domingo, julho 22, 2007

EU 10

‘Ela diz que apesar de tudo ela tem sonhos
Ela diz que um dia a gente há de ser feliz
Se Deus quiser .”
(Janaína. Biquíni Cavadão)

A Dalva nem tinha apagado no céu quando eu enxuguei o suor da testa com o dorso da mão. Tanque cheio, suspiro fundo, alguma olheira. Mas ainda havia o frescor da madrugada.
Enquanto o sol e-va-po-ra-va – meu caçula tinha dito isso! – a água das roupas, limpei a casa, arrumei as camas, lavei a louça do café, varri o pátio. Na panela, feijão e um restinho de toucinho, cebola, alho e sal. Pra acompanhar, arroz e salsicha. O sol parecia tão mais brilhante aquele dia!
A molecada comia apressada pro filho mais velho lavar a louça antes de ir pro quartel. Hoje era dia de educação física pros menores e eu passei as camisetinhas brancas e os shorts azuis marinhos. Quando havia dobrado a última peça e dado uns pontos na toalha grande e felpuda que protegia a trouxa, a casa estava quieta e o sol rachava o asfalto. Lá longe alguém ouvia uma música que eu gosto muito e o Pirata – o vira-latas do do meio! – latia pro nada, sacudindo o corpo todo.
O ônibus tava lotado, mas o segundo, se Deus quiser, tá mais vazio e algum cristão há de pelo menos pedir pra levar a trouxa. Faz um tempão que eu não escuto um “senta aqui, senhora!” e cada vez esses carros demoram mais a passar. Acho que alguém deu uma boa lavada neles ontem, ou hoje. E o cobrador até me disse bom dia.
A dona gosta da minha lavagem, mas sempre abre a trouxa e olha tudo e confere numa listinha antes de me pagar e sempre pede pra ser menos. “Não dá. O preço do sabão tá pela hora da morte!”. Ela sempre paga e já marca outro serviço. São mais dois ônibus e o ponto é longe, inda mais nesse calor. Sento lá no fundo e vou sorrindo da boniteza que tá ficando essa cidade.
Desço do ônibus e sento numa proteção toda de metal, ferrugem, cartazes molhados-rasgados-desbotados. Na outra ponta do banco de madeira uma mocinha fala ao celular e diz que sente saudades também e que não vê a hora de estar junto e que estar junto é a única coisa que eles têm certeza, mas aí a voz já está mais alta e mais nervosa e mais aguda e ela pergunta por que e quando e de que jeito? Desliga o telefone meio nervosa, enfia na bolsinha verde e azul e me olha meio sem graça. Eu olho de volta, complacente, que eu tenho uma dessas em casa e sei como eles são, ah, se sei!
A mocinha desvia o olhar, encabulada e morta de vergonha enxuga uma lágrima gitinha que vem caindo.
Ela me olha de novo quando eu sento ao lado dela e a abraço sem perguntar se posso, se devo, ou se ela quer. Surpresa! Mas logo ela também abraça e chora um pouco e ri. Lindo! Lindo! E sai correndo que seu ônibus chegou e outro sabe Deus quando.
De dentro do carro é que ela olha e sorri, atendendo novamente o telefone.
Também sorrio e sacudo a cabeça. Ah! esses moços!!

19 de julho de 2007.
11h31

sábado, julho 14, 2007

EU 9

Escrevo-te da prisão na qual me encerraste: cadeias teus braços, correntes teus beijos.
Escrevo-te de dentro de uma novela mexicana: olhares afetados. Gestos grandes, frases tolas.
Escrevo-te do meu quarto vazio e imenso sem estares nele, dormindo sem pressa, óculos no rosto.
Escrevo-te do torvelinho que é a dúvida da tua presença: se quero que me revolvas, se quero que passes ao largo.
Escrevo-te pra fugir do telefone.
Escrevo-te porque não lerás essas linhas (?).
Escrevo-te porque é o que sei e gosto e onde posso te pintar com as cores que deseje: azuis abreus, amarelos van gogh, vermelhos almodóvar e brancos e cinzas e negros eus.
Escrevo-te porque assim não partes.
Escrevo-te porque se rasgar esta folha, não ficas...
Escrevo-te épico, cômico, dramático.
Escrevo-te crônica do meu dia-a-dia alterado (pra melhor?!)
Escrevo-te conto, curto, redondo.
Escrevo-te com detalhes de roteiro, com volteios de romance, com a secura dos jornais, na métrica matemática da música, na precisão da tese, ágil como os quadrinhos.
Escrevo-te porque as palavras sobrevivem aos homens.
Escrevo-te enquanto te aguardo.
Ponto. Três!

Para M. O.
Belém, Pará
13 de julho de 2007 – 9h00

A PROGRAMAÇÃO DO PALCO GIRATÓRIO.

