quarta-feira, dezembro 31, 2008

BROCARDOS (07)


As horas, os dias são uma invenção do Homem.
Os 366 dias que compõem 2008 são nossa tentativa de controlar o incontrolável: o Tempo!
Aliás, essa é a maior marca dos nossos desencontros, das nossas ansiedades: o desejo de controle. De pôr rédeas aos outros, às nossas necessidades, colocar o cabresto nos desejos alheios, cercear o tempo, limitar as coisas e querer que a banda toque por uma pauta nossa, mesmo que a melodia resulte dissonante.
Ainda não aprendemos que o outro é melhor se livre e que ainda que por caminhos tortuosos, melhor é que ele se vá do que atrelado a nós, definhe.
Ainda não descobrimos o tamanho das nossas pernas e continuamos a colocar nossas “necessidades” no topo mais alto, onde por vezes estão os de fulano e de sicrano, ícones da modernidade, que alguém determinou como gabarito.
E nesse turbilhão nos vemos escravizados por aquele que tentamos controlar, o Tempo, pois na ânsia de ser senhor ocupamos nossas horas com o alheio e deixamos de viver, de aprender, dormir, fazer sexo, comer adequadamente, exercitarmo-nos, escrever um e-mail (até mesmo uma carta, por que não?!), corrigir os deveres dos pequenos, olhá-los de longe e ver que já não são tão pequenos assim, curtir um bom filme e principalmente um bom espetáculo teatral, curtir a música, dançar por uma coreografia torta, mas pessoal, comprar tomates frescos na feira, tomar açaí gelado, dormir. Ao final das 24 horas, ficamos com a sensação de que faltou tanta coisa e que nosso cansaço é o maior que existe e já nos angustiamos com o dia seguinte, prenúncio de novos dissabores.
Mas o tempo continua inexorável. Amanhã, 01 de janeiro de 2009, o dia começará exatamente como hoje, o último de 2008, com a Terra tendo dado a volta sobre si mesma, tornando este lado do mundo aos raios do Astro-Rei. Estaremos um dia mais velhos, mais experientes, teremos morrido um pouco mais diriam os pessimistas e continuaremos vivos, deste, ou do outro lado da vida.
Das tradicionais resoluções que tomaremos para 2009 que tal incluir uma nova diretriz? O de tentar controlar apenas a nós mesmos. Regular nossos horários, assumir realmente as responsabilidades que tomamos para nós, ir, ficar, casar, estudar as novas (e para mim nem tão boas) regras ortográficas, comprar roupas novas, fazer um curso de qualquer coisa, aprender estenografia, ou mandarim. O que quer que façamos, façamos por nós. Apaziguados assim perceberemos que o outro não é lá tão lerdo nem apressado demais, que ele não é tão guloso assim, ou dorme tanto; que eu posso correr, mas o outro apenas caminhar. Entender o limite do outro e assumir o que é seu. Respirar isso, diria um bom amigo.
Um ciclo humano de dias se encerra hoje numa invenção também humana de 24 horas.
Fechemos esse ciclo. Aproveitemos o que foi bom, avaliemos o que não foi e não o joguemos pra baixo do tapete que isso também é aprendizado.
Amanhã tem mais um dia dos 365 que tornarão 2009 um ano ímpar, sem qualquer trocadilho!

