que aprecia uma produção artística de qualidade e ela existe, apesar de tanta miséria.
Chico Xavier, o médium, protagonizou situações dignas dos grandes romances: uma existência humilde e sacrificada dedicada aos outros; uma abnegação e paciência imensos diante dos ataques, bajulações, idolatrias e necessidades alheias, uma vida espartana, assexuada, rigidamente disciplinada por um tutor tão amoroso quanto inflexível, Emmanuel, seu guia espiritual. Uma missão que lhe custou a paz, a saúde e por fim, a própria vida.
Chico Xavier, o romance. As Vidas de Chico Xavier* escrito pelo jornalista Marcel Souto Maior que apresentou (ou reapresentou) ao povo brasileiro um homem, um mito, numa linguagem clara e objetiva, levando o mineiro de Pedro Leopoldo, nascido Francisco Cândido Xavier para além dos círculos espíritas de forma algo massificada. Uma abrangência que eu não identifiquei quando da passagem de Souto Maior por Belém, em novembro de 2009, lançando seu trabalho na Feira do Livro Espírita e palestrando pra um reduzido número de pessoas nos salões da União Espírita Paraense. Agora, por conta do filme, uma enxurrada de publicações estampa novamente o nome do médium mais famoso do Brasil, exigindo cuidado e atenção para bem separar o joio do trigo. O Congresso Espírita Brasileiro, na capital federal, tem como tema Chico Xavier, que completaria 100 anos no último dia 02 de abril. O mineirim de fala mansa e espontânea volta à cena por mãos humanas e encarnadas, já que uma tão esperada mensagem do além ainda não veio. E por que viria?
Chico Xavier, o filme, tem uma direção contida. Nada de ousadias. Mostra o médium da infância à fase adulta através de lembranças a partir da participação de Xavier no então polêmico e famoso programa Pinga-fogo. A edição é excelente ao colocar situações-chave na história desse homem, mas essa excessiva biografia acaba por arrastar-se em mais da metade do filme, me deixando com uma sensação de o que poderia ainda caber no pouco tempo que restava de exibição. O filme começa se justificando quanto aos recortes feitos e o que realmente importava saber. Talvez desnecessário. Vimos o que deveríamos ver, pontualmente, mas a falta de curvas dramáticas deixam aqueles familiarizados com os fatos com uma sensação de eu-já-sei-isso! e os outros com aquela vontade de algo mais. Não que Daniel Filho precisasse convencer alguém de qualquer coisa. Que bom que não foi esse o caminho. Apenas precisava ter se arriscado mais e havia espaço para isso antes de cair no piegas e no apelo emocional barata. Tanto verdade que a cena em que Chico narra sua aventura no vôo que o levou a São Paulo é muito mais divertida no original apresentado nos créditos que a sua própria dramatização. As soluções cênicas do filme para as questões espirituais são ótimas. Ninguém vê, ou ouve os espíritos e isso nos coloca em igualdade com os que duvidavam de Chico e quando eles, os espíritos, aparecem – a mão do médium, D. Maria João de Deus (Letícia Sabatella), não há transparências, fumacinhas, luzes. Natural como de fato é. Exceção apenas para a primeira aparição de Emmanuel. A câmera em movimento descendente e o som de asas foi um pouco demais! A trilha de Ediberto Gismonte acompanha o filme em sua velocidade de cruzeiro, sutil e um tanto melancólica.

A emoção e o grande mérito do filme está na constelação global que faz de Chico Xavier um filme de sorrisos, suspiros e lágrimas econômicas, mas sinceras. Dividem as vidas do médium Matheus Costa (infância), Ângelo Antonio (juventude) e Nelson Xavier (maturidade). Excelentes caracterizações, interpretações precisas. Segurança e tranqüilidade de quem sabe o tamanho da responsabilidade que tem nas mãos e a consciência do seu talento e capacidade. Paulo Goulart é Almir Guimarães, o apresentado do Pinga-fogo. Luís Melo, Giulia Gan, Giovanna Antonelli, Pedro Paulo Rangel (emocionante!), Ana Rosa, Cássio Gamos Mendes, Cássia Kiss e outros tantos, em maiores, ou menores apresentações, dão um brilho todo especial ao filme. Destaque ainda para Cristiane Torloni e Tony Ramos, que paralela a história de vida de Chico narram o incidente histórico em que a mediunidade foi aceita por um juiz para, oficialmente, inocentar um réu de um crime de homicídio. Novamente aqui não há resposta se o fenômeno é real, ou não. O que importa é a credibilidade de alguém que antes de ser médium é um ser humano de valores racionalmente inquestionáveis e o bom senso dos envolvidos no caso: jurista e, principalmente, os pais dos jovens protagonistas do drama.

