quarta-feira, março 28, 2007

EU 2

Quando a gente olha pra cima nessas horas em que o dia vai nascendo, pensa poder acompanhar o espetáculo desse sol que desabrocha, despetalando luz por sobre a Terra. Vã ilusão! Num momento o céu é azul anil, escuro, pesado e as estrelas ainda estão lá, pálidas, mas presentes. Logo depois o céu está raiado de tons de laranja e de vermelho. Nenhuma estrela mais é visível. E então o sol irrompe com força pintando o alto de azul celeste, desses tons angelicais que apertam o coração. A luz, mesmo que insista em não se recolher, tem de se acomodar a sua posição de coadjuvante, apagada como um fantasma.
Num desses reveillons quando todo mundo decidiu sair, uns pra praia, outros pra ver uns tais fogos de artifício, outros pra cama mesmo – que dia primeiro de janeiro não tem nada de diferente –, sentei-me na varanda do meu quarto e decidi olhar o céu e perceber a noite que se ia e o dia novo do ano novo que chegava. O silêncio era quebrado pelos risos, fogos, músicas, festas. Um carro que passava, aplausos, uma taça que quebrava, um palavrão, ou dois que sabe; até mesmo alguns zumbidos de inseto. Vento nas folhas. Minha respiração.
O céu não tinha nuvem alguma. Consultei o relógio. Duas horas. Li, ouvi música, cochilei. Três horas! Tomei água, mastiguei qualquer coisa e com os olhos injetados vi a carta sobre a cama. Quatro horas! Num suspiro desalentado reli pela enésima vez a despedida e olhei a foto em que, abraçados, nunca imaginaríamos que hoje não fôssemos mais nós. Cinco horas. Falta pouco! Concentrei-me em, com as mãos, recortar aquele retrato, separando ali o que já não tinha mais nenhum nó.
Pensei que eu também não pudera perceber como as coisas tinham mudado entre a gente. Não prestara atenção, ou não tivera tempo?
Com as duas metades da foto nas mãos sentei novamente em minha cadeira e concentrei-me no espaço, esforçando-me para sequer piscar, e fui vendo milhares de mãos solares espalharem suas bênçãos pelo céu. Sorri.
Então baixei os olhos para os teus naquela metade de papel brilhante (um instantinho só!) e isso foi o bastante para que ao levantá-los eu tivesse perdido aquela fase final em que é dia e é noite. O sol já tinha se instalado e aquecia o meu rosto.
Sorri novamente. Agora entendia perfeitamente porque tinha te perdido!

sábado, março 17, 2007

EU 1

Da cama larga onde eu dormia podia ver pela janela a parede.
Nela um dia eu vi nascer uma dessas plantinhas impertinentes cujas sementes vindas sabem-se Deus de onde, instaladas, insistem em brotar. Esta brotou nas trincas do cimento.
Primeiro eu pensei em arrancá-la, impulso inicial. Depois, em cultivá-la, tomado de paixão pela sua comovente coragem. Por essa mesma coragem decidi deixá-la à própria sorte. Que fizesse por merecer estar ali.
E não é que a danada vingou?! Virou suas folhas pro sol, cresceu na direção na chuva e fincou raízes sabe-se Deus onde.
Um dia inventou de dar flor. Acompanhei aquela gestação com interesse e carinho, borrifando água fria em suas folhas miúdas com um frasquinho de desodorante, espantando formigas com borra de café. Por dias e dias ela ficou ali, dobrando delicadamente as pétalas dentro de um botão verde claro, miúdo e solitário.
Por fim abriu-se a flor, vermelho claro, um pouco laranja, riscada de amarelo por dentro. Quente! Maior do que o botão denunciava e mais bela do que eu jamais imaginara, buscava compensar nas cores detalhadamente distribuídas e nos brilhantes riscos padronizados de suas pétalas a falta de perfume.
Chorei emocionado.
A flor abriu cedo e logo ao final da tarde murchava. Suspirei resignado.
Mas ao olhar pela janela no dia seguinte vi que toda a planta havia morrido, exaurida.
Fechei os olhos por algum momento.
Antes de fechar definitivamente aquela janela depositei o cadáver verde musgo ao meu lado, puxei as cobertas e fechei os olhos.