HUDSON ANDRADE
Belém, Pará, 31 de dezembro de 2008.
8h40

sábado, dezembro 13, 2008

EU 18


Ele era o zelador. Tinha outros adjetivos e substantivos. Nada significativo.
Estava lá quando chegávamos, ia e vinha enquanto estávamos, mas eu nunca tinha reparado que ele permanecia quando saíamos.
Até aquela noite.
Inconformado com o que eu considerava uma performance medíocre, ficara no camarim até ouvir última porta bater e diante do espelho iluminado buscava o tom que me igualaria aos companheiros de cena. Sozinho, no entanto, eu apenas repetia falas.
Irritado, joguei o texto sobre a bancada espalhando maquiagem e um copo com água inadvertidamente esquecido. Sequei tudo com papel-toalha e pragas, arrumando depois com esmero os lápis, sombras, pancakes, esponjas.
Foi ao passar pelas coxias que eu vi o zelador. Acendera um foco branco sobre si mesmo, círculo perfeito, e com sua vassoura fazia a cena que tanto me inquietava. Seu corpo se movimentava pequeno e preciso, nenhum gesto fora do lugar. A destra segurava a vassoura com força, o braço tensionado, mas sem apertar o cabo, ou amassar os pêlos contra o chão. A outra mão num gesto congelado de quem se despede, permanecia no ar. Seguia com a fala e descia o corpo, sentando-se por fim e depondo a vassoura no colo, descendo finalmente a mão para acariciar a madeira tosca, levando-a depois para o chão, usando-a como apoio para o corpo que descia mais ou menos lento, subindo rápido, descendo novamente. Por fim deitou-se, a parceira de trabalho (e agora de cena) ao lado. Respirou profundamente três vezes e movimentando apenas os lábios, terminou as falas.
Para si mesmo murmurou vivas e aplausos. Levantou-se solene e solene ergueu sua companheira inclinando-se ambos para as cadeiras vazias. Lágrimas nos olhos, não resisti ao aplauso. Ele me olhou apavorado como se pego no maior dos crimes e depois de balbuciar um “...o senhor me desculpe... eu não tive a intenção...” sumiu na escuridão do teatro e eu não consegui encontrá-lo em lugar algum. Queria lhe dizer da minha admiração e que ele tivera toda a intenção sim. Lembrava-o agora parado e atento por trás das panadas. Vira-o dançar com a vassoura, mas creditara a varrição do muito pó. Ouvira-o murmurar e atribuíra ao cansaço, à aporrinhação.
No dia seguinte, deitado ao lado da minha parceira, Black-out, ouvi os aplausos ruidosos da platéia. Enquanto agradecíamos perfilados, apontei para as coxias e fiz uma mesura. Ninguém entendeu.
O zelador foi mais para o fundo e sumiu na escuridão e eu não o encontrei mais na saída do teatro.

HUDSON ANDRADE
11 de dezembro de 2008, 12h43. Revisado em 13 de dezembro de 2008, 11h40.

sábado, dezembro 06, 2008

BROCARDOS (06)