Para mim a seqüência mais emocionante de todo o filme é exatamente aquela em que o personagem de Tony Ramos, sem abandonar suas convicções, mas receptivo e consolado, divide com a esposa (Torloni) a leitura de uma carta psicografada por Chico. Nessa seqüência está o grande mérito do médium mineiro: o alívio às dores de quem quer que seja, o ofertar um novo horizonte, a doação sem retribuição. “Eu sou só um carteiro!”, diz o Chico. E também o grande mérito da doutrina defendida por Xavier com a bravura de um mártir: caridade, amor ao próximo, consolação.
Talvez isso tenha feito de Chico Xavier – o filme, o homem – um campeão de bilheteria: o desejo humano e justo de paz, justiça e felicidade para além de qualquer credo, qualquer classe, qualquer filosofia.

(*) As Vidas de Chico Xavier. Marcel Souto Maior, 2ª edição ver. e ampl. – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2003.

HUDSON ANDRADE
08 de abril de 2010
16h40

sábado, abril 17, 2010

VIDA, PAIXÃO, MORTE, RESSURREIÇÃO.




“O objetivo do ator é transmitir suas idéias e sentimentos usando suas próprias emoções (...), sua experiência pessoal de vida (...), sem ocultar nada.” (Antonio Januzelli - Janô)


Vida. 53 anos de idade. Tempo cronológico. Calendário. Um quarto de século de teatro, dentro e fora dos palcos.
Paixão. Pelas filhas gêmeas, pelo marido e parceiro, por essa mesma arte que contaminou todos e fez da própria casa abrigo, ala de ensaios, auditório, teatro.
Morte. Abarcar e ao mesmo tempo esquecer toda uma bagagem pra viver algo novo. Solo, intimidade, numa troca que exigiu confiança, respeito, transpiração e inspiração.
Ressurgir sem ser cinza, mas ser novo, vendo dois meses de trabalho coroado de aplausos e a certeza expressa: Agora eu posso dizer que sou atriz!
Yeyé Porto é dessa geração de atores e atrizes paraenses que tem como integrantes Geraldo Sales, Cacá Carvalho, Cláudio Barradas, Nilza Maria, Zélia Amador, Luis Otávio Barata, entre outros. Nomes que a gente fala com um acento grave na voz. Gente que eu com meus apenas 39 anos de idade e 09 de carreira tive a chance e a honra de conhecer (exceto o Barata). Fui chamado a integrar o projeto A Casa da Atriz pelo Adriano Barroso que dirige o espetáculo A Troca e a Tarefa, que inaugura oficialmente a residência dos Porto como espaço cênico. Integro-me como ferramenta, como elemento, somando o que eu sei – porque há o que eu saiba – e o que me falta – porque há muito disso – e acreditando em fazer teatro.
Após a estréia do espetáculo a comoção da equipe era geral. “É isso!”, o Barroso dizia, olhos brilhando. “É isso!”, concordávamos.
