quinta-feira, julho 23, 2009

ATO TERCEIRO. CENA II




“Deixa que o teu bom senso te oriente. Que a ação responda à palavra e a palavra à ação, pondo especial cuidado em não exceder os limites da simplicidade da natureza, porque tudo o que a ela se opõe, afasta-se igualmente da própria finalidade da arte dramática, que é, tanto em sua origem quanto nos tempos que correm, a de apresentar, por assim dizer, um espelho à vida.”

(Hamlet. William Shakespeare)


Não é à toa que o capítulo 9 da série Som & Fúria se chama “Monstros Raros”. Nessa semana aparecem alguns tipos que, infelizmente, não são assim tão raros: o diretor Oswald Thomas (Antonio Fragoso), que já esteve em cena antes quando da montagem de Hamlet, o ator Henrique (Daniel Dantas), chamado para viver Macbeth e o publicitário Sanjay, representado por Rodrigo Santoro. Cada um a seu jeito vive em um mundo muito particular em torno do qual devem gravitar todos os demais. Senhores de si, tentam senhorear os outros e há, acreditem, quem se proponha à coleira.
Sanjay é, na minha opinião, um aproveitador. Se seus caminhos são honestos, ou não, ainda não deu pra saber. Há quem o apóie e existe quem o detrate, mas isso há em qualquer lugar, em qualquer profissão, pra qualquer pessoa. Com uma estrutura organizadíssima e uma lábia totalmente fundamentada ele leva seus clientes pra onde quer. Se vai dar certo, é preciso pagar pra ver!
Thomas é um desses diretores herméticos, cheio de certezas, de um conhecimento processado pelas suas próprias experiências e, por que não, impávia, contra o qual não há contradição. A cada questionamento uma enxurrada de colocações feitas como que num dialético alienígena que pretendem fazer os atores parecerem os grandes idiotas que ele, claro, acha que são. E quantos encenadores não há assim, que devendo dividir e orientar fazem dos espetáculos a sua cozinha, ou a sua privada? Trabalhei com alguns profissionais e cada um tem um jeito muito particular de conduzir a encenação. Felizmente nenhum foi um Thomas na minha vida, ainda que em muitos momentos eu tenha ficado (ou me sentido) num escuro frio e pegajoso, sem saber o que fazer, o que dizer, pra onde ir, me sentindo sim, um idiota. Mas isso são meus processos: cerebrais diria Adriano Barroso, disciplinados na visão de Aníbal Pacha, (...) na não-fala de Wlad Lima. Em todos ao menos um ponto em comum, uma exasperação que nasce sei lá de onde aliada a um paternalismo (com a peça, consigo, ou conosco eu não sei!) que beira um precipício do qual alguém sempre acaba se jogando. Talvez seja exatamente isso o necessário: jogar-se. É importante dizer que é mister se sentir seguro com a direção. Entender que ela sabe os caminhos para os quais a encenação está caminhando; que haja respostas – nenhuma de mão beijada – e que o ator possa se sentir um artífice, nunca um marionete.
Atores. O que é o Henrique? Logo de cara ele pede pra se apresentar com um dos monólogos de Macbeth, pavão misterioso. “Já fiz essa peça três vezes”, repete incessantemente e pára o ensaio pra dizer que ele pensa que seria melhor se ele estivesse em tal lugar no momento de tal fala. “Claro!”, retruca o fantasma de Oliveira, “Ele não pode ficar quatro segundos de costas para a platéia!”. Daí me reporto ao texto do Shakespeare no topo da minha escrita. Henrique é o que chamamos de canastrão, mas adorado. Sua atuação empolada agrada apenas a pseudo-conhecedores-apreciadores da arte dramática. Houve um tempo de monstros sagrados, isolados no centro-frente do palco, em plano mais alto, iluminados profusamente, intocáveis. Enquanto estética isso foi se quebrando e ficando ultrapassado. Enquanto vaidade permanece até hoje e permanecerá sempre porque a vaidade parece ser atributo inerente dos (maus) atores. Ainda somos vistos como animais exóticos, capazes de mimetizar sentimentos, fingir e mentir de tal forma que ninguém saiba se o que falamos, seja no palco ou fora dele, é ou não real. Cria-se uma aura de desconfiança, mas também de admiração. Precavida, mas admiração. Parecemos viver num mundo à parte, doidivanas, contrários todos as leis honradas dos homens e de Deus*. Poucos fora do metier nos vêem como trabalhadores. Vêem apenas as gaitadas, a libertinagem, a tal fama e a tal fortuna que, quando não aparece, é recibo de incompetência e norte pra outros caminhos. É preciso entender e respeitar nossas longas horas de ensaios, nossa detalhada observação das pessoas e da vida, nossa entrega; os suores, as lágrimas, as noites em claro, alguns sacrifícios, uma necessidade quase patológica de ler, estudar, pesquisar, repetir, refazer, retomar, mandar deus e o mundo às favas e se agarrar a tudo como uma tábua de naufrágio. Não ter certezas. Não se sentir enorme. Não ter dúvidas. Nunca se sentir pequeno. Ser. E ser pra si e ser pro palco.
Isso, claro, para os que são atores e atrizes. Quem desconhece essa rotina, ou faz disso o seu cartão de visitas, não merece esse substantivo. Ou seria adjetivo? E sejam todos bem vindos ao Fantástico Mundo de Henrique!

HUDSON ANDRADE
23 de julho de 2009 AD
9h50

REFERÊNCIAS
1. Shakespeare, William. Hamlet. Tradução Pietro Nassetti – São Paulo: Martim Claret, 2001
2. (*) Pecado, Carlos Balk e Pontier y Francini
3. Imagem: Sérgio Britto em foto de Guga Melgar

quinta-feira, julho 16, 2009

SEIS SOLILÓQUIOS. O RESTO É SILÊNCIO.