A situação é muito simples. Chega o final do mês e tu diligentemente te encaminhas para o Departamento de Pessoal, recebes o contra-cheque (ou holerite, ou envelopinho, enfim...), assinas e ao devolver ao encarregado, devolves também o dinheiro que te foi oferecido. “Não, muito obrigado. Isso não é necessário!”, saindo logo depois feliz e sorridente para mais uma jornada de oito horas.
Essa situação é irreal até mesmo em Dubai e ninguém em sã consciência, ninguém, repito, sequer sonhou em tomar essa atitude. No entanto, é exatamente o que querem que eu faça: que eu trabalhe, me esforce, use meu tempo, meu físico, minha mente, enfrente engarrafamentos, falta de transporte público, de infra-estrutura, de apoio, de vergonha e ao final de tudo ofereça “de grátis” o meu produto!
Deixa eu ser mais claro. Sou ator. Tenho uma companhia de teatro. Temos toda uma rotina de preparação e ensaios e tudo o mais quando estamos numa nova montagem, numa remontagem, pesquisando um novo projeto, etc. Nenhuma produção leva um mês, dois, pra ficar pronta e mesmo quando algumas estréiam precisam continuar a ser buriladas para um resultado mais interessante. São muitas horas de atividade e poucas de sono! Não reclamo, não. É o que gosto de fazer. É o que digo que sei fazer e faço porque acredito e porque quero. Agora queres me ver descer das tamancas, tufar a veia do pescoço como diz um grande e querido amigo, é quando ao convidar alguém para a apresentação que levou toda essa novela pra acontecer a criatura diz: Tem de pagar? Ou pior: Tens cortesia, ou convite? Ou pior ainda: Arranja duas entradas aí que eu vou levar uma pessoa comigo!
Puta que o pariu! Só consigo pensar em mandar o sujeito (a) tomar onde o sol não bate! E não é piada da figura, não! É seríssimo! E se ofende quando eu digo que o ingresso é tanto! E em Belém o ingresso mais caro cobrado por um espetáculo local é R$ 20,00 (vinte reais). Um pouco mais que um ingresso de cinema, penso, que faz tempo que não vou a uma sessão. Sete, ou oito cervejas sem tira-gosto, uma pizza escrota, 10% de um abadá para os três dias de Pará Folia. A maioria dos ingressos custa mesmo R$ 10,00 (dez reais), menos de 1/6 do ingresso de Dona Flor e Seus Dois Maridos que lotou o Theatro da Paz no primeiro final de semana de novembro e que ganhou ainda três sessões extras. O motivo? Atores globais e a bunda do Marcelo Faria (e talvez algo mais!). Não vi o espetáculo e não posso julgar seus méritos, mas posso questionar essa eterna sensação de que a grama do vizinho é mais verde! E nem são meus vizinhos. Os caras ficam lá pra baixo e nem sabem que a gente existe e que produzimos espetáculos de excelente qualidade. Levo em consideração, claro, que pra trazer uma produção dessas pra esse fim de mundo é um osso duro de roer. A equipe, os cenários, equipamentos, elenco. E não dá pra vir de bonde. É pelo céu mesmo. Some-se a isso o aluguel do teatro, alimentação, etc... soma-se dois, caiu um, veio sete, noves fora e o preço é esse mesmo! E talvez nem seja o preço justo!
Alguém já tentou alugar um teatro em Belém? Quem já tentou sabe as dificuldades. E não é só grana, mas a falta de equipamentos, técnicos, disposição, respeito. A administração desses locais (de alguns pelo menos) não entendem sequer o que estão fazendo ali. Acham que eu posso entrar no teatro no dia da minha apresentação, algumas horas antes, montar tudo, ensaiar num espaço novo e ao final de tudo ter cerca de 90 minutos pra botar tudo nas costas e liberar o espaço. Acha pouco. É só pagar mais. No Da Paz a hora de ensaio custa (custava, sei lá!) R$ 500,00 e tem uma hoje, outra daqui dois dias, depois mais uma semana, sendo uma de tarde e as outras de manhã. Pergunto: quem determinou isso conhece a dinâmica de ensaio de uma peça teatral? Claro que não. Age como um mau administrador que visa apenas o lucro com o uso do espaço e está naquela cadeira só porque alguém botou.
Daí euzinho quero levar meu espetáculo pra lá, mas ele não se encaixa nos padrões elevadíssimos da nossa maior casa de espetáculos. A bunda do Faria e o carão da Carol Castro cabem! Então eu tento levar pra outro teatro, do governo, e caio numa fila enorme porque outros como eu estão querendo a mesma coisa. E é justo que queiram! Última alternativa, um teatro pequeno, mas particular: se eu pagá-lo, não tenho figurino nem luz nem nem, porque não tenho apoio que banca isso tudo. Se eu insistir e jogar todo esse bolo, contabilizar, ratear, dividir, enxugar, apertar, meu ingresso vai custar uns R$ 50,00. Isso pra não ter lucro!
Aí vem a criatura e diz: Tudo isso?! Qual é o nome do grupo de vocês mesmo? Vocês já se apresentaram fora daqui? Tá, eu acho que vou no domingo! E sai pra tomar sete, ou oito cervejas sem tira-gosto. Ou comer uma pizza escrota!