Fazer teatro é pra todo mundo, mas não é pra qualquer um. Toda pessoa pode subir ao palco, escrever peças, conceber figurinos, cenários, adereços; iluminar, compor trilhas e organizar as apresentações. Mas não é qualquer pessoa que se entrega, que se joga, que acredita; que sente uma cuíra entrando por trás, subindo pela espinha e desarrumando a cabeça. Talvez por isso Dionísio, o rubicundo deus da embriaguez e do delírio místico, seja o patrono do teatro. Teatro é uma experiência mística, não no contexto religioso, mas no mais pleno sentido transcendental.
E Yeyé Porto e sua equipe – minha equipe! – transcende o texto de Lygia Bojunga; dá a ele que é um texto sobre escrever uma expressão cênica; dá a ele que fala em transformação um sentido todo pessoal do que seja ser outra coisa, pessoa, vivência.
A encenação aposta na simplicidade e o público (18 pessoas por sessão) entra na sala da casa da atriz com a intimidade e a informalidade de quem visita para um café, efetivamente disponível se se queira!
Aníbal Pacha questionou e instigou a equipe até chegar a um resultado onde cenário e figurino têm o seu porquê.
Sônia Lopes produz um jogo de claro e escuro que é a alma mesma dessa mulher – e a nossa! – de certezas e dúvidas, de medo e tranqüilidade, da alegria de uma festa à sombra do medo e de morrer que é, antes de qualquer coisa, o medo da solidão e do esquecimento. É essa luz também que nos faz renascer em tons de azul, com num sonho bom recheado de lembranças.
O entorno com suas buzinas e vendedores se integra à encenação, mas eu sinto falta de som, não necessariamente música, mas algo que preencha o silêncio constrangedor que precede as revelações. Por não ser um teatro, nosso hall é a calçada. Se chover (Belém, Belém...) existe abrigo e a espera pode ser feita degustando um maravilhoso tacacá, ou outras iguarias.
A Casa da Atriz nasceu da vontade de fazer teatro.
A Troca e a Tarefa nasceu da vontade de fazer teatro. Um teatro pobre defendido por Grotowski de ter, ser e mostrar aquilo que realmente importante à cena, ao público. Pobre de recursos sim, porque quem está ali faz o que faz porque ama o que faz e, sobretudo, sabe o que faz e consegue tirar “faíscas das britas e leite das pedras”. Pobre porque a pirotecnia não interessa e é mesmo desnecessária. Os valores que este projeto e este espetáculo oferecem em troca extrapolam qualquer sentido monetário que, claro, não são dispensados por necessário. É nosso trabalho, afinal. É o fazer teatral que conta aqui e todo aquele que abraçou este ofício deveria ter uma experiência assim. Disciplina, retidão, talento não se aprende em escolas e livros. A teoria todo mundo pode ter, mas teatro é Ser. Isso não é qualquer um que queira ou possa!