Em 2007, uma feliz coincidência reuniu o SESC e o projeto Balaio Cultural dos Clowns de Shakespeare, grupo de Natal que veio a Belém pela segunda vez através da Caranava Funarte – programa de circulação de espetáculos da Fundação Nacional de Arte. O programa incluiu ainda a cidade de Santarém e o estado de Roraima com a apresentação dos espetáculos Muito Barulho Por Quase Nada e Roda Chico, além do infantil Fábulas. Em todos os locais aconteceram oficinas ofertadas aos artistas locais. Em Belém, intermediadas pelo SESC, as oficinas de jogos teatrais e iluminação, além de debates, aconteceram no Casarão do Boneco, sede da companhia In Bust Teatro com Bonecos.

Dentro da programação normal do Palco Giratório esteve em Belém em maio passado o grupo Lumbra, de Porto Alegre, com Sacy Pererê – A lenda da meia-noite, resultado da pesquisa e trabalho do grupo na área do teatro de sombras. O espetáculo apresentado levou dois anos para ser concluído.

Entre os dias 23 e 28 de junho de 2007 esteve em Belém a Companhia catarinense Trip de Teatro Rio do Sul, com o espetáculo adulto de bonecos O Incrível Ladrão de Calcinhas.

Para a primeira quinzena de agosto está programada a Companhia Informal de Teatro, do Rio de Janeiro, que trará a Belém os musicais Antonio Maria: A Noite é uma Criança e Ai, que saudade de Lago, biografia para o teatro do ator e compositor Mário Lago.

Em setembro, na programação especial, acontecerá a Residência Cênica com a carioca Companhia Etc e Tal, que além das oficinas e bate-papo apresentará três espetáculos: Fulano e Sicrano e as comédias No Buraco e O Macaco e a Boneca de Piche.

Na Aldeia Círio, que começa dia 13 de outubro, as apresentações incluem teatro, dança e música, com intensa participação de grupos locais, valorizando nossa produção artística. Do Rio de Janeiro virá a Companhia Artesanal de Teatro com dois espetáculos infantis: Viagem ao Centro da Terra, baseado na obra de Júlio Verne, e Ciriano de Berinjela.

Fiquem atentos, prestigiem e divulguem.

quarta-feira, julho 11, 2007

PENSE NUMA BESTEIRA!!!

Melhor filme, atriz, atriz coadjuvante, ator, trilha sonora e Prêmio de Crítica do Festival de Brasília.
Melhor diretor no Festival de Cinema de Paris.
Melhor filme no Festival de Roterdã.
Ok! Pira paz!!!
Ou o conceito de arte e de qualidade dos julgadores dos festivais acima citados é completamente diverso do meu – e de boa parte da platéia que assistiu comigo Baixio das Bestas no último dia 08 de julho -, ou eu não entendo nada de cinema, arte, etc. Vá lá que minha experiência não tem dez anos, apenas seis espetáculos e algumas incursões pela literatura, mas por mais obtuso que eu seja ainda tenho sensibilidade bastante para julgar uma obra de arte quando vejo uma. E chamo Baixio das Bestas de obra de arte porque sendo uma produção cinematográfica, etc, pode ser assim classificada, tanto quanto sabonetes de motel pendurados no teto e pedaços de placas de estrada emendadas. No entanto, a tentativa de Cláudio Assis, o mesmo diretor de Amarelo Manga, de “problematizar relações, sugerir narrativas, humanizar questões, aprofundar o cotidiano e dimensionar a existência (*)” se perde nos oitenta longos e desagradáveis minutos de projeção. Não que o comportamento amoral e imoral dos personagens provoque nojo, ou desagrado, anestesiados que estamos pelos telejornais, mas pela completa falta de profundidade e verdade da história. A menina triste, ingênua e explorada que, amarga, decide se entregar sem mais luta ao óbvio de sua vida miserável está lá – como a personagem de Dira Paz em Amarelo Manga -, os jovens bem de vida e revoltados também, espancando domésticas... Ops! Isso é outro filme. Ou pior, não é filme. É real. O que diferencia é que no filme de Assis as cenas são mostradas. Violência explícita, sexo explícito, nu frontal, insinuações homoeróticas e uma avalanche de palavrões – as poucas palavras que se consegue entender no filme -, tudo tenta preencher o vazio de um roteiro raso como a fossa interminavelmente cavada por Maninho (Irandhir Santos, ele mesmo, o Quaderna de A Pedra do Reino!!!). Estratégia simplista. Não dar soluções para os conflitos ao invés de “tirar a platéia da sua passividade (*)” a coloca numa arena romana: diante da vítima inerme, nada há o que fazer senão juntar-se à turba e virar o polegar pra baixo.
A pá de cal vem de Matheus Nachtergaele, um dos personagens unidimensionais e ocos de Baixio das Bestas, quando proclama, grave: “O bom do cinema é que nele a gente pode tudo!”. Sem risos, ou lágrimas.
Baixio das Bestas é uma experiência cinematográfica questionável e absolutamente dispensável. Aliás, perdão pelo comentário infame, mas o título não podia ser mais preciso, já que eu próprio me tornei parte de um lote que se divide com patadas e relinchos, entre os que fingem que entenderam, os que pensam que gostaram, os que lastimam a perda de tempo e dinheiro e os que saíram antes do final da sessão.