“O grande conflito da série é o de equilibrar integridade artística e bilheteria.
Esse é meu conflito do dia a dia.”
(Fernando Meirelles)


Assim Dante Viana, o personagem de Felipe Camargo em Som & Fúria definiu Hamlet, de William Shakespeare. A série da Globo que entrou em sua segunda semana é um desses produtos primorosos com que a televisão tão raramente nos tem presenteado. Praticamente uma conjunção astral entre a direção de Fernando Meirelles (que também assina o roteiro), o elenco encabeçado por Felipe Camargo e Andréa Beltrão e uma produção afinadíssima. No capítulo de ontem, 15 de julho, dirigido pelo próprio Meireles e Gisele Barroco, encerra-se um primeiro momento em que se apresenta o retorno de Dante ao Theatro Municipal, agora como diretor artístico, depois de sete anos de ausência e traumas, para lutar contra si mesmo, egos inflamados e as picuinhas políticas que envolvem e entravam nossa cultura e arte. Assessorado, digamos assim, pelo fantasma de Oliveira (Pedro Paulo Rangel), que tal qual o assassinado rei da Dinamarca, pai de Hamlet, volta do túmulo para colocar alguns pontos em alguns is.
Em cartaz na temporada clássica do Municipal, a história do príncipe do podre reino da Dinamarca que vinga a morte do pai. Retornamos assim a frase que dá título a este texto. Longe de menosprezar a obra do bardo inglês, Dante se utiliza dessa linguagem para acalmar o protagonista do espetáculo, Jaques Maya, representado por Daniel de Oliveira, e encorajá-lo a ir ao palco. Informações precisas, objetivas. Foco. Um entendimento claro do que o autor precisava dizer e que se dito, satisfaria a todos. Já em outro momento Dante fizera isso, explicando a uma aspirante a atriz, Clara (Maria Helena Chira) quem era Ofélia. E no dito capítulo, de camarim em camarim, ele dá indicações de como aprimorar os personagens. E aí temos duas situações: o diretor atento que consegue extrair de seus atores o melhor através de indicações e como o ator se coloca em relação a isso, ao público, ao seu trabalho. Vemos o Oberon de Paulo Betti responder que não mudaria nada do que tinha feito, que era o último dia de apresentação e que a platéia era um bando de delinqüentes; e vemos a Elen de Andréa Beltrão acatar as indicações, entender que teatro é uma arte dinâmica e, como disse Dante, ter a chance de fazer bem feita a sua cena. Um momento de dúvida entre acomodar-se e arriscar-se a ganhar o mundo, e sua rainha Gertrudes entra em cena plena, enorme, silenciando uma assistência realmente indócil e desacostumada dessas coisas de clássicos e teatros, num crescendo que não poderia sair de dentro dela, mas que igualmente não cabia no peito, uma lágrima borrando a maquiagem, um texto fluido, cristalino. Não sou difícil de me emocionar e agora mesmo enquanto escrevo os olhos marejam, mas a cena foi absolutamente fantástica. Ontem, sentado sozinho na sala, chorando, quis levantar também e aplaudir, mas me contive por esses lapsos de racionalidade, não sem me sentir gratificado por fazer parte dessa arte, pela oportunidade de aprendizado, pela consciência das coisas que tenho oferecida tão generosamente por parceiros valiosíssimos como Adriano Barroso, Ailson Braga, Miguel Santa Brígida, Aníbal Pacha, Wlad Lima, Karine Jansen, Ana Flávia Mendes, Henrique da Paz, já anteriormente citados (nunca, nunca é demais!) com quem mais diretamente trabalhei e tantos outros que seria injusto nomear um sem indicar os demais, mas sobretudo os meus companheiros de Nós Outros, incluindo claro meus novos parceiros.
Para o público comum, sem qualquer desfeita com essa expressão, talvez tenha sido apenas um capítulo de uma minissérie. Algo emocionante, quem sabe. Para o povo do teatro, uma verdadeira aula, um Hamlet sintetizado em uns trinta, quarenta minutos entre o futebol e o telejornal sem que nada de sua esplêndida carga emocional fosse perdida. Alguém não deve ter pensado assim e torcido a cara. Paciência. Humildade não é demérito nem disponibilidade, submissão. Sempre se pode dar um passo a mais. Atores e atrizes que se acham grandes demais, bons demais, que já sabem coisas demais, hmmm, diriam Adriano e Ailson: se foderam!

SERVIÇO
Som & Fúria. TV Globo. De terça a sexta, tarde demais pra um programa assim, mas que bom que dá tempo de eu assistir quando chego do ensaio.
Direção: Fernando Meirelles, Gisele Barroso, Toniko Melo, Fabrizia Pinto e Rodrigo Meirelles.
Roteiro original “Slings & Arrows”: Susan Coyne, Bob Martin, Mark McKinney
Roteiro adaptado: Fernando Meirelles
Produção: Fernando Meirelles, Andrea Barata Ribeiro e Bel Berlink
Produção executiva: Ary Pini
Direção de fotografia: Adriano Goldman, André Modugno e Marcelo Trotta
Direção de arte: Cassio Amarante
Figurino: Verônica Julian
Montagem: Lucas Gonzaga e Lívia Serpa
Trilha sonora: Ron Sures
Produção de elenco: Cecília Homem de Mello
Coordenação de maquiagem: Anna Van Steen

HUDSON ANDRADE
16 de julho de 2009 AD
9h05