SERVIÇO:
A Troca e a Tarefa. Espetáculo inaugural do projeto A Casa da Atriz.
Elenco: Yeyé Porto
Direção: Adriano Barroso
Assistente de direção: Aílson Braga
Iluminação: Sônia Lopes
Cenário e figurino: Aníbal Pacha
Contra-regra: Leoci Medeiros
Produção: Paulo Porto

De sexta à domingo, sempre às 20 horas, nos meses de abril a junho.
Rua Oliveira Belo, nº 95, entre Generalíssimo e D. Romualdo de Seixas.
Ingressos: R$ 20,00
Informações e antecipações de ingressos: 8266 4397 e 8127 6366

HUDSON ANDRADE
16 de abril de 2010
9h45

QUALITAS SP



O Sr. Raposo é um homem, perdão, uma raposa, persuasiva, inteligente, sagaz, persistente, renitente, vaidosa, de emoções contidas – mesmo as justas e verdadeiras. Por trás da fala mansa e da gravata (!) está um animal selvagem com a cabeça no topo das árvores e os pés no fundo de um buraco. O Sr. Raposo é o protagonista de O Fantástico Sr. Raposo (The Fantastic Mr. Fox, EUA, 2009), com roteiro de Noah Baumbach, Wes Anderson e Roald Dahl a partir do original do próprio Dahl, autor de A Fantástica Fábrica de Chocolate, e com direção de Wes Anderson. Feito em animação stop-motion, O Fantástico Sr. Raposo conta com as vozes de George Clooney (Sr. Raposo), Meryl Streep (Sra. Raposo), além de Wally Wolodarsky, Jason Schartzman (Ash), Michael Gambon, Owen Wilson, Bill Murray (Texugo) e Willem Dafoe (Rato)
A trama mostra o Sr. Raposo abandonando a sua vida de raposa ao prometer à Felicity, esposa grávida que não roubaria novamente, assumindo uma vida aparentemente pacata. Sua insatisfação contida talvez seja a causa do relacionamento burocrático com a esposa que pinta em quadros as tempestades que vão dentro dela, e com Ash, o filho infantilizado e rebelde com quem não consegue se entender. Tudo começa a mudar quando o Sr. Raposo decide comprar uma casa-árvore na vizinhança com os humanos. Ao ver-se limite com três homens ricos e poderosos algo dentro dele desperta e com a ajuda do zelador Kylie, a Toupeira, arquiteta o Grande Plano, sua real despedida do seu lado raposa.
Todos os animais do bosque são humanizados, vestem roupas humanas, exercem profissões humanas, mas ainda vivem em tocas e não freqüentam a cidade com seus cachorros ainda cachorros. Ao invadir as propriedades dos fazendeiros Boggins, Bunce e do terrível Sr. Bean, Raposo provoca uma confusão de proporções inimagináveis que o envolvem diretamente, sua família e o delicado equilíbrio entre os homens e os animais, colocando-o em cheque com os seus valores – sobretudo sua vaidade e necessidade de atenção – e exigindo dele uma postura diante da sociedade, da família e de si mesmo.
Bárbara Heliodora diz em seu livro O Teatro Explicado aos Meus Filhos* que a preocupação essencial do teatro são as questões humanas. Ao expandirmos esse conceito para outras formas de arte temos O Fantástico Sr. Raposo discutindo situações extremamente significativas na embalagem cuti-cuti dos bonequinhos que se movem na tela. Não é um filme infantil, mas é um filme para todas as idades. Como é isso?! Diria que é um filme para crianças inteligentes e que possam julgar valores. Quem é mais selvagem? O Sr. Raposo e seus amigos ao assumirem o seu DNA e os seus nomes científicos, ou o autoritário e irascível Sr. Bean? Quais as conseqüências para a Sra. Raposo ao perceber que a vida a qual se acomodou não é assim tão estável e que ela precisa se posicionar diante de um perigo eminente? Como o Sr. Raposo pode resolver os conflitos com o filho, piorado depois da chegada do primo Kristofferson? como acessá-lo? Como dizer que o ama e confia nele? E o Rato, vendendo seus préstimos aos humanos contra seus pares animais, como um autêntico capitão-do-mato? Este não é um filme infantil. Há cenas violentas, diálogos contundentes, debates filosóficos, tudo quebrado e equilibrado por Anderson que com os gracejos dos seus bichinhos fofinhos fala bem fundo em nós.
O único prejuízo de O Fantástico Sr. Raposo não ter ido para o circuito comercial – O Maria Sylvia o exibiu em parceria com a Oi – é que isso reduz consideravelmente o público que pôde desfrutar dessa fabulo bonita por natureza e humana por excelência. Em seus quase uma semana e meia-raposa (mais ou menos 90 minutos humanos) O Fantástico Sr. Raposo é um exercício de lirismo numa animação cada vez mais rara e extremamente bela – ainda mais nesses tempos de filmagem digital, CGI, motion caption, etc. é a prova de que cinema, arte enfim, jamais prescindirá de uma boa história, de alguém que saiba contá-la e do jeito certo de fazê-lo.

HUDSON ANDRADE
07 de abril de 2010
15h29

(*) Rio de Janeiro: Agir, 2008, p. 17

sábado, abril 10, 2010

ÉGUA, PRIMO!