terça-feira, março 06, 2007

SOB O PESO DA CRUZ

Cada vez que olhamos uma coisa, ela ganha um novo significado. Talvez por isso o poeta Sthépane Mallarmé tenha dito que nomear um objeto é destruir três quartos do prazer que reside no adivinhar gradual de sua verdadeira natureza.
Quantas vezes eu já não havia lido os poemas de Cruz e Sousa (1861 – 1898), poeta catarinente que introduziu em nosso país o simbolismo e foi o seu representante mais significativo. De influências realistas, compôs textos marcados por profundo pessimismo e materialismo; dos parnasianos, demonstrou excessiva preocupação com a forma. Aliás, a forma era algo de profunda importância para os simbolistas, com a poesia e a música expressando os mistérios da alma humana. Não é à toa que as aliterações tão comuns nos textos simbolistas nos remetem a uma musicalidade que por vezes extrapola o próprio sentido das palavras. Quantas vezes não tinha eu lido seus versos, gostado sim, mas nunca apreendido um sentido mais profundo em suas palavras. Nunca tinha me identificado com ele e com sua poesia como me envolvi recentemente. Na busca de material para um novo espetáculo da Companhia Teatral Nós Outros garimpávamos vários autores na busca de textos e idéias. Encarreguei-me do Cruz e Souza porque disse que queria falar sobre gente e ele pareceu que me proporcionaria isso, que também tenho lá minhas inclinações pessimistas.
E como o próprio poeta desci aos seus infernos de sombras e azeites, não para encontrar Baudelaire, mas para achar a mim mesmo capro e revel, com os fabulosos cornos, num momento de saudade e tédio, de grande tédio e singular saudade (...) já das culpas sem remédio. E me vi lendo por todos os lados, em casa, ônibus, consultórios, ruas e em voz alta, que não há como ler um poema sem escutar a própria voz que o canta. E lê-los repetidamente, porque a cada nova leitura a tal música simbolista aparecia em acordes diferentes e eu, ator, queria saber como ela seria melhor executada.
E fiquei absolutamente fascinado. Absolutamente atado por uma trança negra e desmanchada a essa flor branca como um jarmim-do-Cabo cujo perfume me inquietou sobremaneira.
Inicialmente não mais levaremos Cruz e Sousa aos palcos. Pelo menos não por enquanto. O diretor deste espetáculo, Adriano Barroso, crê que nos falta estofo e entende nossa ansiedade (minha ansiedade!) em querer experimentar novos campos além do que tenho feito. Seu conselho reside em aprofundar mais em mim mesmo, como pessoa e sobretudo como profissional do teatro, para dar um passo tão largo com absoluta segurança. Experimentar sempre se pode, mas os resultados poderiam ser questionados e pesa o nome daquele eleito para nos dar as palavras que sairiam de nossas bocas. Acedi. Iniciamos um processo muito interessante de estudo do que é o teatro e suas muitas nuances e possibilidades. Na verdade, retomamos o que fizéramos em Medéia – A tragédia do feminino ultrajado, agora com maior maturidade e leveza e um desejo muito maior de fazer do teatro a arte de pescar homens e conduzi-los pela mão a um labirinto onde tudo o que existe é o que ele – homem comum – quer ser, mas não pode. Ou não deixam!
Cada vez mais essa arte - minha arte! – se entranha em mim e cria frutos, meu caminho onde encontra-se o tesouro pelo qual tantas almas estremecem. Mais eu descubro que quero ser ator e que isso é o que melhor eu sei fazer e quero compartilhar isso com o mundo, seja pelo simbolismo do Cruz e Souza, pela prosa urbana, solitária e caminhante de Caio F., pelos desvios trágicos de heróis, ou semi-deuses e nos qüiproquós vitorianos. Quero afundar o povo desta cidade em Sertões e Amazônias, trancafiá-los em castelos, porões e matas escuras, cercá-los de anjos e demônios, fadas e feitiços, danças, mamulengos e muita música, aquisição recente e benfazeja da nossa companhia na figura de quatro criaturas de talento ímpar e ainda desconhecido.
Vamos nos encontrar pra que eu lhes mostre objetos estranhos e palavras aparentemente sem sentido, para que cada um de vós possa descobrir (-se).
E gozar do vinho sempiterno de Baco.
Evoé!!!

Despeço-me com dois momentos muito distintos de Cruz e Souza: um quando ele ainda vivia sobre a Terra e outro, pela psicografia de Francisco Cândido Xavier, coletado do Parnaso de Além-Túmulo, primeiro livro publicado pelo médium mineiro.

Anima Mea (Últimos Sonetos, 1905)

Ó, minh´alma, ó, minh´alma, ó, meu Abrigo,
meu sol e minha sombra peregrina,
luz imortal que os mundos ilumina
do velho Sonho, meu fiel Amigo;

Estrada ideal de São Tiago, antigo
templo da minha Fé, casta e divina,
de onde é que vem toda esta mágoa fina
que é, no entanto, consolo e que eu bendigo?

De onde é que vem tanta esperança vaga,
de onde vem tanto anseio que me alaga,
tanta diluída e sempiterna mágoa?

Ah! de onde vem toda essa estranha essência
De tanta misteriosa transcendência,
Que estes olhos me deixa rasos de água?!

Alma Livre (Parnaso de Além-Túmulo, 1978)

Um soluço divino de alegria
Percorre a todo Espírito liberto
Das pesadas cadeias do deserto,
Desse mundo de sobra e de agonia.

A alma livre contempla o novo dia,
Longe das dores do passado incerto,
Mergulhada no esplêndido concerto
De outros mundos, que a luz acaricia!

Alma liberta, redimida e pura,
Vê a aurora, depois da noite escura,
Numa visão mirífica, superna...

Penetra o mundo da imortalidade,
Entre canções de luz e liberdade,
Forçando as portas da Beleza Eterna.

Citações dos poemas Satã e Serpente de Cabelos (Broquéis, 1893); Flor do Diabo (Faróis, 1900); Caminho da Glória (Últimos Sonetos, 1905) e de No Inferno, prosa poética publicada em Evocações (1897-1888)