(*) Conforme sinopse publicada no informativo Pará 2000, ano I, nº 03, julho de 2007.
Belém, Pará
01h35

domingo, julho 08, 2007

EU 8

Saí do elevador e subia escadinha vertical chumbada na parede até o ponto mais alto do telhado, sentando numa marquise, a perna esquerda balançando, a direita dobrada, apoio do braço direito, o vento agitando violento meus cabelos. Gosto de me sentir um personagem numa pintura do Caravaggio, assim como gosto de andar nas ruas de madrugada cantarolando e fingindo estar num clipe da Alanis Morrisete.
Apoiei a cabeça na parede e fiquei ouvindo o zumbido do vento e o som do trânsito meio distante, abafado. Ali no alto, o sol quase posto ao fundo, não chegavam sons humanos, só rangidos, estalos, bipes.
Abri os olhos só então eu o vi. No prédio ao lado, também na última laje, o rapaz permanecia de pé, olhar duro, os cabelos negros e finos e lisos agitados com força pelo vento. Como é que eu não o percebera? Estaria ali há muito tempo? Teria me visto? Penso que não. Na verdade nós somos invisíveis uns pros outros; pra alguém mais próximo basta um sorriso bem colocado na cara e uma palavras à toa pra parecer que está tudo bem. Ninguém percebe tua dor e se percebe dá de ombros, “que eu mal consigo resolver as minhas!”
Decidi não me mexer, permanecendo assim ignorado. Fiquei bem mais tempo que de costume, descendo apenas quando o rapaz tinha ido embora. Ainda na escadinha pensei ter visto um vulto num terceiro prédio. Parei e olhei com atenção. Ninguém? Ninguém!
No dia seguinte subi ao telhado como de costume, mas coloquei-me mais à sombra, gárgula, espreitando o rapaz que desta vez, de pé, dava passos vacilantes na direção da beirada do prédio, o olhar perdido, parecendo que queria chorar e prender o choro e gritar e não dizer nada que ali não tinha ninguém e quem é que o escutaria? Também eu prendi um pedido na garganta que ele não fosse adiante; que não brincasse com altura e não desafiasse o vento, ou a boa sorte. Pedi preso na garganta que ele pensasse bem se era aquilo mesmo que ele estava pensando. Como ele eu também me sentia muito só e muito triste e queria colo e que alguém me amasse como eu o-a-os-as amaria. Fiquei imaginando respostas para as perguntas que ele me faria, se soubesse que eu estava li há poucos metros dele, ainda que separado por um abismo “de modo que os que aqui estivessem não poderiam passar para o outro lado e nem os de lá para cá poderiam vir”. Ou eu nem precisaria dar resposta alguma e ele desistiria daquele passeio fatal pelo simples fato de ter sido ouvido. Mas enquanto a minha cabeça pensava todas essas coisas eu fechei os olhos para a pessoa. E seus pés se colocaram na pequena mureta e seu olhar volteou e estava úmido e avermelhado.
Ainda corri na sua direção, gritando que parasse. Em vão. Acompanhei ainda um pouco seu vôo às avessas e depois enterrei o rosto entre os braços para não ver o desfecho daquela tragédia tão minha. E gritei! E meu berro era por demais alto. E não era só meu. De todos os prédios em volta saiam das sombras outros e outras e batiam no peito, dobravam os joelhos e olhando pros céus perguntavam por que e por que e por que?
Corri dali pra não ser o próximo.
Nessa noite eu não dormi e nem nas muitas seguintes. Não voltaria ao telhado enquanto meus ouvidos retivessem aquele grito, enquanto eu lembrasse daquele rosto desconhecido e enquanto eu soubesse quão familiar me eram todos aqueles sentimentos e ausências.
Hoje quando o sol se põe eu me protejo atrás de paredes e janelas.
Hoje, uma linda jovem clara, de cabelos encaracolados e vestido azul subiu pela escadinha vertical chumbada na parede do prédio ao lado do meu, acima da última laje.
Esmurrei a vidraça em prantos e corri porta afora, descendo as escadas quase cego de lágrimas, disposto a invadir a qualquer preço o prédio vizinho.

Belém, Pará, 29 de junho de 2007.
15h56