Wlad Lima e Karine Jansen são dessas tias velhas que costuram enormes e aconchegantes colchas de retalhos e nos dão de presente. Essa cara fragmentada e colorida é a marca dos seus trabalhos, seja em Macunaíma – O fim do que não tem fim, no qual eu atuei em 2000, na Escola de Teatro, passando por Amortemor, Paixão Barata e Madalenas, Laquê, Quando a Sorte te Solta um Cisne na Noite, entre tantos, até Brasileiramente, Árabes! que estreou no último dia 31 de março.
Vivi esse processo em que o texto do Mário de Andrade, nossas histórias, sensações físicas, jogos, um-bilhão-quinhentas-e-oitenta-e-quatro-milhões de referências de um-tudo alimentavam elenco e direção na construção do espetáculo. Cada ator/atriz tem sua chance, cada um oferece e recebe, cada um constrói, desconstrói, reconstrói. Às vezes eu ficava no escuro, querendo saber se tinha acertado, errado, qualquer coisa, e elas ali, sugando de mim até o bagaço pra depois devolver reidratado e fresco, com um tempero e um sabor peculiar a cada um: nós, atores, os retalhos. Elas, agulha e linha. E tesoura, se preciso.
O trabalho começou em 2008 com Maridete Daibes, Larissa Latif, Wlad Lima e Karine Jansen a partir de narrativas familiares; um grupo de pesquisadores recolheu cartas de descendentes de libaneses e todo esse material foi decodificado em símbolos. Wlad e Karine são mestras em transformar letras e contos e falas e sentimentos e sensações em símbolos e estes na poesia que preenche o palco. Daí nasceu Brasileiramente, Árabes! a pesquisa e o espetáculo, trazendo a identidade dos descendentes libaneses no Pará, sobretudo em Belém, buscando revelar uma ascendência árabe oculta aos nossos olhos e que faz parte de nossa história individual e coletiva de forma insuspeitada.
O espetáculo de 75 minutos avança em quadros com apresentações genealógicas, relatos pessoais, familiares, históricos, a imigração, os costumes, a culinária, os ditos, a fama de mercadores, a mitologia. Quatro atores descendentes de libaneses nos conduzem nessa viagem quase sinestésica, mas irregular, fruto de diferenças de maturidade cênica – todo ator/atriz tem seu espaço –, seguros pelo conjunto. Parece que aquelas histórias não são deles – de certa forma não! –, mas que precisavam de uma apropriação que tornaria tudo mais crível e emocional. A cenografia e o figurino de Klau Menezes têm a beleza das coisas simples e significantes – ainda que nem tanto para quem assiste –, contida nas cores, étnica e onírica como os personagens de nossos livros infantis. A sonoplastia de Eddie Pereira calcada na tradição árabe dá na gente aquela vontade de sacudir as cadeiras e os ombros (dizque o ECAD apareceu por lá! Essa gente não se manca!) e só peca pela falta comum em nosso teatro que usando música mecânica estanca tudo com um clique seco do pause/stop.
Todos rimos das contas de cabeça feitas para a construção de uma casa, calamos para ouvir as lendas de mercadores e califas, relembramos conflitos sangrentos, saudades. Atrás de mim uma senhora reconhecia sua própria história e comentava, antecipando-se a fala como se conhecesse o roteiro – de alguma forma sim! –; reconhecíamos as lojas e os nomes de família e no ponto de ônibus, muitos minutos depois (muitos mesmo, pois o ônibus demorou pacaraio!) três amigos comparavam os narizes e concluíam: a gente é tudo misturado mesmo!!!
Se Brasileiramente, Árabes! se propõe a revelar (nos), bingo!!!
Cá estamos. Eu desejando tanto ser novamente retalho. Caminhos diversos... Cá estamos, flutuando na fumaça luminosa dos narguilés.
“ASSALAN ALEIKUM”

Brasileiramente, Árabes! é vinculado a pesquisa “Brasileiramente, Árabes! um estudo das práticas performáticas dos descendentes de libaneses na cidade de Belém”.
Equipe de pesquisa: Carlos Vera Cruz, Cleice Maciel, Karla Pessoa, Ives Oliveira, Karine Jansen e Wlad Lima.
As cartas que originaram a dramaturgia estão disponíveis em HTTP://brasileiramentearabe.wordpress.com
SERVIÇO
Brasileiramente, Árabes!
Direção: Karine Jansen e Wlad Lima
Com Natalia Abdul Khalek (Família Abdul Khalek), Dario Jaime (Família Abdon Khalarg), Maridete Daibes (Família Daibes) e Klau Menezes (Família Anaisse).
Teatro Cláudio Barradas (Escola de Teatro e Dança da UFPA. Av. Jerônimo Pimentel, esquina com D. Romualdo de Seixas).
De 31 de março a 11 de abril de 2010, de quarta a domingo, 21 horas.
Ingressos: R$ 20,00 (vinte reais) com meia entrada para quem de direito, incluindo a categoria teatral e descendentes de libaneses, mediante comprovação.
Este projeto tem o patrocínio da Petrobras através da Fundação Nacional de Artes – FUNARTE, Ministério da Cultura.

HUDSON ANDRADE
01 de abril de 2010.
10h53

...E TAMBÉM COM O TEU ESPÍRITO...



“Que padeceu por nós, morreu por nosso amor.”


Todo mundo que trabalha com teatro já ouviu a expressão “teatro de igreja”. Normalmente isso é dito num contexto pejorativo, indicando algo extremamente amador, simplório e conteudista. Amador, sim, afinal quem o pratica não tem como foco salário, sistematização e/ou regulamentação da atividade, foco em artes cênicas. Simplório não significa necessariamente piegas, ou mal feito, ou de mau gosto. Conteudista, talvez. Esta é uma relação séria na relação arte e sociedade: a arte só ser arte se for pura, o que é impossível porque arte e artista estão enraizados num contexto histórico-cultural-social. Por outro lado a chamada “arte engajada” quer tornar o artista a consciência crítica do povo oprimido, sacrificando o trabalho artístico pela “mensagem”. Há que se encontrar um meio termo entre formalismo e conteudismo, de vez que toda arte comunica e toda mensagem precisa de uma embalagem adequada.
Outro ponto são as relações entre religião e arte, aqui especificamente o teatro. Há quem veja esse relacionamento como promissor, outros com desconfiada tolerância, alguns com algum desgosto e mesmo total desprezo. Não dá pra desvincular o que tem origens tão íntimas – dos cultos tribais aos ritos religiosos, passando por Téspis na antiga Grécia, a proibição e a excomunhão pela igreja católica coibindo os despautérios do teatro romano até que essa mesma igreja o resgatasse dos mercados para seus átrios, catequizando através de Mistérios e Paixões.
Vi uma dessas paixões, O Canto da Paixão, de autoria do padre Reginaldo Veloso, encenada na Igreja de Jesus Ressuscitado, com direção do seu pároco, ninguém menos que Cláudio Barradas. O texto extremamente bem escrito, em versos, cantado ao vivo pelo próprio Barradas, narra da entrada de Jesus na Cidade Santa até sua ressurreição. É dividido em quatro blocos que mostram o Jesus histórico, encerrando cada período com uma reflexão da paixão crística em nossa realidade atual. Não há falas para os atores, apenas algumas interferências. O elenco, notadamente jovem, interpreta coro e vários personagens, exceto aquele que faz o Cristo, único a permanecer apenas com um personagem. A encenação é simples, ilustrando os acontecimentos apresentados um a um. O figurino, básico – calças de tactel preto, camisetas brancas, pés descalços, sem maquiagem, faixas de tecido roxo que se alternam em mantos, cintas, chicotes, correntes, romanos, judeus. Exceção novamente ao Cristo, numa túnica branca e manto vermelho sobre um trançado de tecido branco que lhe cobre abaixo da cintura. Nenhum adereço, nem mesmo a própria cruz, representada também por um ator.
Assisti tudo atento e realmente comovido. Ciente de uma cronologia e de seu elenco, Barradas interrompeu duas vezes a encenação, reiniciando e inserindo uma cena esquecida. O que no teatro, digamos, formal, não acontece, com o ator devendo resolver sua cena e dando prosseguimento a trama, aqui atende aos objetivos catequéticos da apresentação; observei que a dramaturgia, em tudo coerente com a doutrina que expressa, não é meramente jornalística e não descamba no pieguismo, sobretudo ao conectar o sofrimento de Jesus ao povo no cenário opressor, corrupto, preconceituoso e intolerante em que vivemos. O tom monocórdico de ladainha, quebrado ao final de cada bloco parecendo querer nos despertar para uma realidade esquecida, ou propositalmente relegada às periferias. O elenco, decididamente, precisa de um corpo de ator. Geralmente frouxo (ou tenso quando e onde não deveria) daria muito mais clareza e força às cenas se os gestos fossem mais limpos, decodificados e precisos, mas isso faz parte daquela sistematização supra-citada e que ainda não está na sua realidade.
Pensei por um momento na Paixão de Cristo, lá em Nova Jerusalém. Ela teria trocado a mensagem, ou a idéia na sua concepção pelo show? Ou tudo sempre fora pensado assim e só aos poucos ganhou a estrutura atual, pirotécnica, com seus atores globais? E quem assiste quer ver seus ídolos, ou relembrar Jesus nessa passagem ímpar da história humana? Ou as duas coisas? De quantas trocas de roupa, cenários e efeitos de luz e som eu preciso para emocionar e comunicar? Uma faixa de malha roxa e um gesto no ar não chegam ao mesmo fim? Aquele é Teatro e esse “teatro de igreja”, no seu conceito pejorativo dito por alguém cheio de empáfia? Muitas outras perguntas poderiam surgir daqui, debates, que passariam mesmo ao largo da equipe da paróquia de Jesus Ressuscitado cujas mãos experientes de um dos maiores artistas desse estado, Cláudio Barradas, criou um espetáculo de uma beleza tão singela quanto marcante. Na sua paixão, tanto o ator era o foco – limpo, trocando personagens e agindo diante da platéia, ciente de suas próprias limitações –, quanto o Evangelho de Jesus, sua morte e ressurreição. É a arte – habilidade, instrumento, agilidade, ofício – ordenando a vida humana por regras e símbolos, contando e emocionando. Adaptando Djavan: arte é assim: invade. E fim!

Participam de O Canto da Paixão: Marcelo Rocha, Pedro, Kátia, Fabrício, Meire, Jhony, Isabel, Cristiano, Radarani, Raimundo, Laiana, Alan, Iranildes, Adriano e Franklin.

HUDSON ANDRADE
29 de março de 2010.
10h19

EU TENHO UM SONHO...



... de que haverá oportunidades para todos, brancos, negros, homens, mulheres, todas as idade e etnias, com respeito a sua cultura e costumes. De que haverá uma chance para alguém – que nem todas a buscam, ou se esforçam para garanti-la – e que esse alguém fará a diferença e a multiplicará. De que haverá sorrisos, inicialmente tímidos e então abertos, francos e haverá paz nos corações.
É com um sorriso quase constante no rosto – alguma lágrima, alguma reflexão – que assisti (mos) Um Sonho Possível (Tha Blind Side, EUA, 2009), filme que deu a Sandra Bullock o Oscar de melhor atriz. O título para nós faz todo o sentido: Michael Oher (Quinto Aaron), negro, sob a tutela do estado depois que a mãe, viciada em crack, perde sua guarda, oriundo de um gueto desconhecido da própria cidade onde está encistado, é acolhido pela família Tuohy que com a paciência de quem “descasca uma cebola, camada por camada”, consegue que ele se torne um super astro do futebol americano, de onde o título original, posição ocupada por Big Mike no time. Nesse ponto eu me calo. Futebol americano é uma das coisas mais estúpidas do planeta (e eu posso falar de cátedra sobre estupidez vivendo num Brasil amoral ao som de tecnomelody) e demonstra bem a inclinação imperialista e belicosa daqueles que o praticam e prestigiam.
Mas voltemos ao filme. É difícil crer que um roteiro tão simples e lacrimosos possa render um bom drama, em se sentido real. E rende! Sandra Bullock no papel de Leigh Anne Tuohy é a locomotiva que puxa toda a trama. Segura, suave, assertiva, com um charme meio cafona de quem veio de origem humilde, cresceu e não esqueceu que ainda há um outro lado na cidade, nas pessoas, na vida. A atriz interpreta o personagem com tranqüilidade e segurança, sem carregar nas tintas, nos maneirismos, contida e luminosa. Um bem merecido prêmio. A Sra. Tuohy, o marido Sean (Tim McGraw) e os filhos Collins (Lily Collins) e o fantástico SJ (Jae Head) acolhem o grandalhão calado e esquivo com uma camisa no corpo e outra num saco plástico sem maiores preocupações. Nesse ponto o filme é feito para agradar: não há um grande conflito até Michael ser confrontado com a possibilidade de que todo aquele investimento não seja desinteressado, o que desaparece depois de um choque com sua realidade original e algumas horas meditando diante da máquina de lavar. Daí voltamos a paz onde ninguém discute as opiniões da persuasiva Leigh Anne Tuohy, onde não se briga, questiona – sejam os filhos, os professores, o treinador – e mesmo a questão racial, apesar de estarmos no Mississipi, se resume a uma meia dúzia de seis xingamentos numa partida de futebol. Aliás, estarmos no Mississipi só aumenta a relevância do feito dos Tuohy que podendo degustar saladas de 18 dólares o prato, investem num desconhecido. E é tocante a cena em que Michael recebe seu quarto. A sinceridade ingênua de quem havia dormido de sofá em sofá toda uma vida comove a mãe adotiva e a platéia. O garoto tirou a sorte grande e soube aproveitá-la porque não tinha o mesmo ânimo dos seus parceiros da periferia, como o jovem Danny, que contaminado por sua des-vida acaba como, acredita-se, devem acabar todos aqueles. E essa diversidade de ânimo se deve a um (pasmem!) conselho materno (não, eu não vou contar qual é!) que se foi eficiente em proteger o menino, produziu um jovem inerme, quase um autista social, o que lhe garantiu sucesso num mundo onde ele tanto poderia encher-se de tola vaidade, ou fugir carregando a prataria.
Apesar de seu caráter folhetinesco Um Sonho Possível é um ótimo filme para ver, rever com a família, discutir seus aspectos sociais; dar gargalhadas e fechar a janela do carro para enxugar, às escondidas, uma furtiva lágrima. E olha que quem diz isso desistiu de À Procura da Felicidade (The Pursuit of Happyness, EUA, 2006) no seu primeiro terço!
Eu tenho o sonho de um filme perfeito! Mas enquanto a perfeição – nosso maior sonho – não vem, que haja outros filmes possíveis de serem vistos com bons amigos, no escurinho do cinema, perto de um final feliz.

HUDSON ANDRADE
25 de março de 2010.
9h58

O MÃO DE VACA



O clown é a exposição do ridículo e das fraquezas de cada um. Logo, ele é um tipo pessoal e único... O clown não representa, ele é – o que faz lembrar os bobos e bufões da Idade Média. Não se trata de um personagem, ou seja, uma entidade externa a nós, mas da ampliação e dilatação dos aspectos ingênuos, puros e humanos (como no clods), portanto ‘estúpidos’, do nosso próprio ser (Burnier, 2001, p. 209).


“Façam versos pr’um palhaço que na vida já foi tudo: foi soldado, carpinteiro, seresteiro e vagabundo...”* e nessa multiplicidade os Palhaços Trovadores fizeram nesses 11 anos de experiência um público cativo, fiel e entusiasmado, apresentando seus espetáculos nos teatros, ruas, escolas, praças e até bares; participaram ainda do Festival de Ópera nas apresentações de de Il Pagliacci e foram nesse 2010 homenageados pela Escola de Samba Bole-bole, do Guamá, cujo enredo foi o campeão do carnaval em Belém. E finalmente depois de 11 anos conseguiram uma sede onde trabalhar e agora pelejam para restaurar o prédio cedido pela Santa Casa de Misericórdia.
Um grupo grande, de aparente pouca rotatividade, coeso, que introduziu na cidade a linguagem dos clowns enquanto teatro – entenda-se, fora do circo. Seus espetáculos costumam ter um tema central desenvolvido em pequenos quadros, exceto suas duas últimas produções, adaptações da obra de Molière (Jean-Baptiste Poquelin, Paris, 15 de janeiro de 1622 – 17 de fevereiro de 1673). de O Doente Imaginário nasceu O Hipocondríaco e de O Avarento, o então em cartaz O Mão de Vaca. Esses dois trabalhos fogem a regra por terem um roteiro mais fixo e linear; os atores representam dois personagens: o seu próprio clown que por sua vez representa o personagem da peça. A estrutura cênica de ambos é igual: toda a trupe em cena, ao fundo, de onde se deslocam para suas ações e onde acontecem (pequenas) interferências. Marcelo Villela e seu clown, Bubutchelho, são os protagonistas desses trabalhos, o cenário é simples e pontual; há música ao vivo, os figurinos são de Aníbal Pacha. As semelhanças acabam aí. Apesar de parecidos em estrutura e encenação, O Mão de Vaca é muito mais ralentado, menos emocional e divertido que seu duplo. Há pequenas variações de elenco nos dois e eles têm, pelas suas próprias características, improvisos e cacos que tanto podem render ótimas sacadas, ou por a perder uma cena. Essa falta de ritmo faz com que os cerca de 90 minutos de encenação pareçam muito mais, causando mesmo um desconforto na platéia. Afirmo isso por ter assistido O Mão de Vaca duas vezes e constatado o que, à primeira vista, poderia ser só um dia ruim. Nesta segunda vez foi pior, mas sejamos francos que parte do problema está em que por ser um espetáculo “de palhaços” acredita-se que seja um espetáculo infantil. Não demorou para que a molecada dormisse, ou pior, ficasse indócil. Outra questão é que essa apresentação no Maria Sylvia Nunes, da Estação das Docas, criou um distancimento nada interessante. O espetáculo pede o público ali do ladinho, interagindo, cúmplice.
É muito bom ver o crescimento de alguns atores – projeção de voz, articulação, jogo –, assim como a necessidade de amadurecimento de outros; a segurança dos mais antigos garantindo que o espetáculo siga seu curso (seja lá de que jeito for). Teatro de grupo, não vou citar nomes nem elogiar, ou admoestar individualmente. Parabenizo todos e peço cuidado a todos. não se sintam satisfeitos nem confortáveis com os resultados obtidos, ou o aplauso efusivo dos fãs de carteirinha. Pode ser mais. Sempre dá.
(*) O Circo. Quarteto em Cy
SERVIÇO: O Mão de Vaca. Adaptação de O Avarento, de Moliere.
Direção: Marton Maués.
Com: Os Palhaços Trovadores.

TÃO EM BREVE QUANTO POSSÍVEL, visite a CASA DO PALHAÇO, Tv. Piedade, esquina com Tv. Tiradentes.

VEJAM TAMBÉM: http://unha-de-fome.spaceblog.com.br

HUDSON ANDRADE
13 de março de 2010.
9h23